A necessidade da participação como critério prévio à cidadania, entrevista com Magali Bessone

03/01/2017

Por Redação- 03/01/2017

Reproduzimos a entrevista por e-mail concedida por Magali Bessone, professora de Filosofia Política na Universidade de Rennes à IHU On-Line, e publicada em 30.12.2016, que vale a pena seu lida.

A professora sustenta na entrevista que “A hospitalidade repousa sobre a convicção de que pertencimento é a condição da cidadania — da participação legítima nas escolhas dos princípios de justiça que governam a sociedade. Podemos fazer um esforço e pensar ao contrário: a participação como critério prévio à cidadania.”

Confira: 

Quais são os sentidos do termo “exclusão”? Como caracterizá-la?

Magali Bessone - Se observarmos a etimologia do termo, percebemos que há ao menos dois grandes sentidos contidos na noção de exclusão, o que aparece já em seus primeiros usos: “excluir” é um empréstimo do latim “excludere”, que significa ao mesmo tempo “expulsar” e “não deixar entrar”. Há, desse modo, na noção, intimamente imbricados, um aspecto ativamente negativo (expulsar) e um aspecto privativo, aparentemente mais passivo (não deixar entrar). Soma-se a esses, a partir do século XVI, principalmente no campo jurídico, um terceiro sentido: privar alguém de algo a que ela teria direito, daquilo que lhe devem. Em 1690, o dicionário de Furetière apresenta três exemplos, que ilustram perfeitamente esses três sentidos, “expulsar”, “recusar a entrada” e “privar de um direito”: “Os anjos maus foram excluídos do Paraíso. Os pecadores serão excluídos para sempre. Diz-se que um homem foi excluído de uma sucessão para dizer que ele foi deserdado”.

O que nos ensina a história semântica e conceitual da exclusão é que, em primeiro lugar, ser excluído é não fazer parte de uma esfera, real (um lugar) ou simbólica (uma comunidade a que se pertence): ser excluído é estar de fora. Em segundo lugar, há ao menos duas modalidades de caracterização de ser excluído. Na primeira, ele estava em algum lugar (ou possuía alguma coisa) do qual o expulsaram (ou da qual o privaram) — nesse sentido, a exclusão é um processo de perda de status, uma trajetória de marginalização e de desapossamento. Na segunda, por natureza, o excluído não pode nem nunca pôde reivindicar a inclusão, pois ele não possui as características que lhe permitem o acesso ao direito, à função ou ao bem — características de que os incluídos partilham. Em último lugar, porém, duas questões continuam abertas: saber quem define o status de inclusão/exclusão e os critérios (fluidos e evolutivos) de admissão na esfera; saber se a exclusão é uma estrutura, modalidade inevitável da relação social e política, ou se ela se trata de uma conjuntura, ligada a um certo modo de organização das relações sociais.

Em que medida a noção de exclusão tornou-se importante frente às questões políticas e sociais de nossa época?

Magali Bessone - A noção de exclusão tem um status duplo: trata-se de um termo técnico da literatura sociológica e política, mas se trata também de um termo do vocabulário da vida cotidiana e um leitmotiv da mídia, que, ao generalizá-lo, tornam confusa essa noção complexa. A precarização de massa e os processos de imigração produziram efeitos sociais e políticos que podem ser condensados pela noção de “exclusão”. Contudo, a própria categorização de incluídos e excluídos produz efeitos sociais que, embora não criem situações física e moralmente intoleráveis a algumas pessoas, contribuem para fixar o “dentro” e o “fora”, para reificar as condições de entrada e saída e para homogeneizar os grupos que se opõem entre si. Saúl Karsz [1], em L’exclusion, définir pour en finir (2000), aborda o caráter “especular” da noção de exclusão: ela opera em discurso-espelho. A noção designa os excluídos — que, por definição, são frequentemente aqueles excluídos da esfera de fala, da possibilidade de falar sobre a sua situação, de modo que o seu testemunho é pouco transmitido, ouvido, valorizado ou legitimado (eles estão em situação de injustiça epistêmica, para retomar a expressão de Miranda Fricker [2]). A noção emana dos incluídos: os porta-vozes das instituições e das assistências sociais, a mídia, os pesquisadores que mencionam e analisam os fenômenos de exclusão são pessoas que se consideram e são consideradas pelos outros como incluídos. Além disso, ela produz efeitos simplificadores, ou melhor, efeitos de concorrência, falando de maneira absoluta de grupos que parecem perfeitamente constituídos — os excluídos, de um lado, e os incluídos, de outro.

A exclusão, porém, é um conceito relativo, ou seja, que define uma relação e a inscreve em uma complexa rede de relações

A exclusão, porém, é um conceito relativo, ou seja, que define uma relação e a inscreve em uma complexa rede de relações. Se os parisienses são incluídos, os excluídos são os habitantes do interior (os “habitants des régions” [3]) ou os habitantes da periferia (os “franciliens” [4])? Se a exclusão concerne a todos é porque somos sempre excluídos de alguma coisa e sempre excluídos em relação a alguém: a noção é inesgotável e, face a sua polissemia, o único modo de se certificar de que fazemos parte dos “incluídos” é recriar permanentemente as categorias. A noção de exclusão parece incontornável, contudo é muito ambígua por tratar de fenômenos de construção de grupos a que se pertence.

