A omissão do Estado na proteção dos direitos fundamentais do adolescente: a decisão emocionante que emancipou jovem moradora de um galinheiro.

05/04/2019

Coluna Substractum / Coordenadores Natã Ferraz, Juliana Jacob e Luciano Franco

Uma decisão proferida pelo Juiz de Direito do Estado da Bahia, Luciano Ribeiro Guimarães Filho, no dia 16 de Outubro de 2018, que emancipou a jovem Naiane Santos Silva que aos 11 anos de idade foi abandonada pelos pais e passou a residir em um galinheiro, emocionou qualquer leitor, operador do Direito ou não, provocando um questionamento no que tange as políticas públicas e proteção de direitos fundamentais no Estado Democrático de Direito.

A Defensoria Publica, órgão que assegura a luta dos hipossuficientes pelos seus direitos fundamentais, função expressa no artigo 1º da Lei Complementar nº 80 de 12 de Janeiro de 1994, que assim dispõe como uma “instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático”. Tendo como sua principal função “a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados”. Assim, propôs Ação de Emancipação Judicial em favor de Naiane Santos Silva com o objetivo de garantir a jovem uma casa vinculada ao projeto Minha Casa Minha Vida, na qual foi contemplada e impedida de assinar o contrato, pois era menor de idade e não preenchia os requisitos necessários para gozar do benefício.

 

O Estado Democrático de Direito e a proteção aos direitos fundamentais

O Código Civil Brasileiro que disciplina a matéria da emancipação, determina as hipóteses previstas como requisitos para pleitear a emancipação: a) a concessão dos pais ou de um deles na falta de outro; b) casamento pela lei civil; c) exercer emprego público efetivo; d) pela colação de grau em ensino superior, estabelecimento civil ou comercial ou emprego como economia própria.

Fazendo uma analise fria da letra da Lex Civil, Naiane não teria direito a emancipar, pois não preenchia nenhum dos requisitos supracitados, mas a Defensoria Pública seguindo as premissas constitucionais pleiteou o direito à moradia, agasalhada no argumento de que a jovem executava os atos da maioridade civil, exercendo deveres do poder familiar, responsabilizando-se por seu filho, ressaltando que a jovem provinha seu próprio sustento desde os 11 anos, quando foi abandonada pelos pais.

O Juiz Baiano que à época de julgar o fato, iria completar 13 anos de magistratura e nunca havia julgado um processo com tamanho teor humanitário.

Ao iniciar a fundamentação, citou que em toda sua carreira como Juiz de Direito jamais utilizou da primeira pessoa do singular ao prolatar uma sentença, sendo que todos os julgados, até então, conforme recomendado, eram feitos por um juízo distante. Para justificar tal ação, o magistrado se manifesta com profundo sentimentalismo:

“A diferença se dá por diversas questões. Em todo o referido tempo, não me recordo em ter prolatado uma Sentença com tanto sofrimento em com lágrimas de tristeza saltando dos meus olhos. Impossível não se compadecer com a situação da autora”.

Em que pese a situação de não preenchimento da autora de nenhum requisito estabelecido no Código Civil, prevaleceu a égide da Constituição Federal, pois o que era pleiteado ia além do que um mero direito de emancipação, mas a luta pela dignidade da pessoa humana, cerne da Carta Magna de 1988, que se viu abandonada a própria sorte durante toda sua vida.

Devido à gravidade da situação, o magistrado não se limitou ao procedimento comum que institui o direito de emancipar e fez uma análise sistemática entre a Lei e os direitos fundamentais assegurados na Constituição Federal.

