Por Elisabeth Bittencourt – 12/05/2016
Logo depois que cheguei ao Maranhão, em 1977, fui trabalhar num Projeto de Colonização na BR-316, que liga o Estado do Maranhão ao Estado do Pará. Sentia-me em Bye, Bye Brasil e nem vou poder contar para vocês as impressões de uma carioca, recém-formada em Psicologia, e que se dizia revolucionária, chegando a Zé Doca, que fica entre São Luís e Belém – hello Brasil! – para fazer um trabalho com educação popular.
Esta experiência já começou com uma inversão: eram eles que me aturdiam com as coisas que diziam. Aquela fala promovia em mim efeitos de várias ordens, provocando uma desordem, uma desarrumação de lugares, uma quebra de narcisismo no meu carioquismo. Ainda bem, ainda bem...
Éramos todos revolucionários! Recordo-me bem do dia em que um amigo, contratado pelo Projeto, entrou pela sala com uma feição desenhada pelo horror, contando que Althusser, o filósofo estruturalista marxista, havia estrangulado a mulher. Isso emudeceu os revolucionários. Era como se não coubesse, na medida de nossos ideais político-revolucionários, que um filósofo marxista pudesse estrangular sua mulher.
Nós, que éramos revolucionários, estávamos livres desses paradoxos trágicos que constituem o humano. Nosso conto épico era a revolução! Erros, tropeços, escorregões, acertos... O fato é que assim fazíamos o nosso Bye Bye Brasil...
Anos depois, de volta de uma viagem ao Rio, cidade de encantos mil que tem boas livrarias, encontrei o livro O futuro dura muito tempo. Althusser, uma autobiografia (1992). Dando uma de mulher do açougueiro, aquela que Freud descobriu que queria caviar, mas para continuar em sua síndrome de desejo de desejo insatisfeito, sonhou com salmão, pensei, como numa espécie de autorização às avessas: vou levar para o meu marido, ele é que é filósofo!
No avião, resolvi folhear o livro e, quando li a cena do estrangulamento de Hélène tal qual Althusser a conta, sabia sem saber que um dia qualquer, sabe-se lá quando, Isso ia voltar...
Trágico? De que se trata?
O trágico nos dias atuais é um eco cheio de ressonâncias da tragédia grega; no entanto, o adjetivo parece ter, no decorrer dos tempos, se cristalizado num único sentido. Trágico passou a iluminar como uma senha típica dos tempos atuais: a tristeza aliada a grandes sofrimentos.
Nietzsche, afeito a iluminar gretas – lituras da vida –, fez cintilar a cena grega dos idos do séc. V a. C., trazendo para nossa contemporaneidade este par antagônico: Apolo/Dionísio. No entanto, se o trágico ganhou uma visão dionisíaca, tais figuras para os gregos “não são complementares” (Gazolla, 2001, p. 85).
Agregando o sentido grego da não-complementaridade a este par antagônico que Nietzsche iluminou, poderíamos nomear então o lugar desse par divino como um polo de simbolização que recorta uma topologia: possibilidade de fissurar o real, para além da complementaridade. Dionísio furou as resistências pela voz do poeta que filosofava.
Esse par divino traz a dessemelhança e, em seu caroço grego, insemina uma Outra polaridade, uma espécie de suporte, dispositivo material que possibilitou uma abertura para que Outros significantes emanados do trágico furassem o tempo, produzindo ecos nos tempos atuais.
Apolo – espectro da arte grega – pela “forma e medida”:
companheiro da sabedoria invisível, do equilíbrio estético, da tensão perfeita do arco e da lira, do delírio adivinhatório, do oculto exorcizado, da poesia e da música, mas também é terrível deus flecheiro, abrupto e traiçoeiro, coabitando com Dionísio, o terrível deus sem rosto, nestas características (Gazolla, 2001, p. 86).
Dionísio traz à cena a desmedida. Sua máscara representa a “própria expressão do teatro trágico” (Gazolla, 2001, p. 21). Deus sem rosto, ele nos joga na temporalidade da irrupção do impossível num jogo de presença e ausência:
um deus solidário à embriaguez, à voluptuosidade, à sexualidade, à máscara, ao jogo da ausência e presença, à dança, à música sem boa harmonia, grupal. Expressa, ainda, o amorfo ou pluriamorfo, o abrupto, a dor do despedaçamento, a crueldade. Mas ele é também benfazejo no descanso do corpo e no esquecimento propiciado pelo vinho (Gazolla, 2001, p. 86).
