A nova súmula da OAB e a necessidade de (re)pensar estratégias de enfrentamento à violência contra a mulher: função simbólica ou precarização de direitos?  

26/03/2019

Na última semana, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) aprovou uma nova súmula, prevendo que a prática de violência contra a mulher constitui fator apto a caracterizar a ausência de idoneidade moral e, portanto, poderá impedir a inscrição de bacharel em Direito nos quadros da OAB. A notícia vem sendo muito compartilhada e celebrada dentro do campo jurídico e também em parte do movimento feminista. Em praticamente todos os sites jurídicos que veicularam a decisão, ela é tida como uma “grande conquista na luta pelo fim da violência contra a mulher”. Mas será que estamos diante de um tema e de uma medida que possibilitem todas essas certezas?

A súmula, aprovada pela maioria dos conselheiros federais, recebeu a seguinte redação:

“Requisitos para inscrição nos quadros da OAB. Inidoneidade moral. A prática de violência contra a mulher, assim definida na Convenção Interamericana de Belém do Pará, constitui fator apto a demonstrar a ausência de idoneidade moral para a inscrição de bacharel em Direito nos quadros da OAB, independentemente da instância criminal. Assegurado ao Conselho Seccional a análise das circunstâncias de cada caso concreto.”

Um dos primeiros elementos que se destaca é a expressão “independentemente da instância criminal”. Em um primeiro momento, algumas dúvidas foram levantadas, uma vez que a redação permite o entendimento de que, mesmo antes do trânsito em julgado da condenação, acusados de violência contra a mulher já poderiam ser considerados inidôneos. No entanto, após alguns questionamentos, o próprio conselheiro federal relator do caso explicitou que a recusa na inscrição poderá acontecer até mesmo se não houver uma denúncia formal contra o candidato. Nesse caso, ficará a critério do Conselho Seccional da OAB a decisão de conceder ou não o registro do bacharel como advogado, após apurar administrativamente a existência de atos de violência contra a mulher.

A opção realizada pelo Conselho Federal possibilita - ou talvez exija - uma reflexão mais profunda, principalmente considerando se tratar de um órgão que deve lutar por um espectro alargado de direitos constitucionais como o direito de defesa inerente ao devido processo legal. A dispensabilidade do trânsito em julgado - e até mesmo de um processo criminal formal - para que haja a adoção da medida vai na contramão do princípio da presunção ou do estado de inocência, previsto no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal de 1988, que determina que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

Embora a posicionalidade da decisão não esteja incluída nos limites do sistema formal de controle penal, é inegável que a medida prevista pela súmula apresenta uma racionalidade punitiva[1]. Isso porque se trata de proposta que visa à prevenção de crimes (violência contra a mulher) e, ao mesmo tempo, não deixa de representar uma resposta de punição (sanção) ao bacharel, que terá o seu registro como advogado negado. No caso, estamos falando não apenas de uma mera sanção administrativa, mas da aplicação de um instrumento potencialmente perpétuo, novamente desrespeitando a Constituição Federal. Nesse caso, o artigo 5º, inciso XLVII, alínea b, que proíbe penas de caráter perpétuo.

Assim, como medida de caráter sancionatório e diretamente ligada ao sistema de justiça criminal, chega a causar estranheza que a advocacia esteja comemorando como conquista de direitos uma medida que talvez fragilize mais direitos do que garanta. Em especial no contexto em que vivemos, no qual cada vez mais os direitos e garantias individuais vêm sendo sistematicamente desrespeitados pelo Poder Judiciário.

Não é demasiado lembrar a luta enfrentada principalmente pela advocacia criminal em razão da mudança de posicionamento do Supremo Tribunal Federal (STF), em fevereiro de 2016, ao julgar o habeas corpus n. 126.292/SP. A partir do julgamento, o STF passou a considerar possível a execução antecipada da pena, após a condenação do acusado em segundo grau de jurisdição.

Na ocasião, advogados e advogadas criminalistas, integrantes da Defensoria Pública e pesquisadores(as) da área apontaram - e seguem apontando incansavelmente - para as graves violações de direitos ocasionadas pela decisão do Supremo, que representa evidente violação à presunção de inocência, além de contrariar a disposição literal do artigo 283 do Código de Processo Penal[2].

Muitas pessoas vêm argumentando, é claro, que a súmula aprovada pelo Conselho Federal possuiria um caráter menor de punição e maior de prevenção da violência contra à mulher, pois “o estudante de Direito ou bacharel que pretende se tornar advogado agora vai pensar duas vezes antes de praticar esse tipo de violência”.

