A necessidade da prisão preventiva diante da ameaça à ordem pública: não temos provas, mas temos convicção

28/09/2016

Por Ana Luíza Teixeira Nazário e Érica Côrrea Simões Pires - 28/09/2016

Nos tempos atuais, a prisão preventiva se despe do caráter de exceção e veste a toga do insaciável desejo de “segurança” clamado pela mídia e pela população. Os magistrados sofrem pressão para decretar a prisão preventiva não como medida de cautela diante de uma efetiva situação de perigo, mas sim como forma de punição antecipada, a fim de provar para a sociedade que as instituições estão “combatendo a criminalidade” e fazendo jus aos altos impostos pagos pelos “cidadãos de bem”.

Poucos são aqueles que resistem ao “clamor popular” e transcendem o senso comum, motivando suas decisões dentro do que prevê a lei e, principalmente, conforme cada caso, não se utilizando de recursos retóricos do legislador.

A serviço disso está a ordem pública, argumento genérico, indeterminado e incompatível com a segurança jurídica, que tem servido para prender em nome de inúmeras pseudojustificativas (reiteração delitiva do agente, clamor social, incentivo aos órgãos de persecução penal, etc.).

Em síntese, “quase tudo serve para prender em nome da ordem pública, menos a ocorrência de uma efetiva situação cautelanda”.[1]

Como se percebe, dentro da cláusula genérica “garantia da ordem pública” cabe a argumentação que bem aprouver o magistrado, mesmo que carente de qualquer dado fático, objetivo e concreto que lhe sustente.

A respeito do indeterminismo do conceito de ordem pública, o jurista Fauzi Choukr[2] assevera:

Nem sequer o Supremo Tribunal Federal mostrou­se capaz de fornecer linhas de atuação, deixando ao sabor arbitrário do julgador (vez que inexistem parâmetros) no caso concreto entender o que é ou não ordem pública. A ausência de parâmetro faz com que aflore o uso da fórmula em seu aspecto puramente retórico, nela podendo ser inserida ou retirada a hipótese desejada sem que trauma formal algum seja sentido.

A prisão preventiva em razão da ordem pública, pelo seu conceito incerto, subjetivo, genérico e amplo, rompe com o princípio da legalidade. E ainda, associa à prisão preventiva uma finalidade exclusivamente repressiva, olvidando que o Direito é instrumento de proteção da minoria, inclusive contra a maioria, em nome dos direitos fundamentais.

Em brilhante manifestação emitida em parecer ministerial, o Procurador de Justiça Rômulo de Andrade Moreira contesta a utilização evasiva e abusiva da suposta necessidade de prisão preventiva em nome da garantia da ordem pública:

Lamentavelmente continuamos a ter como um dos requisitos para a decretação da prisão preventiva a “garantia da ordem pública”, conceito por demais genérico e, exatamente por isso, impróprio para autorizar uma custódia provisória que, como se sabe, somente se justifica no processo penal como um provimento de natureza cautelar (presentes o fumus commissi delicti e o periculum libertatis). Há mais de dois séculos Beccaria já preconizava que “o réu não deve ficar encarcerado senão na medida em que se considere necessário para o impedir de escapar-se ou de esconder as provas do crime”, o que coincide com dois outros requisitos da prisão preventiva em nosso País (conveniência da instrução criminal e asseguração da aplicação da lei penal). Decreta-se a prisão preventiva no Brasil, muitas vezes, sob o argumento de se estar resguardando a ordem pública, quando, por exemplo, quer-se evitar a prática de novos delitos pelo imputado ou aplacar o clamor público. Não raras vezes vê-se prisão preventiva decretada utilizando-se expressões como “alarma social causado pelo crime” ou para “aplacar a indignação da população”, e tantas outras frases (só) de efeito.[3]

Não podemos deixar de lembrar dos ensinamentos do Des. Amilton Bueno de Carvalho que, em sede de Habeas Corpus, apontou o fundamento prisional em questão como genérico, antigarantista e insuficiente se ausente de qualquer base fática, objetiva e concreta:

