A mídia e o anseio popular punitivo: quando o anseio popular “legitima” o abuso a constituição

28/06/2017

Por Gabriel Pereira de Carvalho - 28/06/2017

O abuso a nossa constituição se tornou um fator, infelizmente, comum. Seja na política, periferias, sistema carcerário, dentre tantos outros. Um dos maiores reflexos desse abuso encontra-se numa situação de aclamação por parte do público. Isso porque, pautados numa ideia de segurança pública e/ou interesse público, presos são constantemente apresentados a mídia. Justamente nessa perspectiva, o direito constitucional da violação a intimidade é ferido.

“Ligam a noção do exercício abusivo dos direitos aos interesses particulares expressamente reconhecidos pelas leis: o uso absoluto e egoísta dos direitos legalmente concedidos.” (WARAT, 1990, pag. 39)

Com essa citação do Grande Jurista Luis Alberto Warat, em O Abuso Estatal Do Direito, deve-se atentar à criticidade frente a essa causa ignorada e marginalizada pelo todo social, porém, de importância dantesca. Principalmente por ter como base tal egoísmo legal, que ignora toda uma hierarquia de leis e princípios que conduzem à dignidade humana na sociedade.

A Constituição Federal de 1988 garante, em seu art. 5º, inciso X, que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. Contudo, a problemática se encontra no fato de, no mesmo artigo, no inciso XIV, que todos possuem acesso à informação, o que torna “justificável” a apresentação dos presos pela mídia

E justamente nessa problemática, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, sob a relatoria da Ministra Nancy Andrighi, em recente julgado proferido nos autos do Resp. n. º 984.803, adotando a teoria da ponderação do direito à imagem e do direito à informação, ambos constitucionalmente protegidos, entendeu que a liberdade de imprensa não é um direito absoluto.

E ainda, tem-se que esse aspecto é convalidado pela própria Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/84), a qual em seu art. 41, inciso VIII, enuncia entre os direitos do preso, “proteção contra qualquer forma de sensacionalismo”. Contudo, é o oposto que vemos na sociedade goiana.

A problemática aumenta ao analisarmos as consequências disso. O índice de reincidência, como afirmara Cezar Peluso, ex-ministro do STF, chega a 70% no Brasil. Esse quadro explica-se por diversos fatores, mas um dos centrais é a dificuldade de reinserção no mercado de trabalho. Novamente, graças a uma cultura punitiva, fomentada pela mídia, que insiste em atacar e desumanizar presos, eliminando uma probabilidade de ressocialização. Isso fica bem claro na fala do doutrinador Rodrigo Roig, o qual, em sua obra Execução Penal: Teoria Crítica, diz que:

“Da situação de vulnerabilidade decorre também a constatação de que, no âmbito de um Estado Republicano e Democrático de Direito, os direitos das pessoas ou internadas devem ser tutelados ainda contra a vontade da maioria e mesmo que agências midiáticas – Formadoras da Opinião popular -- pressionem as agências políticas e jurídicas a adotarem soluções defensivistas, excludentes e irracionais” (ROIG, 2016, pag.56)

Como fica claro, o Estado tem o papel de contrapor tal anseio punitiva, seja da mídia, seja da população. Não se trata de um anseio popular, ou desejo democrático de reconhecimento, mas sim da proteção da dignidade humana individual, da possibilidade de ressocialização, já reduzida por um sistema carcerário nefasto, que acaba por ser, em parte, deteriorada por uma exposição na mídia.

Exposição essa que atribui rótulos a indivíduos, retomando a teoria do Labeling approach, que aumentam a marginalização desses entes, relocando todo e qualquer dispositivo jurídico, até mesmo a constituição, a um segundo plano. Sendo esses superados por um desejo popular, fomentado pela mídia, de punição e castigo a qualquer custo, mesmo se cumprida a pena ou não, mesmo se atendido ao devido processo legal ou não.