É importante ressaltar que não se está negando a importância de debater seriamente o problema da violência doméstica e familiar contra as mulheres, um problema endêmico e estrutural da sociedade machista em que vivemos. Pelo contrário: não apenas temos consciência do problema, como desenvolvemos pesquisas na área da violência de gênero e afirmamos a urgência da luta feminista pela produção de novos contornos sociais e nova produção de justiça. Todavia, encarar as limitações que estão implicadas em decisões como a produzida pelo Conselho da OAB é estratégia feminista para que a construção de direitos reivindicados enquanto proteção de sujeitos vulneráveis não contribua com a distribuição desigual de violência imposta sobre outros corpos e outras vidas, ou seja, por vulnerabilização de outros sujeitos por meio da exclusão de direitos[3].

Nesse sentido, consideramos válida toda medida que tenha o potencial de criar focos de resistência(s) dentro desse sistema patriarcal, mas analisar as medidas que são produzidas exige um olhar atento à potencialidade concreta do que se propõe enquanto ação de resistência. Talvez aqui seja válido pensar que medidas como a efetivação dos 30% de vagas destinadas às mulheres no processo eleitoral da OAB[4] antes de 2021 seja mais efetivo para dissolver desigualdades de gênero do que o caráter sancionador da recente decisão.

Cabe também interrogar qual será a efetividade da medida aprovada pela OAB. Enquanto medida de prevenção geral negativa, não há qualquer evidência da sua capacidade real de impedir futuras agressões físicas ou psicológicas contra mulheres por parte de bacharéis em Direito, da mesma forma em que o caráter de prevenção da pena já se mostrou uma grande falácia. Tal lógica expõe a necessidade de repensarmos os limites que estão presentes entre as leis produzidas - como desejo de regulação de comportamento - e a real possibilidade de “prevenção” dessas condutas. De forma sucinta, questiona-se quantas pessoas antes de agir realizam uma análise das consequências práticas (jurídicas ou não) de sua decisão. Caso as ações fossem calculadas por meio do risco e das possibilidades de resposta a cada comportamento, a própria Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/06), que prevê diversos procedimentos sancionadores à violência doméstica e familiar, teria o efeito esperado na erradicação dessas práticas.

Por outro lado, mesmo como forma de sanção, questiona-se qual será o impacto produzido pela nova súmula. Pouquíssimos agressores são condenados ou acusados ainda tão jovens - e, portanto, antes de pleitear a inscrição nos quadros da OAB -, de forma que a vedação aprovada pelo Conselho Federal poderá não ter a efetividade prática que se anuncia.

Quanto à previsão de que advogados já inscritos poderão perder o registro em caso de agressão, mostra-se pertinente indagar, também, se a medida adotada em relação a advogados sobre os quais sobrevenha uma acusação (ainda que informal) de violência contra a mulher seria realmente passível de efetividade.

O processo ético-disciplinar será de responsabilidade da Seccional responsável pelo registro do advogado, a qual avaliará a idoneidade moral do agressor para manter o direito do exercício profissional. Nesse sentido, parece pertinente pensar que a avaliação dos casos será realizada entre pares, ou seja, entre sujeitos que transitam nas mesmas esferas de atividade profissional e que estão contaminados pela cumplicidade das masculinidades[5], especialmente as que estão tocadas pela prática da advocacia, apesar de todas as investidas e transformações já operadas pelas mulheres na modificação dessas solidariedades dispostas entre homens.

Ainda assim, isso nos permite lembrar o que atesta Virginie Despentes[6], que ao assinalar a avaliação dos homens sobre práticas de violência, esses costumam não identificar - em si e entre aqueles que lhes são próximos - comportamentos “imorais” ou “bárbaros”, práticas sempre atribuídas ao “outro”, especialmente constituído pela racialidade que toca os substratos da punição[7]

De uma forma ou de outra, será que ajudaria, por exemplo, a uma mulher vítima de violência, em situação de união estável ou casamento, fazer com que o agressor não possa trabalhar e deixe de fornecer renda a ela e/ou seus filhos? Isso poderia, inclusive, se tornar um obstáculo no processo de decisão da mulher vítima de violência em denunciar o seu parceiro, pois não só tal decisão poderia expor a família e a si mesma à situação de maior vulnerabilidade econômica, tendo em vista a restrição de continuidade da atividade profissional, assim como esse fator econômico de manutenção familiar constituiria uma responsabilidade à decisão da vítima em proceder a denúncia que não deveria ser sua.

Outro ponto importante a ser tratado é o precedente aberto por essa decisão. Atribuir idoneidade moral a uma pessoa pelo indiciamento ou pela condenação de um crime para exercer uma profissão (e não um cargo) de forma definitiva, abre espaço para que outros crimes, igualmente condenáveis moralmente, entrem no rol dos considerados aptos a impedir que alguém exerça uma profissão. Algo que se servisse de exemplo para outras categorias profissionais, impediria a entrada no ensino superior ou no mercado de trabalho a várias pessoas, e seria um obstáculo à formulação de novas subjetividades e produção de novas formas de vida em que educação e trabalho são invariavelmente as melhores estratégias para enfrentar qualquer processo de violência.