HABEAS CORPUS. PRISÃO PREVENTIVA. REQUISITOS LEGAIS. PRESUNÇÃO DE PERICULOSIDADE PELA PROBABILIDADE DE REINCIDÊNCIA. INADMISSIBILIDADE. - A futurologia perigosista, reflexo da absorção do aparato teórico da Escola Positiva que, desde muito, têm demonstrado seus efeitos nefastos: excessos punitivos de regimes políticos totalitários, estigmatização e marginalização de determinadas classes sociais (alvo do controle punitivo) tem acarretado a proliferação de regras e técnicas vagas e ilegítimas de controle social no sistema punitivo, onde o sujeito considerado como portador de uma perigosidade social da qual não pode subtrair-se torna-se presa fácil ao aniquilante sistema de exclusão social. - A ordem pública, requisito legal amplo, aberto e carente de sólidos critérios de constatação (fruto desta ideologia perigosista) portanto antidemocrático, facilmente enquadrável a qualquer situação, é aqui genérica e abstratamente invocada mera repetição da lei, já que nenhum dado fático, objetivo e concreto, há a sustentá-la. Fundamento prisional genérico, anti-garantista, insuficiente, portanto! - A gravidade do delito, por si-só, também não sustenta o cárcere extemporâneo: ausente previsão constitucional e legal de prisão automática por qualquer espécie delitiva. Necessária, e sempre, a presença dos requisitos legais (apelação-crime 70006140693, j. em 12/03/2003). - À unanimidade, concederam a ordem.[4]

Portanto, além de conter necessariamente os pressupostos e fundamentos que o justifique, o decreto de prisão preventiva deve estar bem fundamentado em fatos concretos, encontrando suporte fático, bem como demonstrar o caráter cautelar da medida, o que não ocorre.

Sobre a cautelaridade da prisão preventiva para a garantia da ordem pública, Aury Lopes Jr e Alexandre Morais da Rosa[5] destacam a inconstitucionalidade da medida:

Obviamente que a prisão preventiva para garantia da ordem pública não é cautelar, pois não tutela o processo, sendo, portanto, flagrantemente inconstitucional, até porque, nessa matéria, é imprescindível a estrita observância ao princípio da legalidade e da taxatividade. Considerando a natureza dos direitos limitados (liberdade e presunção de inocência), é absolutamente inadmissível uma interpretação extensiva (in malan partem) que amplie o conceito de cautelar até o ponto de transformá-la em medida de segurança pública.

Conforme entendimento do Superior Tribunal de Justiça, o clamor público causado pelos fatos não constitui fundamentação idônea a autorizar a prisão para garantia da ordem pública, se desvinculado de qualquer fator concreto, que não a própria conduta, em tese, delituosa.[6]

O clamor público, na maioria das vezes, é instigado pela imprensa que, na ânsia por uma manchete polêmica, noticia a situação de forma como se esta já tenha sido totalmente apurada e obtenha caráter definitivo quanto aos fatos e sua autoria, contribuindo decisivamente para que seja cada vez mais violada a presunção de inocência.

A respeito da rotulação do suposto autor do fato criminal, Ana Lúcia Menezes Vieira[7] ressalta que o apenamento legal torna-se praticamente desnecessário diante do julgamento promovido pelos meios de comunicação e suas consequências irreversíveis:

A narração dos fatos e a estigmatização do investigado ou acusado resolvem o caso criminal, não havendo sequer a necessidade da aplicação da pena pelo juiz – a sentença dada pelos meios de comunicação, inapelável, transita em julgado perante a opinião pública, tornando-se irreversível diante de qualquer decisão judicial que venha a infirmar a crônica ou crítica.

Não se olvida aqui do valor educativo e social dos meios de comunicação que cumprem papel de interesse público, mas também se deve ter em mente que a liberdade de informação e comunicação preceituada na Constituição Federal exige o compromisso e a responsabilidade na veiculação de notícias, respeitando os princípios também garantidos pela CF.

Um caso emblemático que exemplifica bem a irresponsabilidade da imprensa quando da veiculação de notícias relativas a crimes é o caso da Escola Base em São Paulo, que aconteceu em 1994, onde os donos e os funcionários da escola foram injustamente acusados de praticarem abuso sexual contra alguns alunos.

No que se refere à opinião pública, ressalta-se que sua mobilização ou não de nada importa ao processo, pois devemos nos ater apenas aos fatos e as provas dentro da persecução penal, o resto não cabe a nós, como advogados, juízes ou promotores, considerar.

