A menor das insignificâncias

24/04/2017

Por Gustavo de Almeida Ribeiro – 24/04/2017

Já separei uns dois temas para escrever de forma mais elaborada, cuidadosa, aprofundada, coisa que acabo nunca fazendo.

Invejo os colegas disciplinados que, após uma jornada exaustiva de trabalho, conseguem grande produção acadêmica/doutrinária. Mal consigo alimentar meu blog, estando sempre em atraso.

Ainda quero tecer algumas reflexões mais técnicas sobre o princípio da insignificância e o descaminho, mas, neste texto, limitar-me-ei a questões mais práticas.

O Supremo Tribunal Federal passou a rejeitar a aplicação do princípio da insignificância em favor de pessoas que tenham não só condenações prévias, como, também, que possuam registros de autuações fiscais pela aludida conduta. Esse entendimento já está bastante consolidado.

Apesar de não concordar, posso até compreender a vedação da bagatela em caso de reiteração no crime de furto, sob o fundamento de que muitas vezes as vítimas são pessoas também modestas, como pequenos comerciantes, que as condutas geram intranquilidade em algumas localidades, ou desejo de solução pelas próprias mãos. Reitero: discordo, mas compreendo.

No caso do descaminho, todavia, nada disso se aplica. Em primeiro lugar, é preciso dizer que os bens trazidos têm sua importação permitida, caso contrário, a conduta seria contrabando (ou, ainda, tráfico). A questão, fundamentalmente, é o não recolhimento dos tributos devidos na internalização das mercadorias.

A conduta não tem uma vítima física, identificável, que pode ser prejudicada diretamente e buscar fazer justiça com as próprias mãos. O sujeito passivo do crime é a administração pública. Seus autores sim, poderiam ser chamados de vítimas de uma série de circunstâncias, e que, a seu modo, tentam ganhar a vida. Por isso meu questionamento se a resposta penal é a melhor medida.

Pois bem, comecei minha carreira na Defensoria Pública da União em Uruguaiana, Rio Grande do Sul, fronteira com a Argentina. É uma fronteira razoavelmente tranquila. A maioria dos casos penais em que atuei dizia respeito ao descaminho. Em regra, pessoas que tinham ido ao Paraguai buscar alguns produtos para vender.

Eram senhoras, senhores, jovens que arriscavam suas vidas nas péssimas e perigosas estradas brasileiras, muitas vezes em ônibus velhos, quiçá clandestinos, para adquirir alguns brinquedos, roupas, tênis e repassá-los em bancas de rua.

Poderia apostar que essas pessoas não escolheram essa vida, que muitas delas passaram por inúmeros perigos nas viagens, que diante de um desemprego avassalador e diminuta formação escolar, optaram por comprar produtos nos países vizinhos ao invés de praticarem crimes verdadeiramente graves.

Perdoem-me, mas parece distante da realidade o argumento de que o descaminho de pequena monta atinge a indústria nacional. Em regra, quem adquire produtos em bancas de rua, sem garantia, o faz por falta de condição de comprar em uma loja de shopping, com mais segurança. A carga tributária inviabilizadora do país impede que boa parcela da população tenha a chance de adquirir qualquer produto importado, pelo que acabada a opção surgida com o “camelô”, o bem simplesmente não será comprado.

Em termos de punição ao autor do fato, é bom lembrar que todas as mercadorias trazidas são apreendidas, o que já impõe enorme prejuízo a quem juntou parcas economias para ir a países vizinhos.

Mais ainda, a insignificância só é aplicável em situações de menor valor, o que afasta os grandes grupos que trazem produtos para abastecer o comércio oficial.

Já a comparação com o tratamento dado aos crimes de sonegação fiscal em relação do descaminho deixarei para outra oportunidade, por seu aspecto mais técnico.

Por todo o exposto acima, parece-me bastante desproporcional a imposição de pena aos chamados sacoleiros, aventureiros de nossas estradas perigosas.

Vale a pena macular com uma condenação penal essas pessoas que, ao serem pegas, já perdem todo o dinheiro, para que, eventualmente, engrossem nosso sistema penal já abarrotado?

Precisamos refletir.


Gustavo de Almeida Ribeiro. . Gustavo de Almeida Ribeiro é Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Defensor Público Federal com atuação perante o STF. .


Imagem Ilustrativa do Post: Crime Suspect // Foto de: Victor // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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