Somente Dionísio transporta os helenos “ao fundo das coisas” (Gazolla, 2001, p. 86), ou ao “cerne do seu ser” (Lacan, 1966/1998, p. 593), como prefere Lacan, trazendo à tona a atemporalidade, a falta de medida – que é sempre excessiva – para a qual a tragédia do cotidiano nos empurra, por puro empuxo?
A tragédia grega expressa os espíritos dos deuses, que, segundo Lacan (1959-1960/1998, p. 314), são reais; faz circular os significantes d’Isso que os tempos vêm querendo eliminar. Quebra com a razão iluminista, contamina o ar com a virulência de uma “potência originária” quase extinta, mas presente, presença na ausência: efeito de simbólico.
Joga em nossa cara nossos excessos de cortesia, máscaras pós-modernas que insistem em disfarçar um certo caroço do humano, criando imagens frívolas que invadem teletopicamente o nosso dia-a-dia.
A tragédia resiste insistindo enquanto encenação dramática, enquanto interrogação. Ela nos toca de perto – vide Medeia, encenada por Antunes – por colocar em foco o drama universal dos humanos em suas “afecções, na natureza, no sagrado, no profano, em seus limites e deslimites” (Gazolla, 2001, p. 25).
No entanto, não basta ir ver Medeia, se não deixarmos de lado nossa assepsia pós-moderna, resistente proteção aos efeitos da virulência da existência. São necessárias certas condições para a tragédia se realizar. Não é à-toa que Fernanda Montenegro, autorizada de si-mesma em sua arte, diz, numa entrevista:
Não sou preparada para os gregos. Entre os grupos com que eu me associei do ponto de vista artístico, os encenadores, os meus colegas, nunca cheguei a um ponto de me sentir segura para montar uma tragédia grega. Acho que no Brasil as encenações dos gregos sempre chegam apenas até a altura do drama, nunca chegam ao que eu chamaria de uma sintonia com o trágico. Já fiz Fedra, mas era do francês Racine. É muito difícil, hoje, jogar um mito no palco (Montenegro, 1988, p. 11).
Condições
Se o trágico é um eco cheio de ressonâncias da tragédia grega, Isso significa que para a tragédia ressoar no alvorecer deste novo século serão necessárias certas condições. Mas quais?
O gênero “tragédia” nasce no século V a. C., efeito de certas condições políticas, sociais, culturais, gerando um éthos-daímon. Éthos é o conjunto de valores, normas e instituições seguidas pelos homens enquanto coletivo, materializando o modo como as relações vão se estruturar para a sobrevivência da comunidade.
Mas... em que, de lá para cá, aqui e ali, o espírito do trágico vem se presentificando em nossos dias? Em certos tipos de experiência constitutivos do humano, quando somos atingidos em nossos subterrâneos íntimos mais profundos. Quando a fala, este instrumento falho, falha, escancarando suas zonas de opacidade e incomunicabilidade, e somos subjugados por nossas supostas escolhas?
Se o século XIX se recheou de significantes do tragicofílico, Isso promoveu efeitos que abriram o alvorecer deste século, que insiste em diluir os paradoxos constitutivos da humanidade, condição necessária para que a tragédia cresça e apareça. Seguindo a inspiração de Gumbrecht, trata-se da indústria que ele nomeia como de “artifícios de desparadoxificação” (Gumbrecht, 2001, p. 16).
Rastros daquilo que vem da indústria das seduções fáceis: verdadeiras próteses que têm a função de produzir ilusões das mais variadas espécies, como aquelas que se alimentam da crença de que a circulação dos afetos e as identificações entre seres humanos, possam ser substituídas por artefatos da indústria. Tentativa de diluir um paradoxo constitutivo do humano: excluir o outrinho da constituição do sujeito psíquico.
Conforme já havia anunciado Freud, qualquer objeto serve para a pulsão sexual dominada pelos traços da perversão contemporânea. A ciência, a tecnologia, a indústria das seduções fáceis, aliadas aos políticos, se transfiguram no humano, na possibilidade de oferecer troços fantásticos ao mundo: “Dêem-nos dinheiro, vocês não se dão conta, se nos derem um pouco de dinheiro, do que não poríamos com máquinas, troços e trens a serviço de vocês. Como é que as autoridades puderam deixar-se manipular? (Lacan,1959-1960/1988, p. 389).
