A Necropolítica da Pandemia do COVID – 19  

29/01/2021

Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

Em texto anterior denominado Por onde anda a Barbárie?, igualmente publicado na coluna do Empório do Direito, promoveu-se, através de manifestações do então Ministro da Educação Abraham Weitraub, uma síntese de duas linhas de pensamento político que provinham suporte ao atual Governo Federal. No texto apresentou-se que a primeira linha de pensamento político operava através da violência ao pensamento antagônico, cristalizada nos termos do “pega comunista” e “xinga” e que, assim, “instigava o pensamento único, o ódio e o fascismo social[1]”. A segunda linha de pensamento era relacionada a redução de verbas, em caráter punitivo, para as Universidades que estariam fazendo “balburdias” e o texto defendeu a necessidade de manutenção do livre pensamento acadêmico, sem interferências ideológicas do poder executivo.

Na época expôs-se, assim, as sérias preocupações associadas a essas linhas de pensamentos antidemocráticos e contrários ao vigente Estado de Direito, que poderiam levar-nos a atos de barbárie. Infelizmente, na esteira da barbárie, entrou-se em uma pandemia global causada pelo COVID – 19 e, com ela verificou-se nacionalmente o incremento do pensamento autoritário para algo ainda mais nefasto. Aprofunda-se, assim, essa temática em duas perspectivas.

O primeiro ponto a ser elencado destaca o vertical escalonamento, durante a pandemia do COVID – 19, do pensamento autoritário do Governo Federal em direção à necropolítica. A necropolítica tem como síntese o uso do poder social e político para decidir quem vive e quem morre dentro um determinado espaço. Através do seu expoente mais destacado, Achille Mbembe[2], a necropolítica propõe a morte como um artifício político, como um mecanismo de gestão do próprio Estado. Normalmente, a necropolítica no Brasil é direcionada a uma determinada raça (negra), com elemento de classe social (baixa), como reflete Silvio Luiz de Almeida[3]. No entanto, a atuação do Governo Federal durante a pandemia tem exposto outra geografia da necropolítica brasileira, que é elemento central de análise deste texto: a política de morte dos idosos.

Mesmo que se especule que o número real de mortos por COVID-19 seja consideravelmente maior, hoje temos um número oficial de mais de duzentos e dez mil mortos durante a pandemia. É de saber notório que o número de óbitos associados ao vírus é bastante superior entre os idosos.

De acordo com os dados apresentados pelo Poder 360, 71,4% dos mortos pelo vírus são da faixa etária acima 60 anos, ou seja, do total oficial (estimado) de mortos, cento e cinquenta mil pertenceriam a esse grupamento social[4]. Ademais, a pesquisa “Estimativas de Impacto da COVID-19 na Mortalidade de Idosos Institucionalizados no Brasil”, estima que no Brasil, só em 2020, ocorreram 107.538 óbitos por COVID-19 de idosos institucionalizados[5].

Deste modo, longe desse texto buscar uma precisão estatística dos idosos mortos pelo pandemia do COVID – 19, o seu objetivo é trazer à tona algo profundamente nefasto: a racionalidade operativa da necropolítica durante a pandemia no Brasil. Assim, a razão operativa da necropolítica no Brasil durante a pandemia é, em seu âmago, a destruição física de idosos.

Essa é, portanto, a principal faceta da necropolítica da pandemia. Isso de forma alguma significa que não há a operabilidade das categorias de raça e de classe, pois certamente as condições sanitárias e a capacidade de isolamento no Brasil são profundamente desigual. No entanto, por características intrínsecas da letalidade do vírus e da gestão da pandemia pelo Governo Federal há, nesse momento, uma necropolítica destruição em massa de idosos.

O segundo ponto a ser abordado associa-se com recente entrevista concedida pela jurista Daisy Ventura, especialista na relação entre pandemia e direito internacional. Na entrevista, a acadêmica afirma que “há indícios significativos para que autoridades brasileiras, entre elas o presidente, sejam investigados por genocídio”[6]. De acordo com a autora, o governo age de forma clara contra a saúde pública, disseminando falsas informações sobre a doença, semeando o negacionismo e obstaculizando as medidas de combate e prevenção a COVID19 de outros poderes. Adentrando no tema do atual Governo Federal e genocídio, a autora expõe:  

É necessário entender que existem duas grandes vertentes para dizer da pertinência dos crimes contra a humanidade, inclusive o de genocídio. Uma é a vertente da comunicação e a outra é o ataque contra os Governos dos Estados. A comunicação é absolutamente criminosa, porque incita as pessoas a pensarem que a doença não é tão grave, incita a não se protegerem, e existe a obstrução constante por atos, constrangimentos e ameaças aos Governos locais que conduzem a resposta à pandemia.

