A NECESSÁRIA DISTINÇÃO ENTRE O EFEITO TRANSLATIVO E O EFEITO EXPANSIVO OBJETIVO DO RECURSO EM UMA SINGELA HOMENAGEM AO PROF. NELSON NERY JR.                                                                                 

09/07/2019

 

1. Considerações iniciais

Aproveito o texto de hoje para fazer uma necessária, conquanto modesta, homenagem a um dos mais destacados juristas deste país, o professor Nelson Nery Jr., da PUC-SP. Além de tudo, isso se deve ao fato de ter sido ele o introdutor, no âmbito da processualística brasileira, do relevante problema do efeito expansivo objetivo do recurso. Este texto, deixo claro, tal como o anterior, foi publicado em minha página profissional do Facebook: Professor Roberto P. Campos Gouveia Filho. Diversamente do outro, porém, há mudança considerável, pois, logo abaixo, trago primeiras considerações acerca de uma compreensão própria sobre a questão dos efeitos do recurso[1].

2. Do efeito expansivo objetivo: breves considerações

Numa pequena síntese, pode-se entender o efeito expansivo objetivo como aquele que, por força da causalidade, atinge atos processuais (internos e externos à decisão recorrida) não impugnados, ao menos propriamente, por intermédio do recurso.

Da definição acima, dois pontos precisam ser mais bem esclarecidos. O primeiro tem a ver com a ideia de causalidade; o segundo, com a internalidade/externalidade dos atos em relação à decisão recorrida.

Por este último, deve-se compreender que o sentido do termo ato tem a ver com qualquer atividade judicial. Ela pode estar na própria decisão recorrida, sendo, portanto, um capítulo desta. É o que ocorre, num exemplo dado pelo próprio Nelson Nery Jr., com o recurso que impugna sentença dada em litispendência. Sendo o capítulo referente à análise desta (no caso, com declaração de sua não ocorrência) reformado, os demais capítulos sentenciais “cairão por tabela”, embora não tenham sido eles, propriamente, objeto do recurso. A expansão, como se percebe, dá-se dentro da própria decisão recorrida, ou seja: internamente.  

Já a externalidade do efeito em comento ocorre quando algo existente fora da decisão recorrida é atingido pelo provimento do recurso. É o que se tem no conhecido caso de acórdão que, dando provimento ao recurso interposto contra sentença provisoriamente executada, desconstitui os atos posteriores a ela, em especial a penhora e tudo que disto advir. A expansão, nesse caso, vai atingir algo que está fora do ato recorrido, logo é predicável como externa.

Quanto ao primeiro problema acima levantado, tem-se o seguinte: o efeito expansivo dá-se pelo simples fato de os atos por ele atingidos, sejam internos ou externos ao impugnado, dele serem consequência e, além de tudo, lhe serem subordinados. O efeito expansivo objetivo é, portanto, uma decorrência direta do princípio da causalidade[2]. Eis é a chave-mestra para sua compreensão. 

O efeito expansivo objetivo, rigorosamente, não tem a ver com o ato recursal. Dizê-lo do recurso só é possível metonimicamente. Isto porque quem é dotável de tal força é a ação recursal[3]. Como qualquer ação, ela tem suas eficácias. Logo, do mesmo modo que uma ação anulatória de licitação pública tem a força de desfazer o contrato celebrado por força da licitação, a ação recursal contra a sentença condenatória do devedor ao pagamento tem a força de desfazer os atos praticados em execução provisória da sentença recorrida.

Por fim, é necessário frisar que o efeito expansivo objetivo tem a ver sempre com algo judicialmente analisado, porém estranho à impugnação em si. Nada tem a ver com questões não analisadas. Estas são essenciais em outro efeito recursal, o translativo.

 

3. Da razão analítica de o efeito translativo não poder ser confundido com o expansivo objetivo

O efeito translativo, positivado nos quatro primeiros parágrafos do art. 1.013, CPC, tem a ver com questões que, referentes ao impugnado, não foram, por desnecessidade[4], analisadas pelo juízo de origem. Por exemplo, tendo o réu de uma ação de cobrança alegado, em defesa, prescrição e nulidade do título da dívida, o juiz, para julgar improcedente a ação, não necessita analisar ambas as defesas, porquanto o acolhimento de qualquer uma delas é suficiente para atribuir ao réu o bem da vida almejado: a improcedência da ação. Tendo acolhido a defesa fundada em prescrição, a alegação de nulidade do título da dívida não deverá sequer ser apreciada.

