Coluna Advocacia Pública e outros temas Jurídicos em Debate / Coordenadores José Henrique Mouta e Weber Oliveira
As perguntas centrais que vêm desafiando a doutrina e a jurisprudência nacionais em relação ao tema que se pretende desenvolver, especialmente no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, são as seguintes: a) qual a natureza jurídica da decisão que aprecia a ação monitória e os embargos monitórios? b) é possível aplicar a fungibilidade entre a Apelação e o Agravo de Instrumento nos casos concretos em que ocorrer o desmembramento objeto ou subjetivo da relação processual?
O ponto de partida para contribuir com o debate e tentar encontrar uma resposta razoável para estas indagações, parte da análise e interpretação do disposto no art. 203, do CPC.
O legislador consagra que sentença é o pronunciamento por meio do qual o juiz encerra a fase cognitiva do procedimento comum, bem como extingue a execução. Por outro lado, decisão interlocutória é qualquer decisão que não se enquadre no conceito de sentença.
Como consequência, é admissível a existência de vários pronunciamentos de idêntica natureza, no mesmo processo. Em algumas situações, são cabíveis várias decisões interlocutórias (processuais e de mérito), sentenças em fase de conhecimento, de liquidação do título (em alguns casos)[1], na impugnação ao cumprimento de sentença (quando acolhida para extinguir o processo[2]), na extinção do cumprimento ou execução autônoma (arts. 924 e 925, do CPC), nas diversas situações envolvendo a ação de exigir contas[3], etc.
Dito de outra forma, o legislador deixa clara a possibilidade de, no curso da mesma relação processual, ocorrer decisão com caráter definitivo parcial (como no caso do julgamento antecipado parcial, exclusão de um litisconsorte, resolução da reconvenção, etc) ou mesmo em caráter processual (indeferimento parcial da inicial por aspecto formal, extinção sem resolução de mérito de parte do objeto), sendo conceituada como interlocutória e estando sujeita ao recurso de agravo de instrumento (arts. 1015, II, VII e 343, §2º, do CPC), bem como de diversas sentenças, proferidas em momentos diferentes (v.g., conhecimento, liquidação, impugnação acolhida e extinção do cumprimento de sentença).
No tema, vale citar o Enunciado 103, do Fórum Permanente de Processualistas Civis:
“A decisão parcial proferida no curso do processo com fundamento no art. 487, I, sujeita-se a recurso de agravo de instrumento”.
E quais seriam os reflexos desta multiplicidade de pronunciamentos judiciais? Penso que é possível, reafirmando posicionamentos anteriores[4], a formação progressiva da coisa julgada, a possibilidade de cumprimento definitivo e provisório de partes do mérito resolvidas e imunizadas em momentos diferenciados, além do desmembramento do processo em múltiplas etapas (parte em recurso, outra em fase, de conhecimento, de cumprimento. etc).
Em suma: o andamento da relação processual por vezes gera uma reflexão fracionada/escalonada/modulada/dinâmica, que pode variar de acordo com a cumulação (e descumulação) subjetiva e objetiva, aliada à possibilidade de seu desmembramento e existência de múltiplas etapas simultâneas ou sucessivas. A depender da situação jurídica concreta e da multiplicidade de pronunciamentos judiciais, o processo pode estar nas fases de conhecimento, cumprimento e recursal simultaneamente.
Este raciocínio ligado à ideia de multifases, se faz presente na ação monitória em, no mínimo, duas situações: a) na admissão da petição inicial e expedição do mandado monitório (art. 701, do CPC); b) na resolução dos embargos monitórios (art. 702, do CPC).
Como é de conhecimento geral, a ação pode ser proposta por aquele possui prova escrita capaz de exigir do devedor pagamento em dinheiro, entrega de coisa ou bem móvel ou imóvel, bem como adimplemento de conduta de fazer ou não fazer (art. 700, do CPC). Ao analisar a peça de ingresso, o juiz poderá indeferir, determinar a emenda da inicial ou a expedição do mandado monitório da obrigação a ser cumprida (art. 701, do CPC).
A prova escrita, nos termos de precedentes do STJ, deve ser apta (prova hábil) ao convencimento judicial visando a expedição do mandado monitório, senão vejamos a seguinte passagem:
"A prova hábil a instruir a ação monitória, isto é, apta a ensejar a determinação da expedição do mandado monitório - a que alude os artigos 1.102-A do CPC/1.973 e 700 do CPC/2.015 -, precisa demonstrar a existência da obrigação, devendo o documento ser escrito e suficiente para, efetivamente, influir na convicção do magistrado acerca do direito alegado, não sendo necessário prova robusta, estreme de dúvida, mas sim documento idôneo que permita juízo de probabilidade do direito afirmado pelo autor" (REsp n. 1.381.603/MS, Relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 6/10/2016, DJe de 11/11/2016)” . AgInt no AREsp 2251889 / SE – Rel. Min. Sérgio Kukina – 1ª Turma – J. em 24/04/2023 - DJe 27/04/2023.