Neste diapasão, nos deparamos com a lição de Paulo Branco,

“as normas que definem direitos fundamentais são normas de caráter preceptivo, e não meramente programático. Explicita-se, além disso, que os direitos fundamentais se fundam na Constituição, e não na lei – com o que se deixa claro que é a lei que deve mover-se no âmbito dos direitos fundamentais e não ao contrário. Os direitos fundamentais não são meramente normas matrizes de outras normas, mas são também, e sobretudo, normas diretamente reguladoras relações jurídicas” (BRANCO, 2018, p. 154)

Assim, a supremacia dos direitos fundamentais que se sustentam pela dignidade humana de cada cidadão, deve ser observado como núcleo de qualquer discussão jurídica em que um dos direitos fundamentais está sendo violado.

A decisão embasou-se nas informações trazidas pela Assistente Social do caso, Ariani de Almeida Dócio, afirmando que, em emocionante relato, a autora quando tinha 11 anos de idade foi colocada para fora de casa, passando a residir em um galinheiro, onde era alimentada por pessoas que trabalhavam na beira de uma estrada, sendo mãe de dois filhos, tendo o segundo filho nascido em 2017. A jovem passou a residir em outro imóvel, juntamente com o pai do seu segundo filho, Leandro, porém foram despejados por não terem condições de arcar com as despesas e custeios do local. Tal situação motivou Naiane a se registrar no programa Cadastro Único e, em seguida, tentar a sua inscrição no programa Minha Casa Minha Vida.

Após a realizar a inscrição, foi contemplada com um imóvel do programa habitacional, porém negada a realização do contrato pela Caixa Econômica Federal devido a menoridade de Naiane. A assistente social frisou que por causa da condição de vida da autora, ela não somente tinha condição de ser emancipada, mas era como se, “na prática”, estivesse nesta condição desde os 11 anos de idade.

Registra-se que o direito a moradia é uma garantia constitucional e que é amparado, também, na Declaração Universal dos Direitos Humanos e no Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e que está diretamente ligado ao direito à dignidade da pessoa humana, atrelado as garantias que o Estado deve tutelar, ou pelo menos deveria, já que na prática não é o que prevalece.

O Estado Democrático de Direito é consagrado na Carta Magna como um princípio fundamental da república brasileira, sendo a natureza da atuação do Estado e a aplicabilidade do Direito na sociedade. Neste sentido, Hugo Garcez Duarte, aproveitando das lições de Lênio Streck e Bolzan de Morais sobre o conceito de Estado democrático de Direito, assenta:

“tem como princípios constitucionais entendida como vinculação deste Estado a uma constituição, concebida como instrumento básico de garantia jurídica; a organização democrática da sociedade; um sistema de direitos fundamentais, individuais e coletivos, de modo a assegurar ao homem uma autonomia perante os poderes públicos, bem como proporcionar a existência de um Estado amigo, apto a respeitar a dignidade da pessoa humana, empenhando defesa e garantia a liberdade, da justiça e solidariedade; a justiça social como mecanismo corretivo das desigualdades, a igualdade que além de uma concepção formal, denota-se como articulação de uma sociedade justa”. (STRECK; MORAIS apud DUARTE, 2015).

Compulsando didaticamente a referida garantia, é teratológico a omissão estatal no que tange aos compromissos fundamentais que tem com a sociedade. Em outras palavras, Naiane foi massacrada, tendo uma luta por aquilo que na verdade deveria lhe ser assegurado, pelo fato de o Estado, juntamente com os seus pais, terem lhe virado as costas.

Ainda, a Constituição Cidadã inaugura a visão garantista para a criança e ao adolescente, abandonado a ideia da “situação irregular”, ou fase tutelar do direito, propagada pelo antigo Código de Menores (BASTOS, 2015, p56-69). Conforme leciona no seu art.227, a responsabilidade pela concretização dos direitos infanto-juvenis ficou a cargo da família, da sociedade e do Estado, criando uma tríade solidária.

No escopo infraconstitucional, o Estatuto da Criança e do Adolescente trata de ampliar e regulamentar o comando constitucional, assegurando a toda infância e juventude, através de uma proteção integral (art.3º do ECA), uma série de direitos fundamentais, à luz dos princípios do superior interesse da criança (art.100, IV do ECA) e da prioridade absoluta (art.4º do ECA).