É assim que em Tóquio, essa megacidade, cenário de ficção científica, podem ser encontradas figuras da família em vinil, bonecos em tamanho natural, quase verdadeiros e com a cara da avó ou do avô. Se a dificuldade do convívio é grande, se o conflito de gerações é intenso, o negócio são avós em vinil, iguais a eles e com duração considerável e garantia por tempo determinado, é claro – afinal, o tempo é um limite da humanidade. Ainda bem!
A ordem dos paradoxos tem como condição constitutiva que a verdade seja não-toda: “Princípios e valores que se excluem mutuamente podem estar simultaneamente presentes e ser simultaneamente pertinentes” (Gumbrecht, 2001, p. 11). Dessa condição, advém um desamparo que faz com que os seres falantes raramente saibam qual a melhor trilha a seguir, sustentando, no alvorecer deste século, digamos assim, um certo espírito da tragédia. Enfim, naquilo que me interessa recortar, Lyotard nos diz que “as relações familiares são os lugares privilegiados da tragédia” (Lyotard apud Gumbrecht, 2001, p. 11).
O cidadão grego.
O cidadão grego não tinha noção de sua existência, de seu si-mesmo, no sentido de um indivíduo moderno, passível de ser plasmado pela criação de leis subjetivas, capazes de lhe fornecer uma certa autonomia. Esse momento íntimo em que alguém conversa consigo mesmo, se Isso houvesse, é que pode edificar aquilo que se chama responsabilidade. A partir daí, depois de elaborar leis a partir de seu próprio peso, o cidadão passa a ser responsável por seus atos. Sabemos que a coisa não é tão simples assim.
O rastreamento dos documentos sobre a Grécia do século V ou VI a. C. revelou vestígios do que no futuro os filósofos iriam fazer aparecer – a noção de sujeito responsável: uma espécie de passe para a liberdade? O Direito, sem essa construção interna, não teria como apontar a intencionalidade de um crime.
A culpa trágica seria regida pela hamartía – “doença do espírito, falta, erro, falha” – e pela hybris – “desmedida” (Gazolla, 2001, p. 26). Mas a hamartía vem dos deuses, demarcando um lugar que engendra o crime trágico. Essa ideia é nuclear na articulação que o destino trágico do herói vai ter com a tragédia. O delito trágico não é do herói; são os deuses que submetem os heróis ao seu destino. A Moira é a deusa que dá a parte que cabe a cada um. Sem discussão. Só na Idade Média vai ser construída a ideia de livre-arbítrio.
Mas, apesar de a determinação ser grande no mundo grego e absoluta na tragédia, quando Eurípides escreve Medeia, cinquenta anos depois que Atenas fora destruída (430 a. C.), em tempos de reconstrução da pólis, ele abre uma fissura na determinação.
Medeia, por artimanhas de Afrodite e Eros, se apaixona por Jasão, que tinha ido a Cólquida em busca do velocino de ouro. Contrapondo-se à sua família, ela foge com Jasão para a Grécia. Depois de anos casados, Jasão a abandona para unir-se à filha de Creonte, rei de Corinto, que condena Medeia e seus filhos ao exílio.
Depois de ter caído em uma melancolia profunda, ela dirige seu ódio ao outro. Mergulha em sua sophé, sua ancestralidade divina, da qual havia se afastado, para obedecer aos costumes de Corinto. Ela é uma semideusa, diretamente descendente dos deuses, sacerdotisa, conhece os segredos das ervas; impetuosa, difere dos valores femininos de Corinto. Trata-se então de um drama humano de uma mulher tomada pelo pathos e que é parte do Divino, sofre do absoluto.
Esgotados os argumentos com Creonte, ela cai na ordem do absoluto – garantido por um ponto de sutura –, de onde não poderá irremediavelmente recuar: decide matar o rei Creonte, desfigurar a noiva de Jasão e assassinar seus próprios filhos:
Minhas amigas, os fatos estão decididos para mim; tendo matado meus filhos, deixarei esta terra o mais depressa possível, e não abandonarei meus filhos para serem mortos por mãos hostis. É absolutamente necessário que eles morram. Já que assim é, eu os matarei, eu que os pari. Vamos, meu coração, torna-te duro como aço, arma-te (Eurípedes, 1988, p. 54).
Eurípedes mostra deuses e heróis em roupas caseiras. Estes seres que ali estão têm a mesma fraqueza e agem pelos mesmos motivos que qualquer um dos espectadores. Mantém o mito como tema, abordando outros conteúdos. Coloca o homem frente a frente com o seu agir, ousando na introdução de um monólogo interior.
