Por Alexandre Morais da Rosa e Juliana Hermes Luz - 22/07/2016
1. Introdução
O artigo busca indicar os possíveis avanços do Estatuto da Pessoa com Deficiência no contexto brasileiro, especialmente diante das promessas da Constituição da República de 1998. Para tanto, indica o panorama normativo e as dificuldades de implementação da lógica da diferença em sociedade marcada pela desigualdade e pela luta incessante de efetivação de direitos dos vulneráveis, partindo do pensamento do Professor Luiz Alberto David Araújo.
2. O panorama brasileiro de (ausência) de Proteção à Pessoa com Deficiência
Como bem ensina Luiz Alberto David Araújo[1], a proteção das pessoas com deficiência nunca foi matéria constante dos textos constitucionais brasileiros, tendo sofrido expressiva modificação pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, momento em que, segundo David Araújo “ao tema foi dado um novo perfil, paternalista de um lado e realista de outro”, tendo sido inclusive a “primeira na história do constitucionalismo pátrio a prever um título próprio destinado aos princípios fundamentais, situado em manifesta homenagem ao especial significado e função destes, na parte inaugural do texto, logo após o preâmbulo e antes dos direitos fundamentais[2]”.
Nesse contexto, com a finalidade de “promover, proteger e assegurar o exercício pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente”, os Estados partes da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência – Convenção da Organização das Nações Unidas -, em 30 de março de 2007, assinaram um protocolo facultativo, reafirmando a "universalidade, a indivisibilidade, a interdependência e a inter-relação de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, bem como a necessidade de garantir que todas as pessoas com deficiência os exerçam plenamente, sem discriminação".
Referida Convenção e seu protocolo facultativo foram ratificados pelo Congresso Nacional (Brasil) por meio do Decreto-Legislativo nº 186, de 9 de julho de 2008, e promulgados pelo Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009, data de início de sua vigência no ordenamento jurídico brasileiro, de modo a reforçar a já existente Lei de Apoio às Pessoas Portadoras de Deficiências (Lei n. 7.853/89), cujas normas visam garantir às pessoas com deficiência as ações governamentais necessárias ao seu cumprimento e das demais disposições constitucionais e legais que lhes concernem, afastadas as discriminações e os preconceitos de qualquer espécie, entendida a matéria como obrigação nacional a cargo do Poder Público e da sociedade (Art. 1º, §2º), na área da educação, saúde, recursos humanos e edificações.
A mencionada Lei de Apoio às Pessoas Portadoras de Deficiências é regulamentada pelo Decreto nº 3.298, de 20 de dezembro de 1999[3] e aplicada em conjunto à Lei 10.048, de 8 de novembro de 2000[4], à Lei nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000[5], que são regulamentadas pelo Decreto nº 5.296, de 2 de dezembro de 2004, os quais tratam, em síntese, da prioridade de atendimento das pessoas com deficiência e estabelecem normas para a promoção da acessibilidade, entre outras providências.
Muito embora a grelha normativa demonstrasse, ao menos em quantidade, o amparo às pessoas com deficiência, em 6 de julho de 2015 foi promulgada a Lei n. 13.146 que instituiu a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência.
Também denominada de Estatuto da Pessoa com Deficiência, além de modificar o Código Civil, o Código Eleitoral, a Consolidação das Leis do Trabalho, o Estatuto da Cidade, a Lei de Improbidade Administrativa, entre outros diplomas vigentes, consolidou um marco no ordenamento jurídico, antes presente somente na Convenção das Nações Unidas que, muito embora presente a nível Constitucional no Estado brasileiro, não recebia a devida atenção.
3. A luta pelo reconhecimento de direitos
A efetivação da proteção da pessoa com deficiência é a luta diurna dos atores jurídicos que buscam a implementação da cidadania de camadas vulneráveis. Assim, dentre as principais modificações trazidas pelo novo Estatuto, merece destaque o conceito de pessoa com deficiência e os critérios de avaliação.
Segundo a Convenção da ONU não há apenas um critério médico capaz de definir a pessoa com deficiência, mas sim, o resultado da análise do caso concreto, da pessoa em análise com o seu ambiente de trabalho, social, de lazer, que definirá a pessoa com deficiência. Por outro lado, o Decreto n. 5.296, de 02 de dezembro de 2004, conceitua as pessoas com deficiência apenas quanto ao critério médico.
