A nova Lei de Abuso de Autoridade e o exercício da advocacia

25/10/2019

Coluna Vozes-Mulheres / Coordenadora Paola Dumont

Nova Lei de Abuso de Autoridade

Publicada no dia 05 de setembro de 2019, a então denominada nova Lei de Abuso de Autoridade (Lei nº 13.869), prevê impactos direitos não só na atuação dos advogados – haja vista a criminalização da violação de seus direitos e prerrogativas –, como também na atuação dos servidores públicos e militares ou pessoas a eles equiparadas, dos membros do Poder Legislativo, do Poder Executivo, do Poder Judiciário, do Ministério Público, e dos membros dos Tribunais ou Conselhos de Contas (art. 2 da Lei 13.869/2019).

Tipo penal “aberto”

A nova Lei de Abuso de Autoridade não foi recebida com bons olhos por boa parte dos membros do Ministério Público, do Poder Judiciário e das Policias, por considerarem que o texto da Lei impõe limitações ao exercício de suas respectivas atividades profissionais.

Dentre as críticas, pontua-se aqui aquela destinada à redação dada aos artigos 9 e 20, por constituírem tipos penais “abertos”, seja dizer, não estão definidas  com precisão e de forma cristalina as condutas proibidas.  

Neste ponto, me parece que o legislador pecou mais vez com a inserção de expressões vagas e indeterminadas, permitindo ao juiz no caso concreto, realizar a interpretação da maneira que melhor lhe aprouver. Vejamos.

Art. 9 da nova Lei de Abuso de Autoridade

Um dos fundamentos que legitima a decretação da prisão cautelar é a “garantia da ordem pública”, expressão vaga e indeterminada prevista no art. 312 do Código de Processo Penal, e que é lançada de maneira genérica em boa parte das decisões que decretam prisões cautelares. Da forma como definida no diploma processual questiona-se: O que vêm a ser “ordem pública”? Qual é o seu conceito? A “ordem pública” esta diretamente relacionada ao agente infrator ou ao tipo penal ou aos dois?

O Legislador, objetivando evitar abusos nas decisões que decretam prisões cautelares, redigiu o art. 9 prevendo como crime: “Decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais”. E quais seriam as hipóteses legais? Voltamos então ao art. 312 do Código de Processo Penal e damos de cara com a ordem pública, expressão que permanece lacunosa.

Será que o legislador incorreu no mesmo erro por negligência ou apenas não pretendeu enfrentar o problema na origem – determinar e delimitar expressões vagas preexistentes?

Creio ter sido a segunda opção, posto que no art. 1º, §2º da nova Lei de Abuso de Autoridade, o legislador fez a ressalva: “A divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade”. Ora, não permaneceu tudo igual? Não permaneceu nas mãos do juiz o poder de realizar a interpretação que quiser? Penso que sim. Mas, o fato é que alguns juízes, depois da publicação da lei (que ainda esta em período de “vacatio legis”), já proferiram decisões revogando medidas cautelares ao argumento de que se não o fizessem, poderiam eventualmente incorrer em abuso de autoridade.

Art. 20 da nova Lei de Abuso de Autoridade

De igual modo é o disposto no art. 20 da nova Lei – “impedir, sem justa causa, a entrevista pessoal e reservada do preso com seu advogado” –, que deixa de descrever taxativamente o que seria considerado como “justa causa” apta a impedir que o advogado tenha entrevista pessoal e reservada com seu cliente.

Por tais razões percebe-se que a crítica feita aos referidos tipos penais tem fundamento e é possível, que na prática, a criminalização de tais condutas não sane o problema enfrentado hoje na esfera penal.

Exercício da advocacia

Ressalvadas as criticas acima, destaca-se que a nova Lei de Abuso de Autoridade criminalizou as violações aos direitos e prerrogativas dos advogados.

Neste contexto, a Diretoria do Conselho Federal da OAB comemorou a derrubada dos vetos presidencial, afirmando tratar-se de “uma vitória histórica da advocacia. É, sobretudo, uma conquista da sociedade, já que o advogado, indispensável à administração da Justiça, precisa de instrumentos para que a defesa tenha paridade de armas para que a justiça se realize de forma equilibrada”.

Não obstante a comemoração é de fato lamentável que tenhamos que criminalizar condutas para fazer cumprir ditames constitucionais e legais já existentes, isso porque, o exercício da advocacia já é assegurado na Constituição Federal, em Leis Federais e em Pactos Internacionais recepcionados pelo Brasil.

Em verdade, a criminalização de condutas ou o recrudescimento de penas de modo geral, por vezes não tem se mostrado eficaz no que tange a redução da prática de condutas ilícitas.

Por outro lado, sabe-se que pelo princípio da ofensividade, é possível haver a criminalização, desde que, ressalta Bittencourt[1], “haja pelo menos um perigo concreto, real e efetivo de dano a um bem jurídico penalmente protegido”. A intervenção estatal em termos de repressão penal se justifica, portanto, nos casos em que houver efetivo e concreto ataque ao bem jurídico tutelado.