Um jogo sutil de pronomes e artigos inaugura um conflito interno com a heroína, não mais totalmente subjugada pelo Divino:
Ó mísera por meu caráter implacável [...] Em vão, ó crianças, eu vos criei. [...] A mísera então tinha esperanças. [...] Digo adeus às decisões. Contudo, que sofro? Quero causar riso. Deixando impunes meus inimigos? (Gazolla, 2001, p. 130).
A Medeia cabe decidir; ela não se reconhece em seu ato de horror e se nomeia enquanto uma outra – ela – terceira pessoa do singular, a mísera, ficando logo depois capturada pela primeira pessoa, que tenta ponderar: minha vida será triste.
Aristóteles afirma que a proaíresis/deliberação/escolha é “ação que se efetua na alma como afirmação da iniciativa própria/kekousia” (Aristóteles, Livro III, apud Gazolla, 2001, p. 72). Os animais, as crianças e os loucos que agiriam por pressões internas ou externas estariam fora da kekousia/iniciativa própria, e dentro da akousía/sem iniciativa, não tendo condições de uma escolha.
A psicose – estrutura que subjuga um sujeito – em nossos tempos ganhou um a mais no campo do trágico: a exigência de interferência dos sistemas legais e do diagnóstico e tratamento psiquiátricos (Dias, 2001).
O caso Althusser.
A leitura da escrita de Althusser que, impedido de falar judicialmente, resolve, mesmo assim, desse lugar que lhe é cabível, se expressar, promove um efeito no leitor, digno da catarsis aristotélica, principal condição para a tragédia se realizar:
Tal como conservei a lembrança intacta e precisa até em seus menores detalhes, gravada em mim através de todas as minhas provações e para sempre – entre duas noites, aquela da qual eu saía sem saber qual era e aquela em que eu ia entrar, vou dizer quando e como: eis a cena do assassinato, tal como a vivi (Althusser, 1992, p. 23).
De qual lugar escreve Althusser? Do lugar de um sujeito que foi transtornado pela experiência da loucura: ruptura com o laço social. É deste lugar de escriba de si, transtornado pela ruptura de sua subjetividade, impedido pela imputabilidade legal que lhe é imposta, que o autor desta tragédia escreve, ou melhor, “tenta contornar o buraco”[1]: esse é o mote da escrita na psicose.
Mauro Mendes Dias (2001) ressalta em seu Seminário que a foraclusão é uma “explicação capenga” e que, a partir do Seminário 20 de Lacan, há uma mudança na concepção de significante a partir da letra. Isso nos permitiria pensar que a escrita na psicose seria uma “tentativa de recompor a relação entre os significantes” (Dias, 2001). Não se trata da construção de um sentido e sim da tentativa de dar um contorno a esse si-próprio cheio de buracos, espantos, absurdos que o sujeito tenta contornar, entre crises graves de grande confusão mental.
Althusser precisava dizer algo d’Isso que tinha força própria sobre ele, subjugando-o. Assim, ele pega da pena e escreve a tragédia de seu destino. Vai em busca da história familiar, como se dali viessem as primeiras pedrinhas de seu futuro que já se prenunciava: o destino trágico o aguardava. Sabemos que as relações familiares são constitutivas da tragédia.
A psicose.
Cada sujeito que fala está fadado à experiência de ruptura do laço social, que é pura linguagem. Se sou tecida pela linguagem, Isso sempre pode também me descoser, conforme uma certa configuração de acasos. Fica ali um buraco que bordeja a loucura.
Se estou no campo da experiência enquanto fenômeno, posso dar um jeito de cerzir o buraco, fica então apenas uma falha mal cerzida. Nada mal! Mas se caio no campo da estrutura, isso significa que não há volta possível. O buraco, lá, fica. Alguma coisa que não foi sequer admitida/Bejahung fica fora. Fica fora, foracluída/Verwerfung, fora da jogada possível.
É como se o caráter inexorável da Verwerfung servisse de empuxo à tragédia, iluminando a experiência de ruptura do laço social. Trata-se de um sujeito desterrado de si e sem terra para se exilar. Uma espécie de deserto do sentido: “empuxo à morte” (Souza, 1999, p. 91). O abismo o cerca, o ronda.
Efeito da ruptura com o Outro, suporte do inconsciente, matriz da língua falada. Outro potente que criva suas marcas em nossa carne, deixa vestígios, edifica nossos sintomas. Se há uma ruptura nesse laço, o sujeito se vê embaralhado pelo tempo, pelo código.