Questão interessante nesta primeira fase da ação monitória está presente nas situações ligadas às hipóteses de descumulação objetiva e/ou subjetiva. O juiz, ao analisar a inicial, pode entender que alguns documentos são aptos e outros não, ou mesmo entende por bem excluir um dos litisconsortes ativos ou passivos.
Com efeito, apesar do art. 701, do CPC não trazer expressamente esta opção, a apreciação da inicial poderá diminuir objetivamente ou subjetivamente o ambiente litigioso, sendo conceituada como decisão interlocutória para fins de interposição de agravo de instrumento (art. 1.015, VIII, do CPC).
A 3ª Turma do STJ enfrentou interessante hipótese em que a parte deixou de atender a determinação de emenda da inicial em relação a um dos documentos apresentados na inicial, ocasionando a extinção parcial do processo que, a rigor, tratou-se de decisão interlocutória em razão do desmembramento objetivo da ação. Em relação ao objeto excluído, a parte poderia livremente utilizá-lo em ação de conhecimento com procedimento comum. Esta é a Ementa:
“PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. IRRESIGNAÇÃO MANEJADA SOB A ÉGIDE DO NCPC. AÇÃO MONITÓRIA. PETIÇÃO INICIAL. EMENDA A INICIAL. DESCUMPRIMENTO. EXTINÇÃO PARCIAL. POSSIBILIDADE. SUCUMBÊNCIA RECÍPROCA. CONDENAÇÃO EM HONORÁRIOS A FAVOR DE UMA E DE OUTRA PARTE. MAJORAÇÃO DA BASE DE CÁLCULO. IMPOSSIBILIDADE. NON REFORMATIO IN PEJUS. RECURSO ESPECIAL NÃO PROVIDO.
1. Aplicabilidade do novo Código de Processo Civil, devendo ser exigidos os requisitos de admissibilidade recursal na forma nele prevista, nos termos do Enunciado Administrativo nº 3, aprovado pelo Plenário do STJ na sessão de 9/3/2016: Aos recursos interpostos com fundamento no CPC/2015 (relativos a decisões publicadas a partir de 18 de março de 2016) serão exigidos os requisitos de admissibilidade recursal na forma do novo CPC.
2. Descumprida a determinação de emenda a inicial com relação a apresentação do original de uma das cártulas que embasou a monitória, não é juridicamente possível se falar em extinção total da demanda.
3. Havendo sucumbência recíproca, a manutenção do acórdão que determinou o prosseguimento da monitória com relação as demais notas promissórias, impede a majoração da verba honorária fixada, em atenção ao princípio do non reformatio in pejus.
4. Recurso especial não provido” (REsp 1.837.301/STJ 3ª Turma- Rel. Min. Moura Ribeiro – J. em 18.02.2020 – DJe 20.02.2020).
Como deixou claro o Exmo. Ministro Relator: “o descumprimento da ordem judicial para trazer aos autos o original da referida cártula não pode macular o pedido inicial na parte em que o processo foi instruído corretamente, nos termos do art. 283 do CPC/73”.
Esse desmembramento parcial é absolutamente admissível no sistema processual como um todo. No caso em questão, o objeto excluído poderá ser discutido em outra demanda com grau cognitivo maior, sendo, portanto, pronunciamento parcial sem resolução de mérito, desmembrando o objeto litigioso.
De outra banda, também podem ocorrer decisões parciais ligadas ao desmembramento objetivo ou subjetivo na fase de apreciação dos embargos monitórios e na constituição eventual de título executivo judicial (art. 702, §8º, do CPC).
Destarte, na apreciação dos embargos monitórios vários caminhos podem ser adotados nos casos concretos, dentre os quais o seu acolhimento parcial com a constituição (também parcial) do título executivo judicial em casos como: exclusão de algum documento do objeto litigioso, diminuição do valor discutido, ou mesmo a exclusão de um litisconsorte ativo ou passivo.
Nestas situações, parcela do processo inaugura o cumprimento de sentença e, outra parcela, enseja a interposição de agravo de instrumento ou mesmo pode restar estabilizada em decorrência do trânsito em julgado da decisão, cabendo ao intérprete analisar a sua consequência quanto à possibilidade ou não de provocação de nova demanda judicial (como no caso de exclusão de litisconsorte).
Aliás, acerca desse desmembramento que pode ocorrer no âmbito dos embargos monitórios, é relevante aduzir que, em recentíssimo julgamento, a 4ª Turma do STJ enfrentou dois temas interligados, a saber: o recurso cabível em decorrência da decisão que acolhe parcialmente os embargos monitórios para exclusão de litisconsorte passivo e a possibilidade de aplicação da fungibilidade recursal. Esta é a Ementa do Acórdão:
“PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. APELAÇÃO. EMBARGOS À MONITÓRIA. ACOLHIMENTO. LITISCONSORTES PASSIVOS. EXCLUSÃO PARCIAL. AÇÃO MONITÓRIA. ENCERRAMENTO. NÃO OCORRÊNCIA. AGRAVO DE INSTRUMENTO. CABIMENTO. ERRO GROSSEIRO. INEXISTÊNCIA. PRINCÍPIO DA FUNGIBILIDADE. APLICAÇÃO. RECURSO PROVIDO.
