É fato que o sistema de franquias está ancorado numa inteligência de mercado, capaz de impulsionar as atividades econômicas agregadas a uma expertise norteadora. A eficiência do negócio e a monetização ao franqueado e ao franqueador estão na dependência de esforços mútuos, tanto na origem da ideia como na ponta — a exposição ao mercado —. Há uma relação de interdependência e de trabalho pela valorização da marca, outros objetos de propriedade intelectual, do negócio e das atividades econômicas, sucesso, em tese, condicionado ao know-how do franqueador e a eficiência do contrato relacional.
Os “contratos relacionais”, assim chamados pelos juristas, ou “de longa duração”, pelos economistas, diferem dos contratos pontuais/discretos. O objetivo dos relacionais, e aí se enquadra o contrato de franquia, é o de estabelecer uma relação perene de cooperação de longa duração. A cooperação prolongada, neste caso, tende a afastar interesses egoístas dos contratantes (oportunismo), privilegiando a boa-fé. É uma característica essencial da inteligência deste contrato-tipo, onde as partes, ainda na fase inicial da estruturação jurídica, laboram em conjunto para afastar a assimetria informacional, para o fim de dar conhecimento recíproco, de parte a parte, sobre todos os contornos do negócio, pois as lacunas devem ser interpretadas em favor do coletivo e não de ganhos em benefício de apenas uma das partes[1].
Há de fato uma dificuldade de prever atos e fatos futuros decorrentes do contrato de franquia. Dar importância, portanto, à fase inicial é, sobretudo, uma questão de sobrevivência do empresário. A nova lei enfatiza a natureza empresarial do contrato dando um firme recado no sentido de que o contratado deve ser respeitado. As más intenções ou a tentativa de oportunismo neste campo tendem a se afastar, pois, além do filtro do mercado, a jurisdição arbitral ou estatal pode ser acionada pelo lesado.
Rachel Sztajan, em sua nota tradutora da obra de Mackaay e Rousseau, explicita que os contratos de franquia contêm, como regra, cláusulas bem rigorosas ao franqueado e pequenos deslizes poderão acarretar o rompimento. Manifesta a sua preocupação com franqueadores mal intencionados, como antes nos referimos, que se utilizam do contrato para agregar ao seu negócio uma determinada praça desenvolvida pelo franqueado, principalmente aquelas mais lucrativas[2]. Trata-se, obviamente, de uma distorção do mercado de franquias e do seu ecossistema econômico.
Obviamente, tal situação não pode ser generalizada, pois tanto o franqueador como o franqueado condenam este tipo de prática lesiva, repercutidora pelas externalidades negativas que este tipo de conduta acarreta ao sistema de franquias e ao mercado. Deste modo, estabelecer formas de controle e de solução consensual, até mesmo disciplinando sobre a mediação prévia, é fundamental para este tipo de negócio, cuja tendência é perenizar, trazendo ótimos resultados em termos financeiros quando a parceria ocorre de forma saudável e de boa-fé.
É neste cenário que a regulação faz sentido, limitando a liberdade de contratar em alguns pontos sensíveis e de observação obrigatória. A nova Lei de Franquia Empresarial tem o seu conteúdo registrado em 10 artigos. Relativamente curta, não despreza a liberdade de contratar, princípio fundamental em uma economia de mercado.
A nova lei dá bastante enfoque e importância para as informações que o franqueador deve dar ao interessado pela franquia, inclusive de acesso a toda a rede de franqueados dos últimos 24 meses, e não apenas dos últimos 12 meses como era pela lei anterior. Deste modo, ao interessado (futuro fraqueado) cabe explorar esta rede antes de aderir ao contrato de franquia, pré-estabelecido, balizador também das demais relações do franqueador. Há uma margem reduzida de negociação. Todavia, em uma maior medida/margem, podem ser trabalhadas as cláusulas destinadas às soluções criativas visando à resolução de conflitos futuros, bem como aquelas balizadoras de incentivos ao adimplemento de parte a parte, em que pese o padrão contratual, em tese, estático, há espaços de flexibilidade para pautar comportamentos futuros, típicos de contratos relacionais como é o de franquia.
Dialogar com outros empresários na fase pré-contratual revela a forma de atuação do franqueador, bem como a infraestrutura disponível, as rotinas de inovação, o retorno do negócio, dentre outras situações importantes como a penetração da marca e do tipo de negócio a idealizar, segundo o perfil do mercado de consumo. A exigência de que a COF (Carta Circular de Oferta) descreva também um perfil para o seu franqueado, indicando experiência, escolaridade e outras características, revela amadurecimento do tipo de prática, de um lado, informações mais precisas e, do outro, o perfil desejado.
O objetivo do texto é atualizar, ainda no período da vacatio legis, alguns impactos trazidos pela nova Lei de Franquia Empresarial. Um deles, bastante relevante, trata-se da declaração de inaplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor (CDC) nas discussões que envolvem este contrato típico, sanando, por consequência, dificuldades encontradas em razão de interpretações divergentes dos Tribunais a este respeito.