Nesse contexto, primordial relembrar o questionamento feito pelo próprio Dr. Luiz Alberto David Araújo, no que diz respeito a “Como aplicar o previsto na Constituição da República se não há sequer um conceito de pessoa com deficiência?”.
O Professor homenageado, em sua obra “A proteção constitucional das pessoas com deficiência”, dedica o estudo à conceituação da pessoa com deficiência, recorrendo, inclusive, aos dicionários da língua portuguesa, e adverte o leitor que o “ponto de partida é buscar o conceito usual”, concluindo que em qualquer das definições a ideia mais adotada é a de falta, de carência ou de falha, oportunidade em que sabiamente aponta que o referido conceito não pode ser tão singelo, já que a exemplo dos superdotados, mesmo na condição de pessoas com deficiência, não existe falta, “pelo contrário, sua inteligência é superior à do homem comum”.
Nesse contexto o art. 2º do Estatuto da Pessoa com Deficiência define que se considera pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas, destacando o §1 que, a avaliação da deficiência, quando necessária, será biopsicossocial, realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar e considerará: I – os impedimentos nas funções e nas estruturas do corpo; II – os fatos socioambientais, psicológicos e pessoais; III – a limitação no desempenho de atividades; e IV – a restrição de participação.
Além de o “novo” Estatuto trazer essa importante modificação quanto ao conceito de pessoa com deficiência, e sua forma de avaliação, tem especial relevo a alteração promovida em diversos artigos do Código Civil relativa à capacidade da pessoa, ao normatizar a "Tomada de Decisão Apoiada", em simetria ao que já dispunha a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (artigo 12.3 do Decreto 6.979/09).
A nova redação do art. 1783-a do Código Civil prevê que: “A tomada de decisão apoiada é o processo pelo qual a pessoa com deficiência elege pelo menos 2 (duas) pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações necessários para que possa exercer sua capacidade.”
Pontuada modificação demonstra-se como alternativa ao instituto da curatela, prevendo o direito da decisão apoiada da pessoa com deficiência, de forma a resgatar a compreensão de sujeitos de direitos iguais e livres, responsabilizando-se por seus atos, inclusive deliberando, preliminarmente, pela decisão apoiada.
Em continuidade, o Estatuto dedica o seu título II exclusivamente aos Direitos Fundamentais da pessoa com deficiência, abordando o direito à vida, à habilitação e à reabilitação, à saúde, à educação, à moradia, à assistência social, à previdência social, à cultura, ao esporte, ao turismo, ao lazer, ao transporte e à mobilidade, merecendo destaque também, uma parte especial do Estatuto dedicado ao acesso à justiça, na qual se determina a garantia do acesso da pessoa com deficiência à justiça, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, atribuindo ao Ministério Público e à Defensoria Pública a atribuição de tomar as medidas necessárias à garantia dos direitos previstos na referida Lei, que ainda traz a previsão de crimes e infrações administrativas.
Referidas normas infraconstitucionais possuem o condão de dar efetividade ao disposto na Carta Constitucional de 1988. Esta, por sua vez, define como fundamentos da República, entre outros, a cidadania e a dignidade da pessoa humana, trazendo como objetivo construir uma sociedade livre, justa e solidária, promovendo o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. (art. 1ºe art. 3º). Ao tratar dos Direitos e Garantias Fundamentais o constituinte positivou que todos são iguais perante a lei, elencando entre outros, como direito social (de segunda geração) o direito à educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados.
Ingo Wolfgang Sarlet ao abordar os objetivos, fundamentos e direitos sociais supramencionados, leciona que:
[...] a igualdade se apresenta no texto constitucional tanto como princípio estruturante do próprio Estado Democrático de Direito, quanto na condição de norma impositiva de tarefas para o Estado, bastando, nesse contexo, referir o disposto no art. 3º, que, no âmbito dos objetivos fundamentais (com destaque para os incs. III e IV), elenca a redução das desigualdades regionais e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quais outras formas de discriminação. Além disso, e é precisamente esta a perspectiva aqui privilegiada, a igualdade constitui uma peça chave no catálogo constitucional dos direitos fundamentais[6].