Quanto à relação do Judiciário com a mídia, destaca-se trecho de voto do Min. Marco Aurélio:

Relativamente à questão alusiva à imprensa, vale salientar a necessidade de o Judiciário manter-se equidistante, não se deixando envolver pelo que é veiculado, mormente a visão do leigo [...] O fato de o delito provocar grande repercussão nos meios de comunicação não conduz à prisão preventiva do acusado, estando o prestígio do Judiciário não na dependência da punição a ferro e fogo, mas na atuação harmônica com a ordem jurídica, respeitados os princípios jurídicos basilares da República.[8]

Afirmar, por exemplo, com base na “mobilização da opinião pública” que não se trata de fato corriqueiro é, no mínimo, má-fé. Sabe-se que os fatos criminais que viram notícia são escolhidos a dedo pela grande mídia, a exemplo dos casos Nardoni, menino Bernardo e Richthofen. Pais matam filhos e vice-versa diariamente, a diferença é que apenas alguns casos são noticiados e explorados pela imprensa.

Atribuir a função de controlar o alarme social e responder ao clamor popular incitado por noticiários policialescos à prisão cautelar é absolutamente inconstitucional, tendo em vista que a prisão preventiva tão somente se justifica se presentes os requisitos trazidos pelo do caput artigo 312 do Código de Processo Penal.

Como se sabe, trata-se de rol taxativo de pressupostos para o cabimento da aplicação da prisão preventiva e a decretação da medida cautelar restringe-se às hipóteses elencadas neste dispositivo. Portanto, tal medida segregativa não tem por fim atender ao que a mídia sensacionalista noticia ou responder ao clamor popular, mas sim atender ao disposto na lei processual penal.

Em tempos de “espetacularização” do processo penal, como lembra Rubens Casara[9], todos querem exercer bons papéis no “julgamento-espetáculo” e ninguém (ou quase) ousa atuar contra os “desejos da audiência” sempre manipulável pelos meios de comunicação de massa: a suposta opinião pública(da).

Em outras palavras, o réu é acusado, preso, julgado e condenado pela verdade vendida pelos meios de comunicação e comprada pelo senso comum.

No caso da prisão preventiva, a genericidade do fundamento prisional “ordem pública” acarreta a relativização de direitos e garantias fundamentais o que, no caso concreto, nos leva a prisões desnecessárias que geram danos sociais irreparáveis e perpetuam injustiças.


Notas e Referências:

[1] WEDY, Miguel Tedesco. Eficiência e Prisões Cautelares. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. p. 128.

[2] CHOUKR, Fauzi Hassan. Código de processo penal: comentários consolidados e crítica jurisprudencial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 498.

[3] Empório do Direito. Garantia da ordem pública: fundamentação genérica constitui meio abusivo de decretação da prisão preventiva, segundo o Procurador de Justiça Rômulo de Andrade Moreira. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/garantia-da-ordem-publica-fundamentacao-generica-constitui-meio-abusivo-de-decretacao-da-prisao-preventiva-segundo-o-procurador-de-justica-romulo-de-andrade-moreira/>. Acesso em: 12 de setembro de 2016.

[4] Habeas Corpus Nº 70006140693, Quinta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Amilton Bueno de Carvalho, Julgado em 23/04/2003.

[5] JUNIOR, Aury Lopes e ROSA, Alexandre Morais da. Crise de identidade da "ordem pública" como fundamento da prisão preventiva. Disponível em <http://www.conjur.com.br/2015-fev-06/limite-penal-crise-identidade-ordem-publica-fundamento-prisao-preventiva>. Acesso em 13 de setembro de 2016.

[6] Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus n.º 174829/MG, Relator: Ministro GILSON DIPP, Data de Julgamento: 17/02/2011, QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 09/03/2011.

[7] VIEIRA, Ana Lúcia Menezes. Processo Penal e Mídia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 168.

[8] Supremo Tribunal Federal, HC 83728/RS, Relator: Min. Marco Aurélio, DJ 23/04/2004.

[9] CASARA, Rubens. Processo Penal do Espetáculo. Disponível em: <http://justificando.com/2015/02/14/processo-penal-espetaculo/>. Acesso em: 13 de setembro de 2016.


ana-luiza-teixeira-nazario. Ana Luíza Teixeira Nazário é Advogada. Assessora no escritório Jader Marques Advocacia Penal Empresarial. Bacharela em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2015/2). Pós-graduanda em Ciências Penais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. .


erica-correa-simoes-pires. Érica Côrrea Simões Pires é Advogada no escritório de advocacia Antônio Suris Simões Pires. Bacharela em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2015/1). Pós-graduanda em Ciências Penais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. .


Imagem Ilustrativa do Post: Wrexham Prison site 2014-08-06 (7) (a) // Foto de: arwel081163 // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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