A morte de Lula

30/03/2016

Por André De Marco e Daniel A. Dourado - 30/03/2016

Todas as democracias fortes se parecem entre si; as fracas são fracas cada uma à sua maneira. Tudo era confusão em terrae brasilis. A população ficara sabendo pelo telejornal que o ex-presidente da República havia sido conduzido pela polícia para prestar depoimento, e foi o que bastou para medrar o clamor social por sua prisão. Do “Fora, Lula!”, grito bramoso que de há tempos já ecoava nas ruas do país, fez-se então o altivo “Lula na cadeia!”.

A pergunta que lançamos: o que é isto – “Lula na cadeia!”?

Para além das análises políticas, que, no mais das vezes, instam em afirmar que a vontade de ver Lula preso corresponde meramente a uma manifestação de ódio ideológico, ou qualquer outro lugar comum que o valha, aqui arriscamos dizer que, no fundo, esse clamor é, muito antes, expressão de um fenômeno complexo, que é conhecido na psicanálise como “declínio da função paterna” ou, simplesmente, “morte do Pai”.

Não temos a pretensão de fazer um ensaio de teoria psicanalítica. A ideia aqui é lançar um ponto de vista diferente sobre o verdadeiro frisson causado pela perspectiva do encarceramento do ex-presidente e da mobilização existente em torno de sua figura, ainda central no debate político brasileiro, sendo adorada ou odiada.

A FUNÇÃO PATERNA NA PSICANÁLISE

O questionamento acerca da figura do Pai está na base da teoria psicanalítica e perpassa grande parte da obra de Freud e Lacan, para citar apenas o seu criador e o mais influente autor que o sucedeu. Ao contrário do que se pode intuir, “Pai” em psicanálise não tem relação com gênero, não corresponde a noção de genitor e ultrapassa o significado social do termo. É conceito relacionado ao simbolismo, à linguagem e à constituição do funcionamento psíquico – talvez por isso muitos autores prefiram a expressão “função paterna”.

Desde o início da construção conceitual daquilo que viria a ser denominado complexo de Édipo, Freud já chamava a atenção para a ambivalência da função paterna na origem do psiquismo, considerando que não seria por acaso que três das principais obras da literatura mundial de todos os tempos – Édipo Rei (Sófocles), Hamlet (Shakespeare) e Os irmãos Karamazov (Dostoiésvski) – terem como elemento nuclear o mesmo tema: o parricídio.

No texto Totem e tabu (1913), Freud elaborou o mito do assassinato do pai da horda primeva, narrativa que fundamenta sua teoria acerca do nascimento da cultura. A “morte do pai originário” executada pelos seus filhos, que ao mesmo tempo o temiam e o amavam, é, para Freud, o evento fundante que dá origem ao sujeito e à linguagem, a partir da culpa e de sua decorrência imediata: a Lei. Esta última, a Lei, assoma, portanto, como correlata do Pai, constituindo-se em instância terceira (autoridade) que tem como função demarcar os limites do gozo para cada sujeito (Lacan).

Em Psicologia das massas e análise do Eu (1921), Freud desenvolve sua concepção de psicologia social como derivação da psicologia individual e avança na noção de Pai num sentido de chefe ou líder (político e/ou religioso). A extensão da função paterna na psicologia coletiva compreenderia, assim, as lideranças e grupos sociais em que os indivíduos estão inseridos.

Em Dostoiévski e o parricídio (1928), partindo da obra-prima do escritor russo, Freud apresenta duas versões de Pai – um idealizado e um degradado – e elabora a compreensão de que a antítese entre o desejo pela morte do Pai e a identificação com o Pai morto estaria na essência das neuroses que estudava. Nesse ponto, já havia concebido a ideia de que a função paterna ocupa o papel de construção auxiliar, em que a identificação com o Pai é incorporada ao Eu (ou Ego) e, internalizada, daria origem ao Supereu (ou Superego), vale dizer, uma dimensão moral produto da internalização dos valores e padrões recebidos do Pai (família, religião, escola, Lei). A função primordial do Supereu seria a de refrear os impulsos do Isto (ou Id), outra instância psíquica, definida por Freud como “um caldeirão cheio de excitações efervescentes e que desconhece o julgamento de valores, o bem e o mal, a moralidade”.