Ainda, em outras oportunidades, a Constituição impõe um tratamento igualitário, ao proibir a discriminação no tocante ao salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência (art. 7º, inciso XXXI), igualdade de condições para o acesso e permanência na escola (art. 206, I), entre outros.
Inclusive, a Constituição da República, em seu preâmbulo, dispõe ser o Estado Democrático destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, contemplando, outrossim, as três dimensões de direitos humanos, concernentes à liberdade, sociabilidade e fraternidade, premissas exegéticas do texto constitucional.
A teoria constitucional contemporânea, direcionada pelo protagonismo na implementação de direitos e reconhecimento de subjetividades plurais, atribui normatividade aos princípios, forçando a reaproximação entre o direito e a moral, para que haja a possibilidade de conferir aos princípios uma eficácia entre os particulares, denominada de eficácia horizontal e não somente contra o Estado. A esse respeito, mais adiante na obra citada, Ingo Wolfgang Sarlet complementa:
Na condição de direito subjetivo, o direito de igualdade opera como fundamento de posições individuais e mesmo coletivas que tem por objeto, na perspectiva negativa (defensiva), a proibição de tratamentos (encargos) em desacordo com as exigências da igualdade, ao passo que na perspectiva positiva ele opera como fundamento de direitos derivados a prestações, isto é, de igual acesso às prestações (bens, serviços, subvenções etc.), disponibilizados pelo Poder Público ou por entidades privadas na medida em que vinculadas ao princípio e direito de igualdade. Também a exigência de medidas que afastem desigualdades de fato e promovam a sua compensação, ou seja, de políticas de igualdade e mesmo políticas de ações afirmativas pode ser reconduzida à função positiva (prestacional) da igualdade, que implica um dever de atuação estatal, seja na esfera normativa, seja na esfera fática, de modo que é possível falar em uma imposição constitucional de uma igualdade de oportunidades[7].
Logo, para a ser tarefa diuturna a luta pelo reconhecimento da população com deficiência, não só no plano Estatal, mas também no campo das relações privadas, em que o protagonismo do reconhecimento da diferença e da proteção possa, de fato, ser efetivada.
4. Considerações finais
A edição, no Brasil, do Estatuto da Pessoa com Deficiência inscreve-se na ampliação dos Direitos prometidos pela Constituição da República e com o diálogo de fontes internacionais, na busca de se instaurar a lógica do tratamento diferenciado e democrático de pessoas que demandam atenção distinta não só do Estado, mas também nas relações privadas. Daí que o Estatuto da Pessoa com Deficiência precisa ser conhecido, discutido e implementado, para somente então inscrever-se na efetivação de direitos e no reconhecimento da cidadania de parcela significativa da população brasileira. É o que se espera.
Notas e Referências:
[1] Luiz Alberto David Araújo. A proteção constitucional das pessoas com deficiência. (Brasília: 2011).
[2] Ingo Wolfang Sarlet. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. (Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009). p.69
[3] Dispõe sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, consolida as normas de proteção, e dá outras providências.
[4] Dá prioridade de atendimento às pessoas com deficiência.
[5] Estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida, e dá outras providências.
[6] Ingo Wolfgang Sarlet, Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero. Curso de Direito Constitucional. (São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013) p. 543.
[7] Ingo Wolfgang Sarlet, Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero. Curso de Direito Constitucional. (São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013) p. 543.
Artigo também publicado hoje (22/07/2016) na revista internacional inclusiones: http://www.revistainclusiones.cl
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Alexandre Morais da Rosa é Professor de Processo Penal da UFSC e do Curso de Direito da UNIVALI-SC (mestrado e doutorado). Doutor em Direito (UFPR). Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise da UFPR. Juiz de Direito (TJSC). Email: alexandremoraisdarosa@gmail.com / Facebook aqui. .
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Juliana Hermes Luz é Graduada em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí – Univali. Especialista em Direito Constitucional pela Academia Brasileira de Direito Constitucional – ABDConst. Assistente do Ministério Público de Santa Catarina. . . . .
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