Justamente, considerando tal populismo penal, temos a brilhante fala do Juiz da corte interamericana de Direitos Humanos, Eugênio Raul Zaffaroni, o qual em sua obra “A questão criminal”, diz que:

“Imaginemos o que aconteceria caso se procedesse com o mesmo critério (populismo) em outros âmbitos, como por exemplo, no da medicina. Se, numa mesa de bar, alguém defendesse a teoria dos humores, é provável que os demais o olhassem com ironia. Porém, como a liberdade é livre, é claro que qualquer um pode continuar defendendo a teoria dos humores na mesa de bar; ninguém discute esse direito à expressão. No entanto, seria grave se a teoria dos humores fosse divulgada como discurso único pelos meios de comunicação, se se desprestigiasse ou menosprezasse a quem dissesse algo diferente, se os pesquisadores médicos e biólogos ficassem isolados com seus discursos em seus institutos, se a autoridade sanitária e os políticos que fazem as leis acreditassem na opinião do bar e não na que os médicos poderiam dizer, ou, pior ainda, se os próprios médicos fizessem calar a quem negasse a teoria dos humores porque isso lhes gera um perigo político. É óbvio que o índice de mortalidade subiria de forma alarmante. ” (ZAFFARONI, 2011, pag. 14)

Logo, como podemos observar, de uma forma triste e nada coerente, há um grande comportamento punitivo pautado em uma razão meramente midiática. Essa corrobora em transportar as ciências criminais, um campo complexo, delicado e que requer extremos estudos, a uma conversa informal, repleta de generalizações, na qual quanto maior o brado de punição, maior é o “saber” da mídia.

Em tal perspectiva é notória a relevância da “razão punitiva”, que coordena toda a logística da defesa social e políticas de enfrentamento na esfera pública brasileira, deixando de lado toda concepção de políticas públicas preventivas (como o uso da justiça restaurativa). Mesmo com uma série de pareceres técnicos, tal razão punitiva persiste, e o grande jurista Nilo Batista responde o porquê dessa perpetuação:

“A (des)razão punitiva tem sido astuciosa o suficiente para sobreviver, ao longo de milênios, como um camaleão que assume as formas requisitadas pelas relações econômicas, relegitimando-se constantemente através de um discurso jurídico, disfarçado na pele de um dever ou de um direito do Estado. Quando a razão se encontrou com ela, na conjuntura histórica sobre a qual tivemos tão precariamente, ajoelhou-se aos seus pés, e até hoje estamos pagando o preço disso” (BATISTA. 2016, pag. 158)

É clara a demonstração da sobrevivência de tal discurso punitiva, e essa face, como citada, muda sua perspectiva com a roupagem de um discurso supostamente jurídico, no qual o Estado deve agir de qualquer forma. E justamente, sendo esse um dos fatores mais relevantes, o Brasil enfrenta uma crise carcerária dantesca, na qual as condições são insalubres e desumanas (como vários estudos deixam isso bem claro).

Então, o que se ressalta nesse momento, e claramente, é como a exposição dos presos à mídia não é só um fato inconstitucional, mas também um fomento a concepção punitiva em nossa sociedade. Um relato de como um veículo midiático prolifera um desejo cada vez maior de brutalidade, violência e vingança. E cada vida perdida por consequência disso, seja nos presídios, seja na total falta de ressocialização na saída dos mesmos, todos somos responsáveis por cada uma dessas mortes. Assistimos inerte a um espetáculo sensacionalista, no qual o indivíduo não pode se defender e mais uma vez, passa a ser a estatística da margem do sistema.


Notas e Referências:

ANITUA, Gabriel Ignacio. HISTÓRIAS DOS PENSAMENTOS CRIMINOLOGICOS. Rio da Janeiro: Revan, 2008.

CARVALHO, Salo de; CARVALHO, Diego de; BATISTA, Nilo. Para Além do Direito Alternativo e do Garantismo Jurídico. Rio da Janeiro: Lumen Juris, 2016.

 ROIG, Rodrigo Duque Estrada. EXECUÇÃO PENAL: Teoria Crítica. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

WARAT, Luis Alberto. O abuso estatal do Direito. Sequência: Estudos jurídicos e políticos, Florianópolis, v. 11, n. 21, p.34-50, jul. 1990.

ZAFFARONI, Eugenio Raul. A QUESTÃO CRIMINAL. Rio de Janeiro: Revan, 2011


Gabriel Pereira de Carvalho. . Gabriel Pereira de Carvalho é graduando em Direito pela UFG. Pesquisador do Observatório Goiano de Direitos Humanos. Presidente da Liga acadêmica de Ciências Penais- UFG. . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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