Pois bem, nos parece que, atualmente, a figura do o ex-presidente Lula condensa no imaginário político nacional alguns elementos dessa função paterna, projetada na psicologia coletiva. Um líder político que ainda arrebata multidões, como podemos recentemente constatar nas manifestações em apoio à sua permanência no governo (e até mesmo na ideia que ele seria “a última esperança” para reabilitar esse governo). E que desperta a repulsa de outras multidões, que se dizem certas de ser ele “o chefe” dos esquemas de corrupção ora desvelados. Uma boa dose de literatura pode ajudar-nos a seguir adiante.

DORIAN GRAY, SOLIPSISMO E CRISE DE LEGITIMIDADE

No romance O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, a referida função paterna aparece de forma simbólica na construção do personagem central. Para que não se perca nenhuma leitura, é possível grosseiramente resumir a narrativa da forma seguinte. Dorian Gray é um jovem pertencente à burguesia inglesa, descrito como detentor de uma beleza tão extraordinária, que se torna inspiração de um pintor, Basil Hallward, que pinta um retrato seu. Através de Basil, Dorian conhece Lorde Henry Wottom, um aristocrata que incentiva o rapaz a desfrutar ao máximo de sua beleza e juventude, sem remorsos. Em seu primeiro encontro com Lorde Henry, Dorian se depara com seu retrato, e faz então um pedido: que o quadro envelhecesse em seu lugar, enquanto ele continuasse belo e jovem para sempre – e, como se sabe, ele é atendido. Dorian “vende a alma” e acaba seguindo caminhos tortuosos, numa vida marcada por pecados e imoralidades.

Ao longo de toda a narrativa, é possível vislumbrar uma interação existente entreSupereu e Isto, as duas instâncias em constante atrito que dominam e moldam o belo rapaz. Enquanto Basil exerce a primeira função, buscando constranger a vaidade e as atitudes libertinas de Dorian, Lorde Henry cumpre o papel da última, encorajando-o constantemente a perseguir seus desejos a todo custo, a partir de uma exaltação à autoindulgência. Numa célebre passagem, assim fala ao jovem:

"Todo o impulso que esforçadamente asfixiamos fica a fermentar no nosso espírito (…). Ceder a uma tentação é a única maneira de nos libertarmos dela. Se lhe resistimos, a alma enlanguesce, adoece com as saudades de tudo o que a si mesma proíbe, e de desejo por tudo o que as suas leis monstruosas converteram em monstruosidade e ilegalidade."

Como no mito de Narciso, o personagem de Wilde torna-se um espectador de si mesmo, deixando de identificar-se pelo “espelho” que é o Outro (Lacan) – e adicionamos: rejeitando aquela que é a situação fundamental da humanidade: o fato de estarmos sempre conversando com o outro (Gadamer). Em miúdos: Dorian Gray edifica sua subjetividade a partir do desprezo e, no limite, abandono completo da experiência intersubjetiva.

Eis a formulação do solipsismo, vale dizer, a consequência extrema de se acreditar que o conhecimento deve estar fundado em estados de experiência interiores e pessoais, não se conseguindo estabelecer uma relação direta entre esses estados e o conhecimento objetivo de algo para além deles (Blackburn).

Quando a referência à instância terceira – o Pai ou a lei simbólica – deixa de ter prevalência para o sujeito, criam-se as condições para o aparecimento da desestrutura psíquica, que, no caso do personagem de Wilde, o conduz por um caminho de vícios e imoralidades. Pensemos também no personagem Rei Lear, da obra homônima de Shakespeare, um monarca isolado em si mesmo, fadado à decrepitude, ou nos personagens Don Draper (Mad Men) e Cersei Lannister (Game of Thrones). Ou ainda pensemos em pessoas reais, como nesse vídeo. Cada um deles, de um modo ou de outro, representa a vitória das pulsões sobre as contrições, ou, dito de outro modo, a primazia do Isto ou, enfim, a “morte do Pai” – “parricídio” que, muitas vezes, se manifesta de forma infantilizada (como no caso do vídeo).