Destituído de suas referências, ele se vê invadido por um Outro que costumava ser silencioso e que agora o insulta, rouba o seu pensamento, metamorfoseia sua intimidade em uma estranheza “insuspeitada” até aquele momento: “O momento do desencadeamento é a hora da ruptura, momento em que a experiência se desvela, mostrando, nuas e cruas, as entranhas daquela condição antes insuspeitada. Insuspeitada porque convivia aí, sintônica, silenciosa” (Dias, 2001). A partir daí, um sujeito vive a psicose em sua dimensão trágica: efeito da estrutura da psicose.
O lugar daquele que escreve.
Aqui surge a pergunta que, embora sem saber sabendo, ali estava, por trás, a me impulsionar. Manoel Tosta Berlinck (1992) nomeia a autobiografia O futuro dura muito tempo como uma obra marcante e que vai além de uma história pessoal, colocando-a no lugar da tragédia do século XX. Tal colocação me inquietou e me atiçou.
Como ponto de partida: uma tragédia no século XX sofre os efeitos da contemporaneidade. Deslocada então de sua origem grega, somos levados a considerar que, na origem da tragédia, está o mito. Da mesma forma que a matéria bruta do mito é a alma da tragédia, da origem só podemos falar enquanto mito.
Quais, neste “pequeno livro”, seriam os ecos, traços, marcas, lituras, rastros da tragédia, a ponto de fazê-lo merecer a nomeação de a tragédia do século XX? “Que os leitores me perdoem. Este pequeno livro, escrevo-o primeiramente para meus amigos, e para mim, se possível. Logo se compreenderão minhas razões” (Althusser, 1992, p. 25).
É do lugar de um sujeito subjugado pela loucura e que, entre intervalos, tenta dizer algo sobre o estrangulamento de sua mulher, que Althusser pega da pena da escrita para escrever a tragédia de seu destino. Mania de saber ou tentativa do dizer?
O poeta trágico, o mito e a tragédia.
O poeta trágico na Grécia está inserido num lugar de escrita que advém dos rituais de sacrifício encenados nas orgias que, no sentido grego, representam a celebração de mistérios: “a dança, a festa, o riso, os jogos e o delírio ruidoso que o coro de sátiros se empenha em mimetizar nas ruas são indicativos das antigas orgias do culto dionisíaco” (Gazolla, 2001, p. 18). A particularidade das orgias dada por um éthos mítico-religioso não se perpetuou em nossa contemporaneidade.
A tragédia é efeito de uma ruptura no pensamento grego. Se, conforme Aristóteles, o mito é a matéria bruta da tragédia, esta, no entanto, pelas mãos do poeta, ganha um a-mais. O bruto na tragédia se elabora em poesia e encenação: os atores entram em ação. Da narração do mito à tragédia, surge então a cena que encena, coloca a vida na cena.
A tragédia inaugura um novo gênero literário com a encenação de um espetáculo, ao contrário da poesia épica e da lírica, que eram criadas apenas para serem escutadas em recepções ou nas comemorações de Delfos ou de Olímpia. A matéria a ser encenada é a mesma: histórias míticas. Conteúdo que, incessantemente, de geração a geração, transmite os germens constitutivos da nação grega.
O mito ou a trama dos fatos serve de suporte material, eixo em que as “peripécias”, que mudam os sucessos em seu contrário – “reconhecimento que faz a passagem do ignorar ao conhecer” –, e a “catástrofe”/pathos possam se presentificar enquanto rastro da tragédia grega nesse novo século que se inicia. “Reconhecimento com Peripécia suscita terror e piedade” (Aristóteles, 1993, p. 63). A “tragédia é imitação de ações que despertam tais sentimentos” (ibid.). E mais: “a boa ou a má fortuna resultam naturalmente de tais ações” (ibid.).
Aristóteles, em sua Poética, diz que:
[...] não devem ser representados nem homens muito bons que passem da boa para má fortuna – caso que não suscita terror nem piedade, mas a repugnância – nem homens muito maus que passem da má para a boa fortuna, pois não há coisa menos trágica, faltando-lhe todos os requisitos para tal efeito; não é conforme os sentimentos humanos; nem desperta terror ou piedade (Aristóteles, 1993, p. 67).