Afaste-se, desde logo, a tendência de natural percepção de que a ausência do CDC privilegia o franqueador, pois o justo equilíbrio do contrato encontrará espaço nas fontes e na construção clássica do direito contratual, submetendo-o à legislação civil e empresarial. Isto não significa adoçamento da lesão, mas o conceito de hipossuficiência trazido pelo CDC não tem aplicação. Tal fato interfere inclusive na dinâmica processual de enfretamento, principalmente nas regras de distribuição do ônus da prova. Ressalve-se, desde logo, que mesmo nas questões de aplicação do CDC, a exemplo da inversão do ônus da prova (destinação), por exemplo, não há condicionante automática, pois se trata de uma regra de juízo, ou seja, o juiz é que poderá desencarregar o consumidor de provar fato constitutivo do direito.
Perceba-se, assim, que mesmo não aplicável o CDC, pela exclusão legal, nada impede que o juiz, desde que em decisão fundamentada, não apenas neste tipo de contrato, mas nos demais contratos interempresariais ou civis, destine o ônus da prova, total ou parcialmente, para a parte que tenha maior possibilidade de se encarregar do encargo probatório específico (CPC, artigo 373, § 1º). De igual forma, e isso tem sido cada vez mais frequente, a utilização do negócio jurídico processual prévio tem sido eficiente, até mesmo para regular este tipo de matéria (distribuição do ônus da prova), mas também outras, tais como: a forma de prestação de contas entre franqueado e franqueador (até mesmo de natureza procedimental), as variações quanto à monetização de ativos (propriedade imaterial), formas de resolução, alocação de novo franqueado, com previsão e limites à compensação do substituído, a depender dos valores por ele agregados, dentre outras situações mitigadoras dos custos de transação envolvidos.
A Lei 13.966/19 é a nova Lei de Franquia Empresarial, substituta da Lei 8.955/94. O período de vacatio legis, reservado para a adaptação dos contratos a uma nova realidade, terá seu termo em 26 de março de 2020, considerando-se que a lei entrará em vigor em 27 de março de 2020, ou seja, 90 dias contados da sua publicação (27 de dezembro de 2020, data da promulgação e da publicação no DOU).
As alterações não foram intensas, mas sensíveis em aspectos fundamentais, revelando-se pontos importantes de atenção. Percebe-se que o conteúdo foi adaptado para a linguagem empresarial, afastando a ideia de hipossuficiência de quaisquer das partes da relação. Assim, mais do que propriamente impor grandes mudanças, algumas sutilezas são sentidas e repercutidas na prática.
Participar deste tipo de negócio exige experiência empresarial, certa “praia”. É um mercado que não comporta amadores. Assim a nova lei, ao declarar expressamente que a relação entre franqueado e franqueador não é uma relação de consumo, na verdade devolve ao pacto as suas raízes originárias, não vinculadas ao CDC. Trata-se de uma relação tipicamente empresarial, interpretada, portanto segundo a legislação civil empresarial, não tendo qualquer espeque na relação consumerista.
O fato de o contrato não estar sujeito ao CDC não significa que não deva preencher os requisitos legais previstos para o contrato-tipo ou típico, pois regulado. A liberdade das partes no contrato interempresarial é plena, respeitados os limites legais impostos a determinado segmento, como é o caso, pois o objetivo do legislador é dar condições mínimas de viabilidade, calcadas no equilíbrio contratual de lado a lado.
Destacam-se aqui alguns impactos trazidos pela nova lei, que interferem na dinâmica desta relação, considerando-se o contrato e a estrutura jurídica agregada, a saber:
a) Como acima ficou consignado, o contrato de franquia empresarial não se submete à legislação consumerista, pois se trata de uma relação empresarial, vinculada a um contrato interempresarial (art. 1º da Lei 13.966/2019). De igual forma, não há mais dúvidas de que a legislação trabalhista não se aplica a esta relação entre franqueador, franqueado e seus empregados, não havendo viabilidade da responsabilização subsidiária do franqueador, cada qual responsável pelos vínculos compromissados em sua estrutura (artigo 1º), mesmo em períodos de treinamento, momento em que o franqueador estabelece apenas um vínculo orientativo e de consultoria, em relação ao franqueado e seus empregados.
b) Segundo a regra do § 2º do artigo 1º, a franquia poderá ser adotada por empresa privada, empresa estatal ou entidade sem fins lucrativos, independentemente do segmento em que desenvolva as atividades. Tal previsão dá às estatais a oportunidade de explorar as suas atividades econômicas também sob a égide do sistema de franquias, o que pode ser um bom negócio para empresas vinculadas ao sistema financeiro, as empresas de saneamento, energia dentre outras. O veto presidencial (parcial) foi ao artigo 6º que vinculava as referidas entidades (empresas públicas, as sociedades de economia mista e as entidades controladas direta ou indiretamente pela União, Estados ou Distrito Federal) ao disposto na Lei 8.666/93, sob o argumento de que tal previsão é incongruente com a Lei das Estatais (Lei 13.303/2016), situação a ser resolvida pela submissão do veto aos Parlamentares.
c) A Circular de Oferta de Franquia (COF) deverá ser escrita em língua portuguesa e entregue ao candidato a franqueado, no mínimo, 10 (dez) dias antes da assinatura do contrato ou pré-contrato de franquia ou, ainda, do pagamento de qualquer tipo de taxa.