Esse declínio da função paterna se apresenta de forma característica na pós-modernidade. Nas palavras do filósofo e psicanalista Mario Fleig:

"Há uma crise de legitimidade da autoridade, que tem como efeito a evaporação dos lugares que têm como função demarcar as obrigações e os limites para cada sujeito. Isso significa uma desagregação da lei simbólica, na qual os neo-sujeitos se supõem desobrigados de qualquer limite e aspirados pelo ideal de gozar de tudo e a qualquer preço."

Ao que parece, desenvolveu-se uma “cultura de subjetivização” que evita qualquer interdição do gozo, o que tende a produzir sujeitos incapazes de dialetizar o ódio que sua introdução na linguagem – o Direito, exemplificamos – produz (Fleig). Nesse sentido, a interdição da Lei origina um desejo pulsante no sujeito, o que se manifesta na vontade de gozar de tudo e a todo custo, imediatamente e sem falhas. É o caso do tio que no almoço de domingo afirma: “Lula deve ser preso, ainda que seja atropelando a lei!”. Fosse esse sintoma suscitador de conflitos privativos do sujeito, não haveria razão para grande alarde; no máximo, mais trabalho para os psicanalistas e psiquiatras. O problema é que, em larga escala, essa desestruturação tem por corolário a desagregação do tecido social, circunstância historicamente deflagrada em momentos de histeria coletiva.

Portanto, o solipsismo, ora entendido como primazia do Isto (ou “fator Lorde Henry”), tem por efeito a substituição, quase sempre violenta, da função paterna de demarcação de limites pelo império das vontades (ou sensações), o que implica, do ponto de vista da organização de uma comunidade, destruir aquilo que Heidegger chamou de “projeto de mundo compartilhado”.

NUMA PALAVRA

“Tudo o que há de admirável e de indesejável na nova geração é determinado por esse desligamento do pai”. Palavras do próprio Freud.

A “morte” de Lula, avidamente desejada por alguns (muitos) de nós, pode originar resultados admiráveis, como, por exemplo, o desenvolvimento de uma “iconoclastia” superadora da cultura messiânica e personalista, consubstanciada, como se observa no caso dos “governistas”, na apologia inexorável da figura do ex-presidente. Entretanto, é preciso, urgentemente, abrir os olhos ao resultado indesejável, que, ora, é o que mais se sobressai: a destruição dos limites impostos pela linguagem (jurídica, predominantemente).

E ainda mais grave é esse resultado quando verificamos que o sujeito solipsista ocupa na sociedade posições originalmente constitutivas da própria autoridade (o Estado), vale dizer, posições correlatas da função paterna, como é o caso dos juízes e promotores. Quando o Estado, ele mesmo, deixa de fazer valer o papel de interdição da lei (jurídica e simbólica), acaba por consentir com a dissolução de sua legitimidade, numa afirmação tácita de que o mundo é, de fato, apenas um esboço virtual do sujeito. No entanto, é importante lembrarmo-nos que, ao contrário do personagem narcisista de Wilde, o “corpo” da autoridade democrática não é local adequado para a administração de paixões.

Desse modo, se a “morte” é o que espera o ex-presidente, que fique a cargo da linguagem comum (o Direito, no caso), e não dos desejos de gozo individuais (sejam de uma maioria ou não). Como a criança que ouve um “não” dos pais, ou na escola recebe uma advertência do professor, aprendamos logo a tão simples e quase infantil lição de que não podemos, na vida pública, exigir tudo o que queremos.

De sujeitos como Dorian Gray já nos basta a ficção.


André Balbo. . André De Marco é editor-chefe do jornal Arcadas e quintanista da Faculdade de Direito da USP.. . .


Daniel A. Dourado. . Daniel A. Dourado é médico psiquiatra, mestre em Medicina Preventiva (USP) e quintanista da Faculdade de Direito da USP. . .


Imagem Ilustrativa do Post: Ilustração de Eloisa Yang, terceiranista da Faculdade de Direito da USP.

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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