Quais são os excluídos das sociedades contemporâneas?

Magali Bessone -excluídos “na” e excluídos “da” sociedade. Ser excluído é estar fora do espaço (real ou simbólico) dos incluídos. O paradoxo da noção é precisamente que não há espaço homogêneo pré-dado, mas que a produção da exclusão consiste em construir o espaço de modo que certas pessoas sejam de lá afastadas pela invisibilização, pelo status jurídico diferenciado ou pela reclusão. Dessas três modalidades de construção dos excluídos por afastamentos diferenciados, pode-se depreender três figuras principais (que funcionam apenas como figuras de análise e que, na realidade social, não somente compreendem ramificações, mas também se fundem): o mendigo, o estrangeiro, o louco. A primeira figura remete a um tipo de excluído definido pela ausência de domicílio. Entretanto, sabemos que no cotidiano daqueles que nomeamos na França de “SDF” (sem domicílio fixo) existem práticas de inserção e estratégias de adaptação, de integração a certas redes e circuitos, de solidariedade e de ajuda mútua — enfim, há um reaparecimento de uma forma da propriedade privada do território. A rua define a exclusão apenas se escolhemos ignorar suas leis de integração ou de inclusão diferenciada.

O estrangeiro como excluído

Segunda figura de excluídos: o estrangeiro, que está “aqui”, mas que não é “daqui”, para fazer referência à fórmula de Georg Simmel [5]. Seja legal ou ilegal, a figura do estrangeiro (nacional, étnico ou racial) corresponde às populações dotadas de um status especial que as permite coexistir na comunidade política, mas as priva de certos direitos civis ou de certas atividades sociais. A exclusão ocorre pela construção de um status de exceção que não é transitório. Mesmo que os estrangeiros sejam “integrados”, eles são o primeiro alvo de discriminação e perseguição quando a situação do país de acolhimento se degrada.

Isolamento

A terceira figura de excluídos corresponde àquela que é produzida pelo conjunto de práticas que consistem em construir ou em deixar construir os espaços fechados — tecnicamente situados no espaço da comunidade, mas separados dela: os asilos, os campos, as prisões, os guetos etc. Essa exclusão age sobre o princípio do isolamento. A exclusão é, então, reclusão: o excluído não é expulso ou exilado do lugar comum; ele é sobretudo proibido de sair da porção particular de território que lhe foi designada.

Como a exclusão confirma o ideal de inclusão? O que realmente está em jogo nesse processo? É possível pensar o processo de “inclusão” como uma “ilusão”? Por quê?

Os excluídos não estão fora da sociedade, mas exatamente nela: se eles não estivessem no interior do espaço social, eles não estariam excluídos, mas apenas em outros lugares

Magali Bessone - Os excluídos não estão fora da sociedade, mas exatamente nela: se eles não estivessem no interior do espaço social, eles não estariam excluídos, mas apenas em outros lugares. Desse modo, a sua “exterioridade” é totalmente relativa e corresponde muito mais a uma situação de dominação na estruturação social e política. Os “excluídos” ocupam um lugar na comunidade, onde são os incluídos que lhes atribuem uma função econômica, política ou ideológica. Mas esse lugar é entendido a partir da garantia de que esses outros são incluídos no sentido de “dominantes”: os incluídos têm um acesso privilegiado aos recursos materiais e simbólicos e por isso são reconhecidos. Os processos de exclusão são o duplo malefício dos processos de inclusão, que tendem a assimilar todos em uma “comunidade imaginária”, corroborando para que aqueles que não estiveram presentes no momento da distribuição de normas e valores comuns estarão sempre “no entremeio” ou à margem. Os processos de inclusão concebem imaginariamente o povo enquanto totalidade social e política: baseiam-se em um conceito de povo isolado de suas condições sociológicas reais, que negligencia as classes de vulnerabilidade diferentes que o atravessam; eles mobilizam um conceito de povo a-histórico, sem considerar a construção histórica arbitrária da comunidade política em si.

Assim, no ideal de inclusão, não ser excluído do povo não se refere a ser integrado no povo, mas a ser assimilado: assimilar significa “adotar”, e nessa incorporação, nessa relação de se apossar de algo, reside uma verdadeira violência. Nós perguntamos ao outro se ele quer de fato “entrar”, renunciar à diferença que o faz ser “outro”. Para não ser excluído, é necessário que o indivíduo renuncie a suas características identitárias idiossincráticas e se funda no corpo social: é preciso renunciar a sua língua, sua religião, sua cultura, seu sotaque, seus hábitos etc. Nada deverá o diferenciar de um “nativo” na fantasia dessa fusão indiferenciável de cada um dentro do todo. Ora, a representação do corpo no qual ele quer entrar, desse “todo”, é, na verdade, definida pelos dominantes, ou seja, aqueles que já possuem a capacidade de definir e que estão em situação de interferir de maneira arbitrária na capacidade do outro de agir e de se autodefinir.

