A necessária compreensão da atribuição da Guarda Municipal: Análise crítica do julgado do TJSC

06/06/2015

Por Fabiano Oldoni - 06/07/2015

Lenio Streck nos chama a atenção de que é preciso antes compreender para só depois interpretar, evitando as variações interpretativas do texto legal, o que leva ao solipsismo e ao julgamento conforme a consciência, o querer ou conveniência de cada um.

Desta forma e como preparo ao assunto de fundo, devemos compreender três situações jurídicas, que pela aparente facilidade compreensiva tem gerado interpretações equívocas.

A abordagem visa preparar terreno para a análise do julgamento proferido pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina no Recurso em Sentido Estrito nº 2015.002563-7.

1º ponto – A Guarda Municipal tem previsão constitucional no artigo 144 § 8º, cujo texto é o seguinte: “Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei”. 

Percebe-se claramente que a atribuição da Guarda Municipal é exclusiva para proteger os bens, serviços e instalações do município e mais que isso não precisa ser dito. 

Nem mesmo a expressão “conforme dispuser a lei” autoriza uma compreensão diversa, já que a lei infraconstitucional não poderá atribuir à Guarda Municipal função diferente da prevista na Constituição Federal. Se assim o fizer, é inconstitucional, como de fato é a Lei nº 13.022/14, que criou o Estatuto da Guarda Municipal, conforme expliquei no artigo “O Estatuto da Guarda Municipal é inconstitucional”[1], que pode ser lido aqui (http://justificando.com/2015/02/13/o-estatuto-da-guarda-municipal-e-inconstitucional/).

Portanto, a Guarda Municipal é destinada a este fim e se praticar atos além desta moldura legal usurpa função pública e comete ilegalidades.

2º Ponto: A prisão em flagrante pode ser feita por qualquer pessoa do povo, mas as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem se encontre em flagrante delito (artigo 301 do CPP).

Está em flagrante delito aquele que for encontrado nas condições do artigo 302 do CPP. Desta forma, a prisão em flagrante só pode ser feita por qualquer pessoa do povo se o “flagrante” for evidente. Não poderá, por exemplo, alguém que não tenha função de polícia invadir uma residência ou abordar um veículo na “suspeita” de que ali esteja consumando-se um crime para então fazer a prisão. Não pode “buscar” o flagrante, pois para isso precisa ter autoridade para fazer um ato anterior, que é a busca.

A autoridade que deve fazer a prisão em flagrante também só estará obrigada a agir se a consumação do crime for perceptível para ela. Em caso de suspeita, deverá proceder à busca, observando-se as regras desta cautelar.

3º ponto: A busca e apreensão, apesar de estar disciplinada como uma prova é, antes disso, uma medida assecuratória que pode recair sobre bens e pessoas.

Está prevista a partir do artigo 240 do CPP e dividida em busca domiciliar e pessoal. Na situação de flagrância tem a autoridade policial (leia-se Delegado de Polícia) poder de polícia para buscar e apreender na cena do crime os objetos que entenda necessário para a investigação (art. 6º inciso II do CPP). Fora da cena do crime a autoridade policial tem uma limitação para atuar e que deve obedecer para não macular a prova.

Quanto à busca pessoal, quando não houver mandado judicial, a mesma somente pode ser realizada pela autoridade competente (artigo 244 do CPP).

Mas aqui uma observação importante. A busca só pode ser feita por autoridade que tenha atribuição para investigar o crime. Por exemplo: se há fundada suspeita de tráfico internacional de drogas a autoridade policial que tem atribuição para fazer a busca é a Polícia Federal. Outro exemplo: Em caso de fundada suspeita de crime de porte de arma de fogo, a busca deverá ser feita pelas polícias preventiva e judiciária, já que são elas que possuem atribuição para combater e investigar este crime.

Não poderia, neste exemplo, a Guarda Municipal fazer uma busca no interior de um veículo, de uma residência ou até mesmo uma busca pessoal, pois não tem ela, como já visto, atribuição para combater esta infração. A não ser que o crime esteja diretamente ligado aos bens, serviços e instalações que visa proteger.

Esses os três pontos que julgamos importante compreender para avançarmos na análise do julgado do Tribunal de Justiça de Santa Catarina.

O fato resume-se no seguinte:

Guardas municipais teriam presenciado o acusado, em via pública, oferecendo CD’s e DVD’s com indícios de falsificação e, fazendo a abordagem, encontraram no interior de sua bolsa 180 unidades falsas, dando voz de prisão em flagrante e levando-o a uma Delegacia de Polícia, onde foi autuado pelo crime do artigo 184 § 2º do CP.

Oferecida a denúncia neste tipo penal, o juiz Alexandre Morais da Rosa, da Vara Criminal da Capital, rejeitou a inicial apontando: a) incompetência dos guardas municipais; b) afronta ao disposto nos arts. 530-C e 530-D do CPP no que se refere ao termo de exibição e apreensão e laudo pericial; c) incidência do princípio da insignificância.

O Tribunal de Justiça de Santa Catarina deu provimento ao Recurso em Sentido Estrito interposto pelo Ministério Público e recebeu a denúncia.

No voto do Desembargador Relator Rodrigo Collaço assim ficou fundamentado, no que se refere especificamente sobre a legalidade da prisão feita pela Guarda Municipal:

Sobre o primeiro item, conforme bem apontado pelo Parquet, a situação em voga prescinde de qualquer discussão sobre as atribuições dos membros da Guarda Municipal de Florianópolis, isto é, se estariam eles a extrapolar o disposto no art. 144, § 8º, da Constituição Federal.