Não haverá, desse modo, análise judicial sobre ela. Não obstante, interposta apelação pelo autor contra a sentença de improcedência, a matéria não analisada, referente que é à devolutividade da causa afirmada pelo autor, entrará no âmbito da cognição do órgão recursal[5].

Isso se dá até mesmo por um imperativo de ordem prática, pois, do contrário, teria o vencedor de interpor recurso condicionado para a hipótese de se entender improcedente sua defesa acolhida na decisão, requerendo a análise da defesa que, por desnecessidade, não foi apreciada.

O efeito translativo dá-se em virtude da devolução[6]. Não à toa, José Carlos Barbosa Moreira o denomina de profundidade do efeito devolutivo.

Diante disso, é preciso identificar os dois problemas: i) o primeiro, referente à matéria que, não tendo sido analisada, não foi objeto da impugnação (translatividade); ii) o segundo, relativo a algo que, embora analisado, é estranho à impugnação (expansividade objetiva).

Ambos, cumprem funções relevantíssimas no sistema jurídico. Por serem diversas, e até para que não sejam confundidas ou, pior, ignoradas, os efeitos recursais que as possibilitam devem ser objeto de sério estudo dogmático.  

Equipará-los, como se faz em parte da processualística, é, sem dúvida, um erro analítico de (possíveis) graves consequências pragmáticas.

Acertou, portanto, em cheio o professor Nelson Nery Jr., quando, há mais de 20 (vinte) anos, a partir de processualistas germânicos, introduziu o estudo do efeito expansivo objetivo no Direito Processual Civil brasileiro.

 

Notas e Referências

[1] É imperioso dar contornos mais analíticos à análise dos efeitos dos recursos. Não se está a afirmar que consagrados autores que se dedicaram ao tema não o tenham feito. Contudo, faz-se necessário ir além. O ideal é que cada um que se dedique ao tema aloque a questão dentro dos paradigmas teóricos que segue. É o que se fará aqui.

Ora, por se tratar de um efeito é preciso determinar sua causa. Desse modo, se se trata de um efeito jurídico ela, dentro das perspectivas adotadas neste trabalho, só pode ser um fato jurídico. Diante disso, pode-se dizer, como de algum modo se diz: este último é o recurso. Tal colocação, todavia, além de imprecisa, contém verdadeiros equívocos. Imprecisa porquanto não bem define que tipo de efeito jurídico o recurso gera. Mais propriamente, a qual categoria eficacial ele se enquandra: se, por exemplo, uma relação jurídica, uma situação jurídica etc. Por sua vez, continente de equívocos pelo fato de que nem todos os aludidos efeitos dos recursos são, em verdade, destes provenientes. É o caso, inclusive, do efeito expansivo objetivo.

Sendo, como é, o recurso um fato jurídico, há de se verificar qual é o efeito por ele gerado. Como já dito, inclusive na postagem passada, o recurso, se eficaz, produz uma nova relação jurídica processual, de modo que exsurgem direitos/deveres, pretensões/obrigações. É nesse contexto, portanto, que se deve falar de efeitos dos recursos. Não há apenas um laço dever/direito decorrente do recurso. A análise deve ser feita de modo pormenorizado. Por exemplo, diz-se que o recurso impede a ocorrência do trânsito em julgado, prolongando o estado de processualidade (litispendência) sobre a questão levada à apreciação judicial. Tal efeito, porém, não é da interposição do recurso em si mesma, mas sim do fato de o recurso ser, conforme a hipótese, eficaz. Fala-se, de outro modo, que o efeito devolutivo (presente no caput do art. 1.013, CPC) decorre do recurso. Isso também não é devido à simples existência do recurso. É-o ao fato de ele ser admissível (ou, não o sendo, assim se tornar). Falar em efeito devolutivo do recurso é, em rigor, aludir a um poder-dever do juiz recursal de analisar a matéria impugnada, mas isto, por óbvio, só ocorre se o ato recursal se encontrar admissível. A relação jurídica gerada pelo recurso tem seu conteúdo eficacial preenchido de acordo com o estado em que se encontra sua causa, o recurso. Se este, por exemplo, não for admissível, o dever nela gerado é o de inadmitir. Não se pode falar, neste caso, em efeito devolutivo.   

Tal como se entende que o juiz de uma ação qualquer só tem o dever processual de analisá-la se o processamento dela estiver admissível, deve-se entender para a ação recursal. Não há, substancialmente, maiores diferenças aqui.