De qual ordem é o projeto ético a ser realizado a fim de superar a dialética que coloca os excluídos de um lado e os incluídos de outro?

Magali Bessone - O projeto a ser realizado não me parece ético, mas político. Na sua dimensão ética, ele poderia servir para sustentar a aceitação/ideia de que nós somos todos “outros”, não somente para os outros (mesmo para os outros mais íntimos, namorados, crianças etc.), mas também para nós mesmos. Se eu aceito que eu mesma não me conheço; que minha subjetividade é atravessada por linhas de força; que eu não sou somente para um outro, mas também para mim, parcialmente excluído de um lugar, de uma relação, de uma aspiração; que mesmo o meu “eu” não constitui uma totalidade incorporada, eu posso então aceitar me abrir ao outro como a um outro eu mesmo, atravessado por contradições e interdições. Nessa acepção, o mais íntimo (a relação consigo) é também o mais universal (a relação com qualquer outra pessoa): em um encontro particular com o outro, qualquer outro, não importando os dados empíricos de nossas situações respectivas, realizam-se sempre microrrelações de inclusão e exclusão.

Tal abordagem tem como interesse colocar em questão a desigualdade ou a assimetria das situações individuais, de revirar as certezas da inclusão como continuidade e estabilidade das condições de vida de alguns. Entretanto, essa posição ética não nos dá nenhuma chave ou indicação para agir em circunstâncias sociopolíticas que definem sempre os excluídos de maneira materialmente muito mais dramática. O projeto político difere segundo o tipo de exclusão colocado em prática. Ele serviria para colocar em prática as condições sociais para que a voz dos excluídos invisibilizados seja ouvida, ou seja, para lhes assegurar um status epistêmico igual ao de qualquer membro da comunidade política. Da mesma maneira, ele serviria para dar aos estrangeiros direitos iguais de participação nas decisões tomadas nas suas comunidades políticas em que residem. Finalmente, serviria também para abrir os espaços de reclusão de tal maneira que não fossem entendidos como lugares de não direito, de menos direito, de relegação ou de abandono pelas políticas públicas.

Diante desse quadro, quais são os desafios a considerar em relação à hospitalidade?

Magali Bessone - A hospitalidade repousa sobre a convicção de que pertencimento é a condição da cidadania — da participação legítima nas escolhas dos princípios de justiça que governam a sociedade. Podemos fazer um esforço e pensar ao contrário: a participação como critério prévio à cidadania. O tratamento da imigração pela hospitalidade traduz a tentativa de desassociar para os estrangeiros aquilo que é associado para os cidadãos: o político e a ética — o que resulta na exclusão dos estrangeiros da esfera legítima do político. A mobilização do discurso de hospitalidade tem como função incentivar um excesso de ética na prática das políticas de imigração. Contudo, se, na sua radicalidade, a exigência ética de hospitalidade tende a ir em direção à abertura incondicionada ao outro, a prática jurídico-política do tratamento de imigrações impõe a consideração de mediações.

Pensar a presença do estrangeiro através de um modelo de um acolhimento absoluto, incondicionado, do outro “em sua casa”, tende a retirar da crítica toda a capacidade de isso se realizar na ação ou no engajamento político efetivo. É preciso muito mais “deseticizar” e repolitizar o status de cidadania independentemente da questão de pertencimento territorial original, desse espaço fantasiado como “nossa casa”, propondo então uma abordagem da cidadania como engajamento político ativo, sem importar se somos “daqui” ou “de fora”.

Notas:

[1] Saúl Karsz: sociólogo e filósofo francês de origem polonesa-argentina, professor na Universidade da Sorbonne, na França. É autor de L’exclusion, définir pour en finir (Paris: Éditions Dunod, 2001). (Nota da IHU On-Line)

[2] Miranda Fricker (1966): filósofa inglesa, professora na Universidade de Sheffield e na City University of New York Graduate Center. É autora de Epistemic Injustice: Power and the Ethics of Knowing (Oxford University Press, 2007). (Nota da IHU On-Line)

[3] “Habitant des régions” é o nome dado aos franceses que não são habitantes da Île-de-France e, sim, das demais regiões da França. (Nota da tradução)

[4] “Francilien” é o nome dado ao habitante da região francesa Île-de-France. (Nota da tradução)

[5] George Simmel (1858-1918): ocupou um lugar importante no debate alemão de 1890 até a sua morte em 1918, final da I Guerra Mundial. Soube sintetizar a tradição historicista de Dilthey e o kantismo de Rickert. Seu pensamento influenciou Weber, Heidegger, Jaspers, Lukacs, a Escola de Frankfurt, entre outros. Suas obras principais são: Diferenciação social (1890), Filosofia do Dinheiro (1900) e Questões fundamentais de sociologia (1917). Também publicou "Filosofia da moda". O texto pode ser encontrado em “Filosofia da Moda”, In Simmel,G., Cultura Feminina, Lisboa: Galeria Panorama, 1969, pp107/151. (Nota da IHU On-Line)

. Fonte: IHU .
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