Nesse sentido, a Lei nº 2.889/1956, que define e pune o crime de genocídio, expressa em seu artigo primeiro que comete crime de genocídio “quem, com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, ou religioso”. Na entrevista, Daisy Ventura expressa a correta necessidade de investigar-se o crime de genocídio de populações indígenas. No entanto, o presente texto complementa que também é fundamental apurar a responsabilidade do Governo Federal no genocídio de idosos no país, visto sua atuação sistemática, negando a gravidade da pandemia, promovendo aglomeração, não fornecendo testes em quantidades necessárias para rastreamento de infectados, defendendo métodos de prevenção que não possuem comprovação científica e não promovendo um plano de combate efetivo ao COVID – 19 que leva a exterminação em massa do grupo nacional. O Brasil é o único país no globo cujo presidente não comemorou o início da vacinação.

No entanto, o leitor atento vai perguntar, mas por qual motivo qualquer governo agiria com interesse em exterminar idosos?

Não há certezas absolutas nessa resposta, mas é importante referir que recentemente tivemos uma reforma da previdência, sob a narrativa que o sistema previdenciário estaria quebrado e seria necessário cortar gastos. É fato que a necropolítica da pandemia, através da exterminação em massas de idosos, pode ser uma excelente opção econômica de contributo aos equilíbrio fiscal das aposentadorias.

Mais uma vez, a melhor resposta a essa grave situação é a ciência nacional promovida pelas Universidades e Institutos de Pesquisa como o Butantã e Fiocruz, que, nesse momento, fornecem duas vacinas para o combate ao vírus no território brasileiro. Infelizmente a situação da imunização nacional ainda é incerta frente a nefasta necropolítica de exterminação de idosos na pandemia.

No entanto, uma certeza existe: o conhecimento cientifico é ainda o que nos salva e a batalha pela manutenção das Universidades e dos Institutos de Pesquisas, sob o lema “público, gratuito e de qualidade” é primordial para o futuro do país, pois a “barbárie pode estar sempre mais perto que se imagina”[7].

 

Notas e Referências

[1] Conforme expresso no texto Por onde anda a Barbárie?, o conceito de fascismo social utilizado faz referência ao conceito de Boaventura de Sousa Santos e encontra-se disponível em: Santos, Boaventura de Sousa (2003) Poderá o Direito Ser Emancipatório? Revista Critica de Ciências Sociais (65), pp. 3-76.

[2] MBEMBE, Achille (2018) Necropolítica. São Paulo, editora N-1.

[3] Vide ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural?. Belo Horizonte (MG): Letramento, 2018.

[4] A referência aos dados estão disponíveis em https://www.poder360.com.br/coronavirus/conheca-a-faixa-etaria-dos-mortos-por-covid-19-no-brasil-e-em-mais-4-paises/

[5] Machado, Carla Jorge, et al (2020) Estimativas de impacto da COVID-19 na mortalidade de idosos institucionalizados no Brasil. Ciência e Saúde Coletiva: Rio de Janeiro, vol.25, nº.9. Dados disponíveis em https://doi.org/10.1590/1413-81232020259.14552020 (data de acesso 20/01/2021).

[6] Entrevista “Há indícios significativos para que autoridades brasileiras, entre elas o presidente, sejam investigadas por genocídio” com jurista Deisy Ventura, especialista na relação entre pandemias e direito internacional, no Jornal El País, 22 de julho de 2020, feita pela Eliane Brum e disponível em

https://brasil.elpais.com/brasil/2020-07-22/ha-indicios-significativos-para-que-autoridades-brasileiras-entre-elas-o-presidente-sejam-investigadas-por-genocidio.html (data de acesso 20/01/2021).

[7] Frase final do texto Por onde anda a Barbárie?.

 

Imagem Ilustrativa do Post:(2017.05.13) Dia D da vacina contra Gripe // Foto de: Prefeitura de Itapevi // Sem alterações

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