Freud (1942/1989), no texto “Personagens psicopáticos no palco”, coloca que o drama tem por finalidade despertar temor e piedade, promovendo uma purgação dos afetos. Trata-se de “fazer brotar fontes de prazer ou de gozo na nossa vida afetiva, assim como o cômico, o dito espirituoso, etc... fazem brotar de nossa vida intelectual fontes similares” (Freud, 1942/1989, p. 289).
E Althusser?
E Althusser, que não é um poeta trágico, mas vive o trágico pela via da loucura e, impedido legalmente, insiste em se expressar? O impedimento o coloca num lugar particular? Ele próprio diz que não teria condições psíquicas para enfrentar um júri, mas, diante de especulações maldosas da imprensa, resolve escrever o que ele chama de “pequeno livro”, para si e para alguns próximos, para quem ele ocupava o lugar de mestria. A questão da publicação não é uma questão qualquer na Psicanálise.
O que da tragédia grega se articula no escrito de Althusser, aproximando-o da categoria de tragédia contemporânea? No nível da estrutura – mito e ato –, Althusser, conforme o lamento de seus discípulos, poderia ter evitado esta passagem ao ato trágico, se estivesse internado.
A questão do assassinato enquanto ato promove consequências trágicas: o horror fica exposto e o espectador fica preso pela identificação com o herói. Isso sem esquecer que, segundo Freud, a identificação é o laço mais primitivo que há.
Dada a condição de inexorabilidade que a operação da Verwerfung/foraclusão produz numa estrutura psicótica – uma espécie de buraco permanente que ali se inclui, promovendo efeitos de exclusão do simbólico num sujeito, agregando ao horror exposto um a-mais – caímos no sentimento profundo de piedade. Aquele sujeito não pode evitar a realização de um ato trágico: o assassinato de sua mulher. Ele é inocente, vítima de seu revés?
O caráter de uma certa “inocência” mais a impossibilidade absoluta de reconstrução do acesso ao simbólico – como a inexorabilidade das tragédias anteriores a Eurípides, em que, apesar de o sujeito agir, a Moira já determinou a parte que cabe a cada um – edifica uma ponte que bordeja com a necessária distância – Sófocles e Althusser?
Entretanto, a inevitabilidade do buraco no simbólico, que promove, por efeito, uma passagem ao ato trágico, não seria suficiente para que um autor alcançasse a tragédia. Trata-se de uma condição fundante, mas não suficiente.
O escrito de Althusser é trágico porque re-atualiza estruturas de discurso que o antecedem e o ultrapassam, trazendo à cena o mito: condensado que reapresenta os pilares sobre os quais a humanidade ocidental foi edificada, colocando em cena a questão da natureza da culpa e a noção de responsabilidade.
Mas ainda assim, Isso não é suficiente. O que faz com que nós, leitores, sejamos arrebatados pela escrita de Althusser, aproximando-nos daquilo que Aristóteles chamou catarse?
O brilho de Antígona retorna, fazendo cintilar aquilo que é da ordem da sublimação: obra de arte, trazendo a beleza que fere o coração e cega os humanos: “Reflexo sagrado da visão da beleza” (Nietzsche, s/d, p. 22).
Sem Isso, sem a beleza da obra de arte, não seria possível a escrita desta tragédia do século XX, presente de Althusser que chegou pela via de um certo revés do destino: o impedimento legal. Isso parece ter sido fundamental para que ele se jogasse nessa empreitada, e nos deixasse como herança, além de sua filosofia, este presente...
E para terminar, palavras de Althusser:
De repente, estou em pé, de roupão, ao pé da minha cama. [...] Diante de mim, Hélène, deitada de frente [...]. Ajoelhado bem pertinho dela, debruçado sobre seu corpo, estou lhe massageando o pescoço. [...] Massageio em V. [...] O rosto de Hélène está imóvel e sereno, seus olhos abertos fixam o teto. De repente invade-me o terror. Por certo já vi mortos, mas em toda a minha vida nunca vi o rosto de uma estrangulada. Mas como? Levanto-me e grito: estrangulei Hélène! (Althusser, 1992, p. 23-24).
Notas e Referências:
[1] Segundo Mauro Mendes Dias (2001), enquanto a escrita na psicose é uma tentativa de contornar o buraco, na neurose é uma tentativa de dizer do buraco.
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. Elisabeth Bittencourt é Psicanalista e Escritora. Membro da Escola Lacaniana de Psicanálise do Rio de Janeiro. Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise do Programa de Pós Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná – UFPR. . .
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