Isso porque o fato descrito na denúncia e retratado nos elementos informativos do inquérito policial revela que o ora recorrido teria sido abordado pelos agentes públicos do órgão local enquanto em flagrante delito. Qualquer do povo, então – e não só o agente da segurança pública –, podia dar voz de prisão ao suposto infrator.

(...).

No caso dos autos, a narrativa dos agentes públicos dá conta de que o acusado teria sido visto enquanto oferecia à venda CDs e DVDs com indícios de falsificação (fls. 3 e 4), razão por que fora preso em flagrante.

Nessa toada, sem adentrar-se em discussões acerca da competência da Guarda Municipal - cuja inércia, fosse o caso, é que poderia ensejar questionamentos sobre a quebra ou não de dever funcional -, é mister reconhecer a higidez da atuação dos agentes públicos no caso em apreço e, como corolário, dos objetos apreendidos em poder do acusado.

(...).

A imputação tal como manifestada indica um grau de reprovabilidade na conduta do agente que não pode ser desprezado. Há fortes indícios de que o denunciado exercia a posse, com finalidade de mercancia, de cento e oitenta discos digitais de vídeo e de áudio com conteúdo protegido pelas normas de direito autoral, a revelar sua nocividade para o objeto jurídico tutelado pela norma penal (violação a direitos do autor, evasão fiscal, quebra da livre concorrência etc.). 

Penso que a decisão proferida pelo TJSC faz uma interpretação extensiva contra norma processual garantista, o que não é permitido.

Pelas premissas inicialmente apresentadas, é certo que a Guarda Municipal tem atribuição limitada pela Constituição Federal. Poderá, sim, efetuar prisão em flagrante como qualquer pessoa do povo, a despeito do permissivo processual. Contudo não foi isso que me parece ter havido no caso presente.

Pelas informações contidas no próprio acórdão e na sentença reformada, podemos verificar que a Guarda Municipal de Florianópolis, em ronda diária pelas ruas daquela capital, presenciou o acusado oferecendo à venda Cd’s e DVD’s com indícios de falsificação. Vejam que não há aqui situação expressa de flagrante, mas sim indícios de que haveria um crime.

Esses indícios, penso, não autorizam a Guarda Municipal a fazer a prisão, pois não está este fato ainda enquadrado como “flagrante”. Poder-se-ia pensar que o acusado foi preso com objetos que façam presumir ser ele o autor do delito, mas esta modalidade só se aplica ao agente preso “logo depois” (art. 302 inciso IV do CPP), o que não é o caso, já que o acusado foi abordado fazendo a venda, não havendo espaço de tempo e território percorrido.

Ademais, para verificar se efetivamente o acusado estava em situação de flagrância (o tipo penal pressupõe a busca do lucro direto ou indireto e para isso é imperioso que o agente traga consigo uma quantidade razoável que indique a mercancia), seria necessário uma busca pessoal para localizar os demais objetos “ilegais” que ele possuía em sua bolsa (que assim foi feito conforme mencionado na sentença).

Acontece, que a busca pessoal só pode ser feita por mandado judicial ou, sem ele, pessoalmente pela autoridade competente, competência essa que a Guarda Municipal não possui.

Portanto, a eventual configuração do flagrante só se efetivou após a Guarda Municipal ter feito a busca pessoal e encontrado os diversos CD’s e DVD’s que indicavam o pretenso lucro exigido pelo tipo penal.

O que se procura, neste caso, é retroagir os efeitos do flagrante delito para legalizar um ato (busca) feito de forma ilegal.

A legalidade deve estar presente já no primeiro ato que deflagre a operação, e qualquer vício neste ato primeiro macula todos os demais (Teoria dos Frutos da Árvore Envenenada – art. 157 § 1º do CPP).

Como bem mencionou a sentença reformada, a Guarda Municipal pode sim prender em flagrante delito, o que não pode é “fazer "blitz", mandar parar, fazer averiguações e proceder à apreensão de objetos – mesmo que supostamente ilícitos - porque tudo isso não lhes é autorizado pelo Direito”.

O que a decisão do TJSC fez foi conferir uma interpretação extensiva às figuras do flagrante delito e da busca pessoal.

Deparamo-nos aqui com um problema de interpretação da lei. Já alertou Warat que “os métodos interpretativos podem ser indiscriminadamente utilizados apesar de o senso comum teórico dos juristas exigir sua compatibilidade com o tipo de problema ao qual se apliquem”.[2]

Por isso da necessidade de primeiro compreender o texto legal para só depois interpretá-lo, o que evitaria as decisões que visam adequar a norma ao caso concreto, quando é o caso que deve se adequar à norma.


Notas e Referências:

[1] Inclusive a FENEME já ingressou com a ADI 5156, em trâmite no STF.

[2] WARAT, LUIZ ALBERTO. Introdução Geral ao Direito: Interpretação da lei, temas para uma reformulação. Vol. 1. Porto Alegra: Fabris Editor, 1994, p. 90.


Fabiano Oldoni é Doutorando em Ciências Públicas na Escola de Direito da Universidade do Minho-Portugal; Possui mestrado em Ciência Jurídica e Especialização em Direito Penal Empresarial pela Univali. É professor titular das disciplinas de Direito Processual Penal e Prática Jurídica Processual Penal pela Univali. Coordenador do Projeto de Execução Penal junto ao Sistema Penitenciário de Itajaí (convênio Univali/CNJ). Advogado integrante de Silva & Oldoni Advogados Associados. Blog em www.fabianooldoni.blogspot.com.br  


Imagem Ilustrativa do Post: NYPD Police Academy Graduates at Madison Square Garden // Foto de: Diana Robinson // Sem alterações

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