Parece necessário relembrar que o sistema penal é um sistema seletivo por excelência e que esse tipo de medida seria responsável por aprofundar desigualdades sociais, negando uma importante janela de ascensão social, já que a grande maioria das pessoas que são processadas e condenadas por crimes são pobres, negras e de pouca formação escolar, recorte específico da seletividade racial do sistema de justiça criminal que também se confirma nos casos de processamento de violência contra a mulher[8].

O que se verifica, a partir das reflexões propostas, é que a celebrada decisão da Ordem dos Advogados do Brasil parece ter um caráter mais simbólico (bem articulado à função simbólica da pena)[9] do que prático no que tange ao combate à violência de gênero, revelando uma política revestida de populismo punitivo. Trata-se de uma medida aprovada no contexto de grande revolta da sociedade com o recente caso de feminicídio praticado por um estudante de Direito que, dias antes do terrível crime, havia sido aprovado no exame da OAB[10]. No entanto, é sabido que a aprovação de medidas de caráter punitivo no afã de episódios revoltantes como esse acabam, na maioria das vezes, revelando-se inócuas ou, pior, capazes de produzir efeitos perversos, a exemplo da lei de crimes hediondos.

Os feminismos têm rearticulado profundamente como expor as limitações não só de um sujeito e sua representação, mas como, de maneira bem sucedida, esses termos capturados por significados necropolíticos[11] podem ser subvertidos às potencialidades germinativas. Dessa forma, reconhecer o que é passível de produzir subjetividades que não negociem com a precariedade de outros corpos, de outras vidas, é tarefa primeira para produzir uma análise das estratégias prioritárias.

Nesse sentido, como expõe Rolink, não negociar o inegociável[12] é repensar as táticas de enfrentamento e refocar as lentes como tarefa permanente, não só para revelar os sentidos punitivos presentes, obstáculo primário de afirmação da vida nesses percursos, mas especialmente para compreender que reforçar a racionalidade punitiva é mecanismo que não constitui estratégia concreta de proteção ou potencialização de vida. Ou seja, não há como negociar com mais uma produção de respostas ineficazes e insuficientes para conduzir a novas possibilidades de proteção à vida das mulheres no Brasil.

 

Notas e Referências

[1] SUDBURRY, Julia. A World Without Prisons: Resisting Militarism, Globalized Punishment,and Empire. Social Justice. Vol. 31, Nos. 1–2, 2004. pp. 09-30.

[2] Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva.  

[3] Madrid: PAIDÓS, 2017. REVISTA FÓRUM. Grupo de extermínio planeja atentado contra mulheres na UFRGS. 20 de março de 2019. Disponível em: <https://www.revistaforum.com.br/grupo-de-exterminio-planeja-atentado-contra-mulheres-na-ufrgs/>. Acesso em: 21 mar. 2019.  

[4] Mulheres deverão ser 30% dos candidatos nos cargos diretivos da OAB, mas só a partir de 2021. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI286969,51045-Mulheres+deverao+ser+30+dos+candidatos+nos+cargos+diretivos+da+OAB>. Acesso em: 24 mar. 2019.

[5] ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A soberania patriarcal. O sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 48, p. 260-290, 2004.

[6] DESPENTES, Virginie. Teoria King Kong. São Paulo: n-1, 2016. p. 30.

[7] ALVES, Dina. Rés negras, juízes brancos: uma análise da interseccionalidade de gênero, raça e classe na produção da punição em uma prisão paulistana. Revista CS, 21, pp. 97-120. Cali, Colombia: Facultad de Derecho y Ciencias Sociales, Universidad Icesi, 2017.

[8] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. MELLO, Marília Montenegro Pessoa de; ROBENBLATT, Fernanda Cruz da Fonseca; MEDEIROS, Carolina Salazar L’Armée Queiroga de. (Coord.). Entre práticas retributivas e restaurativas: a Lei Maria da Penha e os avanços e desafios do Poder Judiciário. Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2018.

[9] Sobre o assunto a partir de propostas criminológico-feminista, ver. GINDRI, Eduarda Toscani; BUDÓ, Marília de Nardin. A função simbólica do Direito Penal e sua apropriação pelo movimento feminista no discurso de combate à violência contra a mulher. Rev. direitos fundam. democ., v. 19, n. 19, p. 236-268, jan./jun. 2016.

[10]https://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI296746,51045-Agressor+de+mulher+no+RJ+passou+na+OAB+quatro+dias+antes+do+ataque+e

[11] MBEMBE, Achille. Necropolítica. Espanha: Editorial Melusina, 2011.

[12]  ROLNIK, Suely. Esferas da insurreição: notas para uma vida não cafetinada. N-1 Edições, 2018.

[13]REVISTA FÓRUM. Grupo de extermínio planeja atentado contra mulheres na UFRGS. 20 de março de 2019. Disponível em: <https://www.revistaforum.com.br/grupo-de-exterminio-planeja-atentado-contra-mulheres-na-ufrgs/>. Acesso em: 21 mar. 2019.

 

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