 

A concretização dos direitos fundamentais através do Estado-juiz

Após analisar todo o caso sob o viés constitucional, o magistrado proferiu decisão a fim garantir a efetividade dos direitos fundamentais da adolescente, emancipando Naiane, com emocionante trecho, onde revelou que se sentiu como um pai ao final da instrução, proferindo:

 “Mas, vai Naiane! Comprovou-se que a vida já te emancipou, e agora quem o faz é o Poder Judiciário, que lhe deseja paz e inteireza, para cuidar de si, sua família e irmãos, pois se você ainda não tem esses direitos, caráter, honra e brio já demonstrou que possui, de sobra. Como toda sertaneja, é uma forte”

Assim, Naiane que é mais uma das milhões de vitimas que o Estado não disponibiliza nenhum direito social, mesmo sendo limitada de todas as formas os seus direitos, encontrou no olhar humano e justo do Juiz Luciano Ribeiro o seu direito a uma vida digna.

Observa-se da decisão, emocionante e primorosa, que a intervenção ativista do Estado-Juiz foi essencial para proteção dos direitos da adolescente, garantindo através de uma interpretação sistêmica do princípios constitucionais, dispositivo favorável a emancipação de Naine. A de se lembrar que o núcleo essencial de um Estado Democrático de Direito é a positivação e concretização dos direitos fundamentais, sejam eles direitos individuais ou sociais, que exigem um conjunto de valores com fins direcionados a uma ação positiva dos poderes públicos, atendendo a uma dimensão subjetiva dos indivíduos (LUÑO, 1993, p.20-22).

A história de Naiane Santos Silva representa a luta da grande malta brasileira, pessoas que são privadas do mínimo existencial, e que dificilmente encontrarão outro Luciano Ribeiro para ampara-las frente a omissão do Estado-gestor.

 

Notas e Referências

BASTOS, Angélica Barroso. Direitos Humanos das Crianças e dos Adolescentes: as contribuições do estatuto da criança e do adolescente para efetivação dos direitos humanos da criança e do adolescente. Curitiba: Juruá, 2015.

BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 13 ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 154.

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente, de 13 de julho de 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8069.htm. Acesso em 01 de abril de 2019.

BRASIL. Lei Complementar nº 80, de 12 de janeiro de 1994. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/Lcp80.htm. Acesso em 20 de março de 2019.

CARDOZO, Cláudio. Em decisão emocionante, juiz baiano emancipa jovem que morava em galinheiro. Disponível em: https://doutoradevogado.jusbrasil.com.br/noticias/639603508/em-decisao-emocionante-juiz-baiano-emancipa-jovem-que-morava-em-galinheiro. Acesso em 21 de março de 2019.

DUARTE, Hugo Garcez. Dignidade da pessoa humana e direito à moradia: Reflexões frente ao conceito de Estado Democrático de Direito. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/42532/dignidade-da-pessoa-humana-e-direito-a-moradia-reflexoes-frente-ao-conceito-de-estado-democratico-de-direito. Acesso em: 23 de março de 2019.

LEITE, Gisele. Políticas públicas, Direitos fundamentais e desenvolvimento. Disponível em: https://professoragiseleleite.jusbrasil.com.br/artigos/112185299/politicas-publicas-direitos-fundamentais-e-desenvolvimento. Acesso em: 23 de março de 2019.

LUÑO, Antonio E. Perez. Los Derechos Fundamentales. Madrid: Tecnos, 5ª ed.,1993.

SILVA, Palloma Massette. A Constituição Brasileira na contemporaneidade:  relação entre as análises de Hesse e Canotilho e o princípio da igualdade. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/59856/a-constituicao-brasileira-na-contemporaneidade. Acesso em 20 de março de 2019.

 

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