A metáfora dos Robots - Por Paulo Ferreira da Cunha

09/11/2017

A falta de estudo de coisas substanciais, tangíveis, leva a que alguns julguem que sabem algo por terem decorado umas abstrações, quantas vezes mera propaganda, refinada "ad usum". Como possuem alguma inteligência simples, lógica, formal (mecânica, maquinal – no limite de computador, ou de robot...), vai de aplicar esses dogmas à realidade, a coisas concretas e práticas. O resultado só pode ser catastrófico. É o caminho simplista que vai do dogma decorado ao artigo de opinião, ao grito de guerra, a todas as formas tradicionais de intervenção social e política: um silogismo a partir de premissas falsas.

Aliás, seria interessante analisar, desde logo, a psicologia do artigo de opinião nos dias de hoje. Fica-se com a impressão de que, para certas pessoas, ele adquire o nível de sortilégio. Nele se revivem, mutatis mutandis, as magias das pinturas rupestres, dos hieróglifos, das runas... O escrito e enquadrado na publicação (sobretudo, cremos, a publicação ainda em papel e em suporte de prestígio social) adquire uma auctoritas que chega a ser demiúrgica. Não será que muitos acreditam que o que escrevem move mesmo montanhas, muda mesmo o mundo?

No terreno da política e do Direito pode ser terrível esta falta de pé no real. Há políticos e juristas que julgam mesmo que “uma canetada” pode mudar o Mundo. E o mal, e o perigo, é que (em certos casos e de uma certa maneira: não necessariamente a desejada) pode mesmo... e normalmente para pior.

Mas voltemos ao problema educativo, o magno problema dos nossos tempos. É necessário rever profundamente o que ensinamos às pessoas, e em especial os preconceitos que lhes metemos na cabeça. Quantas vezes sem nos darmos conta, mas muitas vezes bem sabendo que se trata de dogmas, hipocrisias e armas de arremesso ideologizadíssimas. Ora no momento atual, proliferam preconceitos e anti-preconceitos que são novos preconceitos em muitos casos. Com uma sanha vindicativa, punitivista, inquisitorial, por vezes formidável, e que certamente já a muitos amedronta. Quantos não clamam por tortura, pena de morte, sabe-se lá que mais para aqueles que elegeram como bodes expiatórios, responsáveis pelos maiores males da Humanidade?

Há paradoxos, hoje. Talvez ainda sejam eles uma esperança, porque provam que nem tudo está padronizado... Por um lado, a mentalidade mais modernista é abstracionista, fria, cega, impiedosa; mas ao mesmo tempo desabrocha uma outra mentalidade, primitiva, que vem do fundo dos tempos, e que é passional e pode ser igualmente sanguinária. Uns desejam o extermínio do outro por higiene ou eugenismo, os outros por ódio irracional a um bode expiatório, por exemplo.

A sensação de guerra civil já foi detetada por alguns (desde um Hans Magnus Enzensberger). É uma guerra civil global, não declarada, por vezes insidiosa, e em grande medida de propaganda. Tende a prolongar-se indefinidamente. Aproveitará (que se veja, que se calcule) a alguns, muito poucos, que conseguem guindar-se a posições de fama, sucesso e eventualmente lucro. Aparentemente, pela subsistência e até eventual agravamento dos problemas, não estará a aproveitar substancialmente e em larga escala, em muitos casos, aos grupos que alguns dizem defender.

Sobe o tom, mas não as verdadeiras vitórias. Ficamos pasmados com o que de tenebroso ainda existe nas mentalidades e nas práticas que nessas mentalidades se fundamentam. Talvez a estratégia adequada não fosse a que tem sido seguida... Talvez haja mecanismos de defesa do statu quo mais ou menos subtis... Talvez tenhamos que educar precocemente mais, em vez de discursar tanto...

Contudo, ainda é cedo para avaliações de fundo sérias e definitivas e muitos terrenos de democratização, igualdade, fraternidade, etc., e carecemos de estudos para identificar melhor o fenómeno (estes fenómenos) de deriva antidemocrática sob pretextos democratíssimos, que anda enlaçado com contraditórios politicamente corretos e pensamentos únicos.

A primeira vontade que dá certamente a alguns é a de se refugir numa nuvem de nostalgia, de quando o mundo era simples, e as querelas de ideologias passavam pela economia e a redistribuição. Afinal coisas relativamente suportáveis, superficiais, materiais apenas comparadas com as profundas revoluções mentais e identitárias de hoje...

A Revolução de Outubro (que se está já recordando à conta do centenário) e todas as revoluções comunistas (admitindo que foram, de entre todas, as mais transformadoras no plano infra- e superestrutural, como se diria em terminologia marxista) quase não colocam às pessoas normais, ao cidadão comum, senão problemas de adesão ou repulsa com base em mais ou menos idealismo e adesão ao binómio liberdade ou igualdade. Foram dramas terríveis para alguns. Mas entendendia-se o que se passava. Estava nos limites do apreensível.

A Revolução que está em curso, sem que muitos se apercebam senão pontualmente pelas múltiplas mudanças que pontualmente despontam, é muito mais profunda: essa nova revolução vai ao cerne da identidade das pessoas, à sua autognose e à sua ipseidade. É uma mutação pluridimensional muito séria na sua anómica e naturalmente contraditória disjunção e ilusório colorido...

Acresce que as pessoas, mesmo as cultas, mesmo as que poderiam ser críticas, não têm tempo para ponderar, meditar, refletir, avaliar, e são arregimentadas passionalmente para este ou aquele exagero com mais facilidade. Às técnicas de marketing que comovem e motivam com bases científicas não é fácil resistir, sobretudo quando se está afogado em trabalho.

A concessão de personalidade jurídica a um robot é o simbólico passo para essa espécie de pós-humanidade em que está a resultar a dita sociedade hodierna, que passou por tantos nomes já, e que é sim burocrática, de massas, técnica, de consumo, de espetáculo, e de informação.

A dúvida mais profunda é sobre a docilização da humanidade. Ainda se proclamam até independências (e Brexits), e fazem muitas manifestações, e mais ainda abaixo-assinados. Abaixo-assinados rotinizaram-se. Podemos assinar uma dúzia por dia, para as coisas mais importantes e para as mais banais. Mas, apesar de tudo isto, parece que Brassens convenceu: morrer por ideias, sim, mas de morte lenta. Ou seja, não se morre já por ideias. Poucos morrerão certamente por ideias. Não julgamos. Limitamo-nos a crer que assim é, por simples constatação.

A nova sociedade poderá vir a engendrar heróis resistentes, com razão ou sem ela? Ou estamos condenados agora a uma marcha inexorável da História para a pós-humanidade, quiçá essa Cidade dos Cães da ficção científica, em que os Homens se demitiram e deram lugar a outros? Ou, quem sabe, o novo Planeta dos Macacos, ou dos Robots?

As declarações rotundas, definitivas, enfáticas, têm sempre tendência a falhar, porque a realidade é muito complexa e variada. Não faremos qualquer vaticínio.

De qualquer forma, não deixa de ser um desafio perguntarmo-nos em que medida o robot não será o símbolo já do Homem atual e se a robotização das ideias pela formatação mediática não é o grande traço da mentalidade contemporânea.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Robot // Foto de: Nick Amoscato // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/namoscato/34903819446

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