A NEUTRALIDADE DA REDE COMO PRINCÍPIO DA DEMOCRACIA NA INTERNET  

17/10/2020

O conceito de Neutralidade da Rede tem seu fundamento baseado na própria arquitetura da rede, pensada para ser livre e completamente feita por seus usuários, onde eles são produtores de conteúdo, espalhando informações, interagindo entre si, em razão do protocolo de comunicação adotado, expressado pela característica “end to end”[1]. Nessa interação, a transferência de pacotes de dados ocorre ponto a ponto de maneira livre e indiscriminada, independentemente de sua origem ou de sua natureza.

O termo “neutralidade da rede” foi utilizado e difundido, em um primeiro momento pelo Professor Tim Wu, da Columbia Law school, em 2003, por meio de seu artigo “Neutralidade da Rede, discriminação na banda larga”, e desde então, especialistas do mundo todo resolveram adotar essa nomenclatura ao se referirem a essa transferência indiscriminada de dados em arquitetura “end to end”. Segundo Wu, o conceito de neutralidade seria:

“(...) uma rede pública de informações que se pretende o mais útil possível aspira a tratar igualmente todos os conteúdos, sites e plataformas. Isto permite que a rede transporte todo tipo de informação e suporte todo tipo de aplicativo. O princípio sugere que as redes de informação são mais valiosas quando elas são menos especializadas – quando elas são uma plataforma para múltiplos usos, presentes ou futuros”.[2]

Outra complementação interessante para esse conceito seria a ideia de que a arquitetura da internet foi idealizada para funcionar em seu máximo proveito quando não há especialização em sua aplicação, ou seja, a plataforma poderá manter seu uso durante vários anos sem perder sua importância ou relevância como uma rede de informações[3].

Tendo isso em mente, as operadoras de telecomunicações ou provedores de acesso, não podem efetuar nenhum tipo de bloqueio em relação a forma da utilização dos pacotes de dados por seus usuários, traçando apenas limites fáticos da velocidade de banda larga contratada.

Porém, a neutralidade da rede é mitigada em algumas situações específicas, permitindo que ocorram discriminações de pacotes de dados, para que seja preservada a integridade do usuário e da prestação do serviço de internet adequado. O diretor-presidente do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR, Demi Getschko, a respeito de tais exceções:

“E exceções? Apenas para citar uma, há práticas mal-intencionadas na rede, que visam minar a própria neutralidade dela e que, portanto, devem ser tratadas como exceção, para a própria preservação da neutralidade ampla. Parece uma contradição, mas isso ocorre quando se detecta um ataque do tipo “negação de serviço”, quando alguém quer impedir que um site ou um serviço seja acessível aos demais usuários, usando para isso de meios automáticos que geram uma sobrecarga artificial.

A forma de amenizar esse tipo de ataque passa por filtrar endereços da origem do ataque. Ou seja, pode haver necessidade específica de interferir no processo “fim-a-fim” da internet, exatamente para preservá-lo neutro.” [4]

Esse modo de operar da internet não é algo novo no mundo da comunicação, e também existe na telefonia ou correios, que são protegidos institucionalmente e pelos ordenamentos jurídicos ao redor do mundo. Mas sem dúvidas, a internet foi o meio de comunicação que mais revolucionou o mundo, e consequentemente, o meio que mais gerou discussões e moveu paixões pela “grande mídia” e grandes grupos econômicos de comunicação em geral.

A forma livre da rede é muito criticada pelos provedores de acesso, principalmente com o recente “boom” dos serviços de streaming, que gerou ainda mais críticas e movimentos, acerca da liberdade indiscriminada dada aos usuários da rede. As grandes operadoras de telecomunicações alegam que os serviços de streaming consomem uma grande quantidade de dados em relação à utilização da internet para simples navegação, e que para transportar essa quantidade de dados, suas estruturas físicas precisam ser melhoradas, causando uma oneração nunca antes experimentada por essas operadoras.

