A necessária aferição da justa causa para a ação penal

06/05/2020

O processo penal se inicia com o oferecimento de uma denúncia ou queixa-crime, a qual conterá a descrição do fato criminoso em todas as suas circunstâncias(Art. 41, do CPP).

Ato contínuo, o juiz avalia a aptidão daquela peça, perquirindo sobre as condições e requisitos de admissibilidade mediante o juízo de valor exigido no Art. 395, do CPP.

Historicamente, o ato de recebimento da denúncia sempre representou um despacho de mero expediente dando prosseguimento ao processo, e, à partir da reforma instituída pela Lei 11.719/2008, passou-se a exigir em tal fase a avaliação das citadas questões.

Desde então, o recebimento da peça acusatória ganhou outra relevância, figurando como um dos momentos mais importantes do persecutio criminis, pois aí se declara ter identificado um ou mais delitos e o seu(s) respectivo(s) autor(es), além da viabilidade de a tese acusatória poder ser futuramente provada.

Ultrapassada esta fase, o indivíduo traveste-se de acusado, passando então a suportar todas as respectivas e tenebrosas consequências sociais e econômicas de um processo criminal.

Importante frisar que com o advento da nova Lei de Abuso de Autoridade(Lei Federal 13.869/19), o legislador tipificou a conduta de dar início a persecução penal em face à pessoa sabidamente inocente, ou seja: o juízo de valor acerca do recebimento da denúncia exige agora ainda mais cautela, prudência e razoabilidade.

No tocante especificamente à justa causa, segundo as lições de Fernando da Costa Tourinho Filho[1], Aury Lopes Junior[2] e Afrânio da Silva Jardim[3]  e Marco Aurélio Nunes da Silveira[4] ela se traduz como a constatação, na peça acusatória, de pressupostos mínimos de um fato criminoso, sobre o qual foram indicados elementos acerca da tipicidade, ilicitude e culpabilidade e que atestariam a idoneidade da peça acusatória.

Analisando tal instituto face a novel legislação, é possível inferir que uma vez realizada a avaliação da justa causa de maneira superficial e exclusivamente formal, poder-se-ia configurar o delito de abuso de autoridade, uma vez presente o dolo na conduta.

É que, quando um magistrado ou órgão colegiado deixa de exercer o quanto previsto no Art. 395, do CPP, fazendo mera análise superficial e formal da coerência lógica da narrativa contida texto acusatório, sem promover o respectivo cotejo com os elementos que lhe acompanharam, pode ter atuado de forma comissiva por omissão, permitindo que uma pessoa inocente sofra o constrangimento ilegal de se tornar destinatário de uma ação penal, situação apta a configurar o delito de abuso de autoridade, uma vez identificado o dolo e os elementares do tipo penal.

Como se vê, a alteração legislativa citada reforça a importância de se aferir a justa causa de maneira ponderada, cautelosa e equilibrada durante o recebimento da denúncia ou queixa-crime, utilizando, para tanto, como bases fundamentais os princípios constitucionais do estado democrático de direito, da dignidade da pessoa humana e do estado de inocência.

Afrânio da Silva Jardim pontua que “a simples instauração do processo penal já atinge o chamado status dignitatis do réu”[5], sendo certo que o recebimento da denúncia ou queixa possui capacidade de realizar considerável transformação na vida do indivíduo atribuído da prática delituosa.

O imputado é sempre marginalizado e alvo de preconceitos por parte de seus pares, amigos, familiares e demais pessoas de convívio. Até mesmo durante o processo, no qual todos os atores ali conhecem o estado de inocência (Art. 5º, LVII, CF/88), ainda assim lhe lançam olhares pejorativos, diminuindo a sua condição de ser humano.

Também por tais motivos que esta fase processual sobreleva a importância do provimento jurisdicional de recebimento, bem como a responsabilidade do respectivo magistrado.

O Ministro Luiz Fux, do STF, sustenta que “num sistema constitucional como o nosso, em que prevalece a presunção de inocência, a afirmação de que o recebimento de uma denúncia facilita a vida do paciente, porquanto ele terá melhores condições de comprovar a ausência da ilicitude, realmente representa uma blasfêmia contra a razão e a fé na Justiça” (Inquérito 2.482/MG, STF).

Com efeito, o inciso III, do Art. 395, do CPP, condiciona o recebimento da denúncia à presença da justa causa, a qual representa justamente o juízo de probabilidade realizado pelo magistrado, aferindo se a narrativa acusatória juntamente com os elementos eleitos para serem produzidos durante a instrução poderão viabilizar futura condenação do acusado.

Ao magistrado cabe, outrossim, atuar com muito equilíbrio e ponderação[6] quando da avalição dos elementos que acompanham a denúncia ou queixa, aferindo sobre a real possibilidade de a história que será reconstruída durante a instrução processual ter viabilidade de formar um futuro juízo condenatório. Afinal, segundo Francesco Carnelutti: As provas servem, exatamente, para voltar atrás, ou seja, para fazer, ou melhor, para reconstruir a história”[7].

Na mesma linha, Fauzi Hassan Choukr noticia que a justa causa serve para impedir uma ação penal de conteúdo abstrato, que impõe ao cidadão a submissão ao arbítrio estatal, sem a menor probabilidade de futura condenação, situação incompatível com o Estado Democrático de Direito[8], e, atualmente, pode ensejar a prática do delito de abuso de autoridade.