1. Os embargos à monitória têm natureza jurídica de defesa, e não de ação autônoma, de forma que seu julgamento, por si, não extingue o processo.
1.1. Somente é cabível recurso de apelação, na forma prevista pelo art. 702, § 9º, do CPC/2015, quando o acolhimento ou a rejeição dos embargos à monitória encerrar a fase de conhecimento.
1.2. No caso dos autos, contra a decisão que acolheu os embargos para excluir da lide parte dos litisconsortes passivos, remanescendo o trâmite da ação monitória em face de outro réu, é cabível o recurso de agravo, na forma de instrumento, conforme dispõem os arts. 1.009, § 1º, e 1.015, VII, do CPC/2015.
2. Havendo dúvida objetiva razoável sobre o cabimento do agravo de instrumento ou da apelação, admite-se a aplicação do princípio da fungibilidade recursal.
3. Recurso especial provido para determinar o retorno dos autos à origem, a fim de que seja analisado o recurso de apelação como agravo de instrumento” (REsp 1828657 / RS - - Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira – 4ª Turma/STJ – J. 05/09/2023 - Dje 14/09/2023).
Como se pode observar, o Recurso Especial foi provido para, de um lado, reconhecer que a decisão que acolhe os embargos monitórios para a exclusão de um dos litisconsortes passivos (mantendo o andamento do feito em relação ao outro réu), é passível de interposição de agravo de instrumento (arts. 1.009, § 1º, e 1.015, VII, do CPC/2015) e, de outro, admitir a incidência da fungibilidade recursal, com a determinação de retorno feito ao órgão e origem para proferir novo julgamento.
Logo, a formação do título executivo judicial em decorrência da rejeição dos embargos monitórios pode advir de sentença (como expressamente consta no art. 702, §9º, do CPC) ou de decisão interlocutória de mérito. A natureza da decisão que aprecia os embargos monitórios pode variar de acordo com o resultado em relação ao prosseguimento do feito e a inauguração (total ou parcial) da fase de cumprimento de sentença - que, a bem da verdade, pode ser sentença ou decisão interlocutória.
Bem a propósito, o art. 515, I, do CPC menciona que são títulos executivos judiciais as decisões “que reconheçam a exigibilidade de obrigação de pagar quantia, de fazer, de não fazer ou de entregar coisa”, não especificando, corretamente, se são sentenças, interlocutórias, decisões monocráticas de Relatores nos Tribunais, Acórdãos, etc.
A conclusão deste breve texto pode ser feita ratificando as premissas trazidas em seu início: é necessário termos a ideia de relação processual como algo modulado, móvel e dinâmico. As fases de conhecimento, cumprimento e recursais podem se apresentar simultaneamente, a depender do teor do pronunciamento judicial e da consequência para a continuidade da relação processual, o que irá gerar consequências em institutos como a coisa julgada, rescisória, execução, cumprimento de sentença, litispendência, etc.
Notas e referências
[1] É controvertida a natureza jurídica da decisão em liquidação de sentença, sendo conceituada como sentença ou mesmo interlocutória, com uma série de situações variáveis que não são objeto da presente reflexão. No Superior Tribunal de Justiça, indico a leitura das seguintes decisões: REsp 954.204/BA, Rel. Ministro Luiz Fux, 1ª T, DJe 6/8/2009; AgInt no AREsp 1452516 / PB – Rel. Min. Benedito Gonçalves – 1ª T - DJe 12/02/2020. Sobre liquidação zero e honorários advocatícios: REsp 1798937 / SP – Rel. Min. Nancy Andrigh – 3ª T – J. em 13/08/2019 – DJe 15/08/2019.
[2] A decisão que resolve a impugnação pode ter natureza de sentença ou de interlocutória, dependendo do resultado em relação ao andamento do processo. Com maior detalhamento acerca da variação conceitual, ver meu texto publicado no conjur e disponível em https://www.conjur.com.br/2023-mar-16/mouta-araujo-comentarios-recente-resp-1947309. Acesso em 9.5.2024.
[3] Já tive a oportunidade de enfrentar algumas variáveis conceituais nesta ação. Disponível em https://www.conjur.com.br/2019-out-20/jose-mouta-acerto-stj-decisoes-acao-exigir-contas. Acesso em 9.5.2024.
[4] ARAÚJO, José Henrique Mouta. Coisa julgada progressiva e resolução parcial de mérito. Curitiba: Juruá, 2007, além do ensaio intitulado O cumprimento de sentença e a 3ª etapa da reforma processual – primeiras impressões. Revista de Processo, São Paulo : RT, n. 123, pp. 156-158 e https://www.conjur.com.br/2023-ago-12/mouta-araujo-coisa-julgada-parcial-cumprimento-sentenca Acesso em 9.5.2024.]
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