A migração dos polos como uma regra geral no microssistema da tutela coletiva – Por Felippe Borring Rocha e Guilherme Curci T. Risso

12/12/2017

Coordenador: Gilberto Bruschi

Até meados dos anos 1980, o Brasil sofria pela falta de instrumentos processuais aptos a promover uma adequada tutela dos interesses coletivos. Havia então um claro descompasso entre o sistema jurídico voltado para a resolução de conflitos interindividuais e uma estrutura social cada vez mais complexa e massificada. Apesar do ordenamento jurídico pátrio já contar com a ação popular (Lei nº. 4.717/1965), o turning point da tutela coletiva no Brasil verdadeiramente ocorreu com a edição da Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/1985), que introduziu não apenas uma ação coletiva, mas também uma estrutura voltada para regular a proteção jurídica dos interesses transindividuais, dispondo de regras materiais e processuais, além de mecanismos extrajudiciais de tratamento das causas coletivas. Logo depois, a Constituição Federal de 1988 consolidou a estrutura jurídico-política do Estado Democrático de Direito (condição essencial para o desenvolvimento da tutela coletiva) e reconheceu uma nova gama de direitos, muitos deles de natureza transindividual.

Em seguida à promulgação da Carta Magna de 1988, a tutela coletiva passou a ser objeto de várias leis que foram editadas no Brasil, merecendo destaque o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.096/1990), a Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/1992), o Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/2003), a Lei do Mandado de Segurança (Lei nº 12.016/2009) e a Lei do Mandado de Injunção (Lei nº 13.300/2016). Atualmente, dependendo do critério de contagem que se adote, é possível identificar mais de 30 ações coletivas em nosso sistema jurídico.

A criação de um número expressivo de leis especiais sobre tutela coletiva num espaço tão curto de tempo transformou o sistema jurídico brasileiro num dos mais complexos e sofisticados do mundo, e que serve de inspiração aos legisladores de outros países. Apesar de representar um inegável avanço no que diz respeito ao tema, é preciso reconhecer que a coexistência de diferentes subsistemas, com regras distintas, traz também insegurança jurídica e fragiliza a isonomia que deve nortear a proteção jurídica de questões tão importantes para a sociedade. Por isso, o ideal seria a edição de um Código de Processo Coletivo, para concentrar as regras e princípios gerais de funcionamento desse tipo de instrumento, promovendo um tratamento coerente, lógico e eficiente das questões transindividuais.[1]Infelizmente, no entanto, a possibilidade de aprovação de um código nesses moldes mostra-se cada vez mais distante, uma vez que esbarra nos interesses corporativos bem assentados no Congresso Nacional. Sendo assim, o caminho necessário a ser percorrido pelos aplicadores do Direito é buscar soluções hermenêuticas capazes preservar a coerência do sistema jurídico e, ao mesmo tempo, extrair o máximo de eficiência na preservação dos interesses transindividuais.

Nesse sentido, vem se consolidando nos últimos anos a percepção de que as regras sobre tutela coletiva devem ser interpretadas em conjunto, através de uma análise sistemática, fundada no diálogo entre as fontes, formando um microssistema.[2] Dentro dessa linha de pensamento, as regras sobre tutela coletiva seriam interpretadas como se fizessem parte de um texto único, composto pela interação dos dispositivos legais destinados a regular o tema, distribuídos em dois setores: “disposições gerais” e “disposições especiais”. O primeiro setor seria formado pelas regras e princípios que serviriam de base de funcionamento para todas as ações coletivas, enquanto o segundo regularia as particularidades que determinadas ações coletivas possuem e que devem ser respeitadas, em razão da sua natureza.

Esse modelo hermenêutico, apesar de minoritário, já foi capaz de produzir significativos resultados práticos na realidade da tutela coletiva brasileira. Hoje, por exemplo, tornou-se lugar comum dizer que a conjugação das regras presentes na Lei da Ação Civil Pública e no Código de Defesa do Consumidor (arts. 81 a 104) formam a “parte geral” da tutela coletiva, servindo como base de funcionamento dos diferentes instrumentos jurídicos de proteção dos interesses transindividuais.[3] Não obstante, falta ainda à orientação majoritária ampliar os limites interpretativos vigentes para identificar que existem regras gerais da tutela coletiva que estão fora do eixo LACP-CDC e que podem ser aplicáveis a todas as ações coletivas. Tal situação pode ser ilustrada pela possibilidade de migração de polos, contida no art. 6º, § 3º, da Lei da Ação Popular, e no art. 17, § 3º, da Lei de Improbidade Administrativa. Nestes dispositivos, permite-se que a pessoa jurídica de direito público ou de direito privado, cujo ato seja objeto de impugnação, possa atuar ao lado do autor, desde que se afigure útil ao interesse público, a juízo do respectivo representante legal ou dirigente.

