A MENINA DOS OLHOS  

08/09/2019

 

Coluna Direito e Arte / Coordenadora Taysa Matos

Junto a las manillas de um reloj. Esperaran. Todas las horas que quedaron por vivir. Esperaran...” (Jose Luis Perales)

Enquanto a mãe escondia a revista em cima do armário, atrás da porta, olhos infantis a observavam. Silenciosamente, a menina voltou para a sala, ligou a vitrola, ouviria novamente a canção,“ Por que te vas”. Jogou-se no sofá como quem mergulha em nuvens. A mãe dirigiu-se à cozinha, para as últimas instruções à Soledade.

1979, Agnes era jovem de rosto belo, quase angelical, não fossem os olhos azuis perspicazes e intensos. Impossível passar despercebida. Conseguiu o emprego havia meses. Uma das maiores redes de resorts da Europa. Estava feliz, nunca trabalhara fora da França. Salário e benefícios excelentes: casa, carro, viagens, tudo o que sonhara.

Encantara-se com o lugar. Vila de casas brancas, contornadas por ruas de pedras seculares, o belo porto de veleiros coloridos. Os habitantes, reservados e silenciosos. A cidadezinha era cercada por campos e amendoeiras carregadas de flores brancas; pétalas lembravam flocos ao vento. Estradas desertas, rústicas, cobertas de videiras levavam às praias; areias suaves banhadas pelas águas transparentes do mediterrâneo. O verão chegava dourando o paraíso.

O resort situava-se em recanto deslumbrante. Tudo o que se esperava do empreendimento. Os chalés-luxo-distantes uns dos outros, nas encostas, rodeados de pinheiros. Para o seleto público, o máximo de privacidade.

A menina nascera na vila, assim como toda a família. Filha única, a mãe a educara sozinha, com ajuda de Soledade.

....

Agnes estava de folga, fora ao penhasco para ver a imensa bola de fogo desenhar no céu tons de rosa e laranja submergindo num mar de escuridão.                                                                                                                                   

Encontrou, então, a menina de olhos negros, inquisidores, estranhamente solitária a admirá-la.

Lembrava-se perfeitamente daquele dia. Estreara a bicicleta vermelha – parecia voar pelas encostas – o vento a açoitar-lhe o rosto. Vivia a liberdade de crescer em lugar de delicada natureza. Vira Agnes pela primeira vez, entre o pôr do sol e o mar, pareceu-lhe um anjo iluminado.

A noite Agnes dirigiu-se à vila. Vagou por ruelas de turistas embriagados. Preenchendo o vazio, encerrou jornada no velho bistrô.

Em horas conheceu Fausto. Homem forte, beleza nórdica, alguns anos a mais. Viera de férias. Silenciosamente, aproximou-se, pediu para sentar. Agnes amava o inusitado.

Cada pessoa, uma história; cada história, um destino. Conversaram. Perderam-se no tempo. Ali permaneceram até restarem apenas os dois.

Hospedara-se em hotel à beira da praia. Convidou-a para subir. Era tarde, preferiu partir.  

Encontraram-se dias depois. Ele a esperava ansioso. A lua cheia refletia o   brilho no mar, dissipando-se a cada onda.

Sábado o sol queimava corpos sobre copos de sangria. A menina – ao longe - os observava, enquanto tecia castelos de areia.

Agnes sentia os dias alongarem-se indefinidamente. Ficou aliviada ao vê-lo partir.

Telefonara ansioso. Precisava reencontrá-la. A intuição feminina disse não. No caminho do trabalho viu a menina despetalando margaridas. Apenas o   olhar sombrio pairado no ar.

O tempo corria. O mar, agitado, prenunciava o fim da estação. Assim como turistas o verão quieto. A vila, os campos, cobriam-se de tons amarelos e marrons. Da janela da casa observava a menina sorrir, flutuar no   balanço, empurrada pelo vento.                                                                                                                       

.…

A noite, chuva insistia em castigar o telhado. Desligara o telefone. Oitava carta nas últimas semanas: assim como as anteriores, permeada de ideias e sentimentos desconexos. O desassossego vagava insone. Tomaria coragem. Na manhã seguinte, acabaria com aquele tormento. Sentia saudades da França e da família.                             

A garota entrou no quarto enquanto ouvia a canção:“ Mi corazón, se pone triste ...Por que te vás?” Alcançou a revista, folheando-a com avidez.  Pupilas dilatadas e inquietas pararam na página principal. Veria Agnes pela última vez. Sentiria saudades?  Levara uma parte de si.

O lindo corpo branco lembrava-lhe uma pálida boneca, deitada de lado. Mãos presas às costas. Traços profundos, de vermelho intenso, rasgaram-lhe o dorso nu. Manchas roxas imitavam grosseiro colar em delicado pescoço. O belo cabelo, emaranhado. Os lábios entre-abertos, sorriso esganado.  Nunca compreenderia aquela cena...arrancaram-lhe os lindos olhos de azul intenso...

.....

O monstro os levara.

 

 

Imagem Ilustrativa do Post: eye illustration // Foto de: Daria Shevtsova // Sem alterações

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