Nessa linha de entendimento, poder-se-ia afirmar que a justa causa representaria uma verdadeira defesa do cidadão face ao exercício arbitrário do poderio estatal.

Por outro lado, cumpre ressaltar que o ato do recebimento da denúncia ou queixa, como se sabe, deve realizar uma cognição inicial e não exauriente da narrativa fática, não alcançando, ainda, um juízo definitivo sobre a certeza da tese da acusação.

Apesar de ser incabível exigir uma análise aprofundada de provas, é imperiosa a apreciação dos indícios e elementos até então colhidos, promovendo uma firme avaliação de todo o material que lhe foi apresentado, para verificar a real probabilidade, através do cotejo deste com a narrativa, de a tese acusatória ser futuramente constatada como verdadeira, fazendo, uma aferição, ainda sob a ótica de quais os standards de prova exigidos para se afirmar a sua presença.

Portanto é extremamente relevante seguir para além da usual leitura superficial da narrativa fática contida naquela peça através de simples análise sobre se os fatos narrados representariam um possível delito.

Deve-se aferir a justa causa de maneira ponderada e equilibrada durante o recebimento da denúncia, utilizando, para tanto, como bases fundamentais os princípios constitucionais do estado democrático de direito, da dignidade da pessoa humana, da razoabilidade, proporcionalidade e do estado de inocência.

A jurisprudência, em especial do STF, exige que a decisão de recebimento da denúncia ultrapasse o mero exame da validade formal da peça, sendo necessária, ainda, “a verificação da presença de indícios suficientes de autoria e de materialidade” (HC 128.031, Relª. Minª. Rosa Weber).

Entretanto, usualmente se verificam inúmeros provimentos jurisdicionais que se limitam à análise formal da narrativa fática  contida na exordial acusatória, sem realizar o devido cotejo de tal peça aos elementos que à ela estão acostados, ou, pelo menos deveriam estar, nem muito menos, promovem o juízo de probabilidade que consubstancia a averiguação da justa causa.

Não se pode permitir que a lógica autoritária de recebimento automático de denúncias e queixas-crime prevaleça ainda atualmente, especialmente por conta de a Carta Constitucional de 1988, no seu artigo 1º, consignar o estado democrático de direito como um dos princípios fundamentais da República Federativa Brasileira.

Bem é de ver que em muitos casos os processos vêm acompanhados de procedimentos investigatórios demasiado frágeis, cujos depoimentos das pessoas ali ouvidas não garantem a atual certeza da acusação, e, tendo o titular da ação penal eleito apenas tais meios de prova, facilmente se constata que a futura probabilidade de condenação é inexistente, situação que exigiria a rejeição da exordial acusatória.

O prejuízo de um processo inútil é muito pesado ao acusado, mas, causa danos também ao Poder Judiciário e demais atores do processo criminal, na medida em que se dispensa tempo e recursos à uma atividade que é sabidamente infrutífera, situação que pode ainda configurar o delito de abuso de autoridade, sem embargo da ofensa aos princípios constitucionais do estado democrático de direito, da dignidade da pessoa humana e do estado de inocência.

Portanto, evidencia-se que o recebimento da denúncia representa um momento de grande relevância ao processo penal, exigindo do magistrado a cautelosa averiguação acerca da presença da justa causa, a qual se consubstancia através de elementos firmes e ainda não definitivos da probabilidade da tese acusatória, sem os quais, é inviável o início do processo criminal.

 

Notas e Referências

[1] Processo Penal, vol. IV, 32ª ed. rev. e atual., pg. 71, Editora Saraiva: São Paulo, 2010.

[2] Direito Processual Penal, 13ª ed. rev. e atual., pg. 240, Editora Saraiva: São Paulo, 2016.

[3] Segundo o autor, a justa causa consistiria em um “suporte probatório mínimo” relacionado com “os indícios de autoria, existência material de uma conduta típica e alguma prova de sua antijuridicidade e culpabilidade”.

[4] Por uma Teoria da ação processual penal: aspectos teóricos atuais e considerações sobre a necessária reforma acusatória do processo penal brasileiro, Vol. I, pgs. 328/329, Observatório da Mentalidade Inquisitória: Curitiba, 2018.

[5] Direito Processual Penal, 10ª ed. rev. e atual., pg. 97, Editora Forense: Rio de Janeiro, 2001.

 [6]Neste sentido José Frederico Marques dispõe que: Esse despacho de delibação requer, sem dúvida, muito equilíbrio e ponderação, pois do contrário, a função opressora do Estado acabaria estancando-se, com grave prejuízo para o interesse comum e a segurança da vida social(Elementos de Direito Processual Penal, vol. II, pg. 164, Bookseller: Campinas, 1997).

[7] As misérias no processo penal, pg. 44, Editora Conan: São Paulo, 1995.

[8]A justa causa, veiculada processualmente por meio de provas lícitas, cumpre uma finalidade basilar no Estado de Direito, a de evitar-se que a ação penal tenha um conteúdo abstrato, submetendo-se alguém ao alvedrio estatal sem que exista a probabilidade(na linguagem de Moura) da recomposição do mundo da vida, o que, pelo Direito Penal, somente se dá com o esgotamento de alguma das finalidades preconizadas para a pena que seja compatível com a estrutura daquele mesmo Estado de Direito”.(Código de Processo Penal: comentários consolidados e crítica jurisprudencial, vol. II, 7ª ed., pg.36, D´Plácido: Belo Horizonte, 2017).

 

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