É neste cenário de concreta violação aos direitos e prerrogativas dos advogados que surgem, na nova Lei de Abuso de Autoridade, artigos que visam criminalizar condutas com o objetivo de fazer cumprir ditames constitucionais e legais já existentes.

Destaco aqui alguns episódios que vivenciei na prática da advocacia criminal e que violaram não só minhas prerrogativas enquanto advogada, como também o direito dos meus clientes:

Condução coercitiva

Em setembro de 2019, recebi o telefonema de um jovem: “Dra., a Polícia Civil acabou de levar meu irmão para a delegacia”. Mais que depressa perguntei se havia sido apresentado o mandado de prisão ou se algo de ilícito fora apreendido em posse do irmão dele e para a minha surpresa, a resposta para as duas perguntas foi “NÃO”.

Na delegacia, depois de muito insistir consegui ver o meu cliente. Indaguei a ele como os fatos teriam ocorrido e ele limitou-se a dizer que estava saindo de casa quando foi abordado por policiais civis e conduzido, contra a sua vontade à delegacia. Pedi ao Inspetor (o Delegado de Polícia sequer estava presente na delegacia) que me apresentasse o mandado de prisão e adivinhem: Não havia mandado de prisão, não havia sequer intimação para que ele comparecesse a delegacia, mas lá estava ele, conduzido coercitivamente.

Sobre a condução coercitiva, no dia 13.07.2018, por maioria de votos, “o Plenário do Supremo Tribunal Federal[2] (STF) declarou que a condução coercitiva de réu ou investigado para interrogatório, constante do artigo 260 do Código de Processo Penal (CPP), não foi recepcionada pela Constituição de 1988. O emprego da medida, segundo o entendimento majoritário, representa restrição à liberdade de locomoção e viola a presunção de não culpabilidade, sendo, portanto, incompatível com a Constituição Federal”[3].

Percebam, a decisão do Supremo foi proferida há mais de 01 ano e ainda assim, a autoridade policial não mediu esforços para determinar a condução coercitivamente um investigado até a delegacia para ser interrogado.

Visando coibir tais conduções, o art. 10 da nova Lei de Abuso de Autoridade prevê pena de 01 a 04 anos e multa para quem “decretar a condução coercitiva de testemunha ou investigado manifestamente descabida ou sem prévia intimação de comparecimento ao juízo”.

 

Comunicação reservada entre advogado e preso

Outro ponto importante, eu diria até que “o mais importante” é o acesso do advogado ao cliente detido ou recolhido em estabelecimentos civis ou militares.

Certa vez fui até um quartel das forças para falar com um cliente militar que estava preso preventivamente. Quando entrei na sala, dois militares se posicionaram bem próximos a mim dizendo que não seria possível uma conversa reservada com aquele cliente. Mas pode isso? Pode a autoridade militar mitigar o direito do advogado e da pessoa presa/detida sob sua guarda? Não. Não pode.

Sobre o tema, a Lei 8.906/94 dispõe em seu art. 7, inciso III, que é direito do advogado “comunicar-se com seus clientes, pessoal e reservadamente, mesmo sem procuração, quando estes se acharem presos, detidos ou recolhidos em estabelecimentos civis ou militares, ainda que considerados incomunicáveis”.

E mais, o Pacto de San José da Costa Rica ratificado pelo Brasil, dispõe em seu art. 8º, alínea d, que é “direito do acusado de defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor”.

Percebam mais uma vez que há legislação vigente que garante tais direitos e prerrogativas, todavia, são constantemente violados.

Objetivando punir tal conduta é disposto no art. 20 da nova Lei de Abuso de Autoridade – que embora seja um tipo penal aberto –, prevê pena de 06 meses a 02 anos para quem “impedir, sem justa causa, a entrevista pessoal e reservada do preso com seu advogado” e no art. 43, que prevê pena de 03 meses a 01 ano para quem “violar direito ou prerrogativa de advogado previstos nos incisos II, III,[4] IV e V do caput do art. 7º da Lei 8.906/94”.

Resta clara a violação dos direitos e prerrogativa dos advogados ao livre e efetivo exercício da profissão que por consequência, viola de igual modo, direitos fundamentais dos cidadãos.

Assim, em pesem as criticas (sobretudo aquelas direcionadas aos tipos penais abertos), a nova Lei de Abuso de Autoridade veio em boa hora e tem por objetivo reduzir os abusos cometidos por autoridades e possibilitar a concretização da paridade de armas entre as partes no processo penal.

 

Notas e Referências

[1] Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte geral 1 – 20. Ed. Ver. Ampl e atual – São Paulo: Saraiva, 2014. P. 61

[2] A decisão foi tomada no julgamento das Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPFs) 395 e 444, ajuizadas, respectivamente, pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

[3] http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=381510

[4] Art. 7º, III, Lei 8.906/94 - comunicar-se com seus clientes, pessoal e reservadamente, mesmo sem procuração, quando estes se acharem presos, detidos ou recolhidos em estabelecimentos civis ou militares, ainda que considerados incomunicáveis;

 

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