[2] Embora possa ser modulado pelo direito, em virtude da essência imputacional deste, o princípio da causalidade é absorvido pelo sistema jurídico, de modo que, salvo expressa previsão em contrário, ele repercute na juridicidade. Não obstante, há previsões específicas, como as dos arts. 281 e 282, caput, CPC, que, indubitavelmente, servem de base normativa para o efeito expansivo objetivo.  

[3] Denomina-se ação recursal aquela que decorre em benefício de alguém por força de erro contido numa decisão judicial, tendo por sujeito passivo o beneficiário desta, e, como destinatário de eficácias, o órgão prolator da decisão. Univocamente, trata-se de uma ação de direito material (poder de impor), a mesma já abordada aqui na coluna. Tem a peculiaridade, todavia, de ser produzida no âmbito processual, porquanto seja efeito de um fato processual. A demonstração de sua existência é um dos objetivos da tese que se está a desenvolver. 

[4] Isto numa situação normal. É possível, porém, que o efeito translativo funcione em situações que a decisão recorrida padeça de alguma vicissitude (haja o chamado error in procedendo), logo fora da normalidade. Se, numa ação de cobrança, o juiz condenar o réu, vindo este a recorrer alegando prescrição da dívida cobrada, o efeito translativo possibilitará ao tribunal a análise da questão referente à ilegitimidade do autor, a qual, sequer tendo sido arguida, não foi analisada pelo juízo de origem, embora devesse sê-lo. 

[5] Desde que, como explicado na nota n. 1, a apelação seja admissível.

[6] Conquanto se dê no âmbito da devolução, o efeito translativo não é componente dela, como inclusive foi sustentado no texto original. Explica-se. Posto que ambos tenham a ver com a ideia de um dever de o órgão recursal analisar determinadas matérias, são deveres distintos, já que as próprias matérias são distintas. Ademais, o efeito devolutivo serve ao recorrente; o translativo pode servir ao recorrido.  

O efeito translativo, consoante demonstrado acima, diz respeito a algo não analisado e, principalmente, não impugnado; o efeito devolutivo cinge-se ao que foi impugnado e, em regra, analisado; É possível, porém, que haja devolução de matéria não analisada. Isso se dá em recursos baseados em error in procedendo, na hipótese de não análise de matéria que deveria tê-lo sido. Aqui, não há falar em translação porque tal matéria compõe a própria ação recursal. Se, por exemplo, uma ação de cobrança for julgada improcedente sem que o juiz analise o requerimento de produção de prova pericial feito pelo autor, há ilicitude na decisão. Caso o autor apele da sentença alegando tal ilicitude, ao tribunal caberá dizer se o julgamento necessita, ou não, da produção de tal prova, não por força de um efeito translativo, mas sim por ser o próprio cerne do recurso interposto.

A relação existente entre a translação e a devolução é de condicionamento. No direito brasileiro, por força, acima de tudo, do art. 1.002, CPC, aquilo que é transladado limita-se ao que foi impugnado e, por isso, devolvido. Ou seja, a porção não impugnada da decisão (e, se assim o é, porção que foi analisada) transita em julgado, logo não poderá ser alvo de nenhuma análise pelo órgão julgador do recurso. De outro modo, pode-se dizer que o objeto impugnado é, ao menos em parte, a matéria-prima sobre a qual se dará a translação.

Por fim, é preciso ressaltar que o efeito translativo se dá em decorrência de eficácia anexada à ação recursal e, com isso, à decisão de procedência do recurso. Isso não faz, porém, do recurso um ato-fato jurídico, nem mesmo o coloca como elemento de suporte fático de algo do tipo. O recurso tem natureza de ato jurídico, ao menos no direito brasileiro. O fato de se anexar a ele uma eficácia não desvirtua sua essência. Não é a eficácia que faz o ato, pois este precede ontologicamente a ela. Também não é a ocorrência de uma eficácia não decorrente de manifestação de vontade (no caso, o requerimento recursal) que faz de um fato jurídico ser do tipo ato-fato; a eficácia é, simplesmente, posta por lei ou por disposição negocial. É o e sobre algo que já existe. A prova dos nove de não ser o recurso um ato-fato jurídico está em que, invalidado o ato recursal, o efeito decorrente de lei (o translativo, na hipótese), tal como os demais, esvai-se. 

Imagem Ilustrativa do Post: low angle photo // Foto de:Phillip Birmes // Sem alterações

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