Elas defendem a ideia de que haja uma fragmentação do uso da internet, similar ao modelo adotado por operadoras de tevês por assinatura, cobrando separadamente o acesso do usuário de acordo com o uso que ele fará.

Essas operadoras ainda alegam que o custo com essas melhorias está sendo repassado ao preço pago pelo usuário do serviço, e ainda, que aqueles usuários que não utilizam os serviços de streaming estão pagando mais por conta daqueles que os utilizam. E se houvesse uma fragmentação por utilização pessoal, o custo de ter uma banda larga diminuiria, permitindo o acesso à internet por uma maior parcela da população.

As alegações feitas pelas operadoras são realmente um forte argumento contra a neutralidade da rede, mas a experiência empírica nos mostra um outro lado desses argumentos, algo mais parecido com uma realidade alternativa apocalíptica, onde essas operadoras cobram os consumidores pelo acesso à determinados sites e também tem o poder de limitar o acesso desse usuário à determinados domínios ou serviços[5].

A internet se tornou uma ferramenta de democratização da informação, exatamente por sua arquitetura livre, e delegar o poder de selecionar aquilo que o usuário pode acessar à um particular é extremamente perigoso, abrindo portas para que abusos sejam cometidos contra esses usuários e até mesmo, que sejam cometidos contra uma nação ou sua ordem econômica.

Mas não há de se confundir a velocidade e tamanho de conexão com a discriminação de dados, o próprio Tim Wu já declarou nesse sentido em entrevista dada à pesquisadora do CTS da FGV-RJ, Joana Varon, nos termos de:

“É perfeitamente legítimo que o provedor de Internet ofereça uma conexão mais rápida ou mais banda por um preço mais alto, da mesma forma como, ao usarmos mais eletricidade, pagamos mais”, disse o professor da Universidade de Columbia. “Isso é normal e não diz respeito à neutralidade de rede. Mas o que eles querem fazer é ter o poder de bloquear certas coisas e forçar você a consumir outras, cobrando preços diferentes para o tipo de conteúdo que se acessa. Isso será ruim para todos, mais caro e pior”.[6]

 

Ademais, ainda são controversos os modos de aplicação da neutralidade da rede em âmbito nacional e mundial, e devem ser analisados de modo a afastar grandes paixões e argumentos falaciosos que alteram o entendimento das grandes massas e eventualmente causam um efeito de histeria coletiva acerca das regulações da neutralidade da rede.

Portanto, entende-se que o princípio da neutralidade da rede, calcado na própria arquitetura livre da internet, com tratamento igualitário para todas as informações e aplicações, é fundamental para a manutenção da ferramenta democrática que é a internet nos dias atuais e esse princípio deve ser preservado pelo ordenamento pátrio para que a arquitetura da internet seja preservada e continue funcionando de maneira igualitária para todos seus usuários.

 

Notas e Referências

[1] WU, Tim. Network neutrality, broadband discrimination. J. on Telecomm. & High Tech. L., v. 2, p. 141, 2003.

[2] Idem.

[3] Disponível em: http://www.timwu.org/network_neutrality.html. Acessado em 10 de outubro. 2020.

[4]Disponível em: http://blogs.estadao.com.br/demi-getschko/a-internet-nasceu-neutra-e-deve-permanecer-assim/. Acessado em 09 de jan. 2019.

[5] Tal argumentação foi trazida por Pedro Henrique Soares Ramos em sua tese de mestrado pela Fundação Getúlio Vargas: “Arquitetura da Rede e Regulação: a neutralidade da rede no Brasil”, na página 168 desta dissertação ele apresenta um quadro sobre a possível fragmentação nos planos de internet.

[6] Disponível em: <https://oglobo.globo.com/economia/tim-wu-pai-do-conceito-de-neutralidade-de-rede-apoia-marco-civil-da-internet-no-brasil-8695505>. Acesso em: 05 jan. 2019.

 

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