Tal documento, formal e escrito, é o principal marco para o início da parceria e elemento indispensável do contrato de franquia empresarial, sem o qual a atividade não se desenvolve segundo as características modelares para este tipo de negócio.
O artigo 2º da lei em comentário traz o conteúdo mínimo que a COF deve agregar, destacando-se: - o histórico resumido do negócio do franqueado; - a apresentação dos balanços e demonstrações financeiras da empresa franqueadora dos últimos 2 exercícios, o que permite conhecer a higidez econômica da atividade; - a descrição detalhada do negócio e das atividades que submetem o franqueado; - o perfil do franqueado ideal (experiência, escolaridade e outras características), o que se coaduna com as boas práticas de governança empresarial, que melhoram o prognóstico de sucesso mútuo do contrato relacional; - esclarecimento sobre o total estimado em investimentos, taxas de filiação, valor das instalações, equipamentos, estoque inicial e condições de pagamento; - informações claras sobre todas as contraprestações, incluindo-se a remuneração periódica pelo uso do sistema, taxa de publicidade e seguro mínimo; - relação completa de todos os franqueados, subfranqueados ou subfranqueadores da rede e, também, dos que se desligaram nos últimos 24 (vinte quatro) meses, com os respectivos nomes, endereços e telefones, permitindo-se, assim, informações mais detalhadas sobre o mercado, sobre a forma de administração e gerenciamento do negócio, reduzindo-se a assimetria informacional, tema caro à análise econômica do direito, que repercute em redução ou aumento dos custos de transação de parte a parte; - informações sobre realizações tecnológicas futuras; - regras de transferências e regras de limitação à concorrência, dentre outras situações elencadas pelo legislador.
Os aspectos aqui enumerados não excluem os demais elementos da lista da COF, mas são entendidos como fundamentais para a compreensão dos impactos da nova lei de franquia empresarial nas futuras relações do gênero e no mercado.
d) Contrariando ao disposto no artigo 8º da lei revogada, a nova lei, em seu artigo 7º, inciso II, permite, expressamente, a formalização de contratos internacionais, bem como prevê a possibilidade de fixação de foro internacional para a resolução de conflitos (foro de um dos contratantes), hipótese em que as partes deverão constituir e manter representante legal ou procurador devidamente qualificado e domiciliado no país do foro definido, com poderes para representá-las administrativa e judicialmente, inclusive para receber citações (art. 7º, § 3º).
A própria lei, no § 2º do artigo 7º, traz o conceito de contrato internacional de franquia, ao disciplinar que: “para os fins desta Lei, entende-se como contrato internacional de franquia aquele que, pelos atos concernentes à sua conclusão ou execução, à situação das partes quanto a nacionalidade ou domicílio, ou à localização de seu objeto, tem liames com mais de um sistema jurídico”.
Estes são alguns pontos fundamentais a serem destacados, que deverão ser observados a partir do início de vigência da nova lei, que é vista com otimismo pelo setor, motivo de comemoração pela Associação Brasileira de Franchising - ABF. Sob a nota de impulsionamento dos negócios do setor, o Presidente da ABF, declarou: “a Lei do Franchising de 1994 teve um papel fundamental no fortalecimento do nosso mercado. Era uma lei simples, direta e que previa condições equilibradas para que os entes privados realizassem negócios de forma transparente e segura. No entanto, após mais de 20 anos, atualizações eram necessárias. Com esta nova regra, conseguimos manter as conquistas originais, deixar mais claros alguns pontos e acrescentar dispositivos que podem acelerar, por exemplo, a abertura de novas unidades e, portanto, o crescimento do setor como um todo[3] .
Ficam aqui registrados alguns aspectos fundamentais, no que se refere a traços distintivos e aproximativos entre as Leis 13.966/2019 (nova) e 8.955/94 (revogada).
Para o direito empresarial a nova regulação repercute de forma positiva, considerando-se os avanços da linguagem e a segurança jurídica no enlace entre franqueador e franqueado, prevendo-se uma redução dos custos de transação não apenas em razão da declaração de inaplicabilidade do CDC e da legislação trabalhista, mas, especialmente, pelo trabalho desenvolvido em prol da redução da assimetria informacional, o que acarreta maior transparência e equilíbrio no contrato de natureza relacional, idealizado para ter longa duração, aumentando ainda mais o prognóstico colaborativo para com o desenvolvimento da economia nacional.
Notas e Referências
[1] MACKAAY, Ejan. ROUSSEAU, Stéphane. Análise econômica do direito. 2ª. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 468-469.
[2] SZTAJAN, Rachel – Nota tradutora (MACKAAY, Ejan. ROUSSEAU, Stéphane. Análise econômica do direito. 2ª. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p.469).
[3] Portal ABF. Disponível em <https://www.abf.com.br/abf-comemora-nova-lei-de-franquias/>. Acesso em 19/02/2020.
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