A MINUTA

14/01/2023

Coluna Por Supuesto

Uma minuta é um borrão, um rascunho, uma redação inicial ainda não definitiva, mas que revela a intencionalidade de que após uma boa revisão, uma “melhorada”, um detalhamento e um aperfeiçoamento, conclua com um documento considerado a versão final, que será transportada por seus redatores ao âmbito previamente pensado para que de alguma forma produza os efeitos esperados.

A não ser que admitamos que existam pessoas que tenham o costume, ou talvez cultivem, ou pratiquem o “esporte” inusitado de “redigir minutas” com o intuito (“inocente”, poder-se ia dizer, é claro) de participar do inédito “concurso de minutas”, na sua edição pitoresca de rascunhos preparatórios de golpes e agressões contra a Constituição e o Estado democrático, a minuta de um decreto, encontrada na busca e apreensão realizada pela Polícia Federal no domicílio do ex-ministro de Justiça do governo anterior é um elemento novo, com caráter jurídico de indício, dentro do acumulado de disparates inconstitucionais e malignos protagonizados especialmente a partir do segundo semestre de 2016. 

Falamos tecnicamente de indício porque trata-se de circunstância da qual se desprende uma probabilidade. Ou seja, é uma espécie de sinal. Na democracia, o indiciamento supõe razões fundadas, justamente para repelir qualquer tipo de arbitrariedade pela autoridade que possui competência para a prática do ato de indiciamento. Se não houver denúncia pelo Ministério Público retira-se a qualidade de indiciado, mas se houver denúncia e esta for acolhida, o indiciado já não é mais indiciado, senão que passa a ser considerado réu.

Faço um breve parêntese para dizer que retorno ao Brasil paulistano e corroboro aquilo que os amigos e amigas do mundo político e jurídico me reiteram com o ar de quem dá conselhos para que eu não seja surpreendido, e que se sintetiza em duas frases para lá de célebres que são, na verdade, ferramentas de conexão nas mais diversas ocasiões: “O Brasil não é para principiantes”, atribuída a Tom Jobim, e “No Brasil ninguém morre de tedio”, de autoria desconhecida (pelo menos para mim).      

Certamente a invasão, depredação, baderna, ataque, imoralidade e crimes cometidos contra a República neste domingo 8 de janeiro, foram os eventos mais anunciados desde a morte de Santiago Nassar na crónica de Garcia Márquez. Porém, a minuta é mais um elemento que se adiciona ao conjunto da obra que começou a ser arquitetada há um bom tempo para desconhecer o resultado das urnas de 2022 e impedir que a vontade popular seja efetivada.

Vale apontar que, como nos ensina a melhor doutrina, um fato que indica a possível prática de um crime não pode ser analisado de forma isolada. Ou como diz Moraes Pitombo, oportunamente citado por Aury Lópes Jr., o indiciamento deve resultar do encontro de um “feixe de indícios convergentes”, que apontam para certa ou certas pessoas, supostamente autoras da infração penal. E ressalta o prezado professor da PUCRS, que

O indiciamento pressupõe um grau mais elevado de certeza da autoria que a situação de suspeito. Nesse sentido, recordamos as palavras de MORAES PITOMBO, de que o suspeito sobre o qual se reuniu prova da autoria da infração tem que ser indiciado. Já aquele que contra si possui frágeis indícios, ou outro meio de prova esgarçado, não pode ser indiciado. Mantém-se ele como é: suspeito. O indiciamento é assim um ato posterior ao estado de suspeito e está baseado em um juízo de probabilidade, e não de mera possibilidade”. [1] 

Não se trata de emitir juízos prematuros, mas não é possível deixar de pensar em que não seria estranho que o ex-presidente e seus aliados, que inflamaram com uma retórica irresponsável e bem expressiva, conhecida no Brasil e mundo fora, os ânimos de muitos dos que participaram dos reprováveis e criminosos atos do domingo, tivessem a intenção de utilizar a minuta do decreto, por sinal reitere-se, de flagrante inconstitucionalidade.

Insistimos na inconstitucionalidade manifesta porque a tentativa consistia em decretar Estado de Defesa, à luz das atribuições estabelecidas no Texto Maior nos artigos 84, IX, 136, 140 e 141, na sede do Tribunal Superior Eleitoral em Brasília.

O curioso de tudo é que, como explicamos em capítulo escrito na companhia do professor Z. Fachin na obra Direito Constitucional Brasileiro, coordenada por Clémerson Clève, o estado de defesa é um mecanismo que, como parte do sistema constitucional das crises, serve de resguardo ou de instrumento de recuperação da normalidade estatal. Justamente a normalidade estatal que foi alterada inúmeras vezes pelos próprios artífices da minuta e de quem teria que eventualmente assinar o decreto. Paradoxal! O diagnóstico dessa breve época do inominável é o desprezo da Constituição, ou por seu desconhecimento finalístico e valorativo ou porque tentou-se usar sempre para que ela própria fosse ferida.  Neste caso, os que atentaram contra a Carta de 1988 conhecem perfeitamente sua responsabilidade, cumplicidade e conivência. Não em vão há os “fugidos” e “escapulidos” e começamos a falar em extradição. 

A minuta retrata um tempo ao qual o Brasil não pode retornar e, por supuesto, deve servir de elemento importante para desmontar, com a Constituição e uma interpretação e aplicação de sua força normativa, o sistema conspirativo instalado. Para tanto, responsabilizar e estabelecer as devidas sanções a todos e todas os envolvidos nos eventos do dia 8 de janeiro é um bom começo.

 

Notas e referências

[1] Veja-se o subcapítulo. “O indiciado no Sistema brasileiro: Alterações Introduzidas pela Lei 12.830/2013” no seu Direito Processual Penal. São Paulo. Saraiva Educação. 2019.

 

 

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