É certo que, nas ações de cunho coletivo, o interesse de agir e a legitimidade ad causam possuem uma roupagem diferente em relação às ações individuais, tendo em vista que o interesse tutelado é transindividual e a legitimidade é conferida a um legitimado extraordinário. Exatamente por isso, a sua análise não pode se restringir ao momento da propositura da demanda, devendo ser examinada ao longo de toda a cadeia processual, já que possui caráter dinâmico. Nesse sentido, Antonio do Passo Cabral[4] aponta a existência de “zonas de interesse”, o que faria com que o interesse fosse verificado em cada ato processual, levando à despolarização do processo. Isso porque o ajuizamento de uma ação coletiva dá surgimento a uma relação jurídica complexa na qual os sujeitos processuais são titulares de direitos e deveres, o que permite a um único sujeito assumir mais de uma posição jurídica processual. Assim, a depender do bem jurídico violado, a Administração Pública poderá possuir interesse e legitimidade na proteção do bem lesado. Em decorrência disso, o ente poderá optar por adotar uma das seguintes condutas: contestar a ação, se abster de contestá-la ou assistir o autor.

Apesar do evidente caráter geral dessa regra, como esse mecanismo processual não se encontra previsto na Lei da Ação Civil Pública ou no Código de Defesa do Consumidor, o entendimento majoritário tem sido no sentido de que sua aplicação se limita às ações populares e às ações de improbidade administrativa. Nesse passo, importante destacar que os mesmos interesses transindividuais ventilados numa ação popular podem ser protegidos por meio de uma ação civil pública, e que não existe superioridade hierárquica entre esses interesses e os demais interesses coletivos. A posição prevalente, portanto, promove uma quebra de isonomia, impactando negativamente na efetividade da tutela jurisdicional coletiva.

Por isso, parece inevitável sustentar que a regra sobre migração de polos prevista na Lei da Ação Popular pode ser aplicada a todas as ações coletivas, quando isso se afigurar como adequado e útil à efetiva prestação da tutela jurisdicional. Por certo, se há previsão expressa da possibilidade de habilitação do Poder Público como litisconsorte de qualquer das partes na ação civil pública (art. 5º, § 2º, da Lei nº 7.347/1985), não há razão para não se permitir a mudança de polo quando ele for citado como réu na demanda. Além disso, a própria essência dessas duas ações exige uma postura reflexiva e imparcial do Poder Público, para que possa agir com a devida neutralidade na busca pela tutela do interesse público. Importa salientar igualmente que a omissão do legislador não configura uma opção por um silêncio eloquente, uma vez que a interpretação sistemática desse microssistema deve privilegiar a regra mais favorável à efetiva defesa do interesse público primário e à concretização de direitos.

Nesse contexto, é interessante apontar que, recentemente, nos autos de ação civil pública proposta em conjunto pela Defensoria Pública e pelo Ministério Público, o Estado do Rio de Janeiro manifestou seu interesse em migrar para o polo ativo da demanda, tendo em vista que o seu objeto – a discussão sobre a necessidade de realização de um processo licitatório –, coincidia com a sua visão sobre a defesa do interesse público.   Infelizmente, no entanto, antes que o Juízo pudesse apreciar o pedido de migração, foi celebrado um Termo de Ajustamento de Conduta – TAC entre as partes, que redundou na exclusão do ente público do polo passivo. In verbis:

“Tendo os autores e primeiro réu celebrado termo de compromisso, conforme fls. 4310/4316, HOMOLOGO o referido acordo, em consequência, determino a exclusão do ERJ do polo passivo, mantido os demais réus. Digam os demais réus sobre o acrescido. Digam ainda, as partes se têm provas a produzir” (TJRJ – 4ª Vara de Fazenda Pública – Proc. nº 0180675-57.2017.8.19.0001 – Juiz Maria Paula Gouvea Galhardo, j. em 13/11/2017) 

De qualquer modo, apesar do desfecho um tanto quanto frustrante, são iniciativas como essa que ajudam a sedimentar uma compreensão mais ampla sobre as formas de interpretação das regras sobre tutela coletiva no País. Espera-se que elas possam se multiplicar e frutificar, servindo de base para a construção de um novo entendimento jurisprudencial sobre o tema.

 

Notas e Referências:

[1] Por todos, veja-se a introdução feita por Aluisio Gonçalves de Castro Mendes ao livro coordenado por ele juntamente com Ada Pellegrini Grinover e Kazuo Watanabe, chamado de Direito processual coletivo e o anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 16/32, e o artigo escrito por Luiz Manoel Gomes Júnior e Rogério Favreto, intitulado de Anotações sobre o projeto da nova lei da ação civil pública: principais inovaçõesin Revista Magister Direito Empresarial, Concorrencial e do Consumidor, v. 27, p. 5/21, 2009.

[2] Nesse sentido, veja-se o seguinte trecho da decisão monocrática proferida no STJ em 24/11/2014 pelo Ministro Luis Felipe Salomão: “Como é cediço, as ações coletivas fazem parte de um arcabouço normativo próprio, constituindo microssistema com regras particulares, que devem ser compatibilizadas e integradas numa interpretação sistemática, sem se descuidar do inequívoco objetivo legal e constitucional de facilitação do acesso coletivo à Justiça” (3ª Turma – ARESP 592.756/PR). 

[3] Apenas para ilustrar, veja-se a explanação feita por Daniel Amorim Assumpção Neves no seu livro Manual de processo coletivo – volume único, 3ª ed., Salvador: IusPodivm, 2016, p. 43/44.

[4] CABRAL, Antonio do Passo. Despolarização do processo e “zonas de interesse”: sobre a migração entre polos da demanda. Disponível em: <http://www.prrj.mpf.mp.br/custoslegis/revista_2009/2009/aprovados/2009a_Tut_Col_Cabral%2001.pdf>. Acesso em: 26 nov. 2017.

 

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