Introdução.
A sociedade moderna encontra-se desafiada pelo paradoxo de ser conhecida com a sociedade do conhecimento, da informação e da tecnologia e, ao mesmo tempo, produzir ou permitir produzir desinformação, alienação, ilusão e destruição da vida em todas as suas formas.
Na sociedade contemporânea a natureza é tratada antropocentricamente, como um bem de uso descartável do Ser Humano, mantendo com o meio ambiente natural uma relação utilitarista e degradadora. O Ser Humano, desumanizado por falta de relações afetivas fraternas e solidárias, tornou-se frio, insensível e egoísta. O Ser Humano constituiu um novo habitat; o locus da solidão. Trata-se de uma realidade fora da realidade, onde não há contato com o ambiente de maneira ampla e afetuosa.
A vida na realidade fora da realidade vilipendia a essência humana, ameaçando as relações de fraternidade e de solidariedade entre os seres vivos, permitindo a constituição da lógica do descuido. O descuido é o mesmo que “ausência de atenção”; a lógica do descuido é a congruência da negligência e da imprudência com a vida no planeta terra e com todos os seres humanos. Pela lógica do descuido, o Ser Humano abastardo ou não impõe uma vida de ciranda, em que alterna entre objeto de pesquisa e pesquisador, em que determina a vida dos outros seres ou vive determinado pela razão dos outros.
O descuido, embora atinja com maior virulência os mais pobres, não secciona ricos de pobres, brancos de negros, homens de mulheres, Ser Humano da Natureza; uma vez que o mal produzido como resultado da imprudência ou da negligência humana reverte toda sorte de desgraça sobre toda a sociedade, não havendo possibilidade de viver em bolhas ou ilhas sociais, salvo na ficção.
A lógica do descuido.
Segundo Leonardo Boff[1] o sintoma mais doloroso, já constatado há décadas por sérios analistas e pensadores contemporâneos, é um difuso mal-estar da civilização. Aparece sob o fenômeno do descuido, do descaso e do abandono, numa palavra, da falta de cuidado.
BOFF (1999, p. 18) apresenta, didaticamente, a aplicação do fenômeno do descuido na sociedade moderna através de dez perspectivas que, ao final, evidência a barbárie, a insensatez e a impiedade do Ser Humano com os Seres Humanos e os Seres Vivos.
a) o descuido com a vida das crianças, dos adolescentes e dos jovens. O quadro pintado pela sociedade mundial desnuda a franca exploração do trabalho infantil e a dizimação de adolescentes e de jovens, nas grandes metrópoles, pelo esquadrão da morte, pelo Estado e pelas milícias.
b) o descuido com a vida dos pobres, dos humildes, dos marginalizados. O Estado Liberal reduz a participação do Estado nas políticas sociais, abandonando a maior parcela da sociedade à falta de saúde, de educação e de assistência social.
c) o descuido com os desempregados e os aposentados. A sociedade alimenta o sonho utópico de que teremos emprego para todos e que a crise financeira mundial vai acabar ou vai passar. Os meios de comunicação e seus comentaristas mantem parte considerável da população trabalhadora entretida com números da economia, quase sempre expressados por signos incompreensíveis e indecifráveis, alimentando a esperança de que o pleno emprego chegara com a dedicação de todos ao país e com o fim da crise econômica. Entretanto, a verdade é que a crise econômica não acaba, qu não há emprego para todos e que o deus do mercado não se importa com o desemprego; aliais, o desemprego é “estimulado”, tratado como mão de obra reserva, colaborando para reduzir a proteção social e os direitos trabalhistas. Os aposentados, por sua vez, são abandonados à própria sorte, geralmente sem condições dignas de vida e com a saúde combalida, são tratados como escória.
d) o descuido com os valores relacionados com a compaixão, com a fraternidade, com solidariedade e com generosidade. As relações sociais estão pautadas, a cada dia com mais intensidade, no individualismo e na regra do “cada um por si e Deus por todos”; um adágio que revela o descalabro da vida em sociedade e, ainda, distorce o amor de Deus, cuja revelação cristocêntrica requer como mandamento “amar o outro coma a si mesmo”.
e) o descuido com a vida nas cidades. O recorte fotográfico emblemático da falta de vida na sociedade atual pode ser visto nas cidades urbanizadas. Primeiro, o Ser Humano, embora rodeado de pessoas, sente-se sozinho e sem laços de pertencimento. Segundo, a luta pela sobrevivência do dia-a-dia não permite destinar atenção às pessoas (ouvir, sorrir, agradecer, solidarizar, amar). Terceiro, a pobreza e a marginalização do outro não penetra no coração, fazendo com que a humanidade abandone o Ser Humano. Quarto, a luta pela moradia submete milhões de pessoas a uma vida sem teto, sem dignidade.
f)o descuido com a paz e com a espiritualidade. O diálogo fraterno tem cedido lugar ao fundamento do uso da força e da arma para resolução dos conflitos. A espiritualidade tornou-se um meio de ganhar dinheiro, sem respeito pela inteligência emocional e, sobretudo, transformando o planeta terra um grande templo de vendilhões.
g) o descuido com a coisa pública. A política real aplicada à gestão pública é uma política de morte, marcada pelo jogo de interesses (de indivíduos ou de grupos), cujo único projeto é a manutenção do poder para viabilizar os projetos dos grandes financiadores, dos grandes detentores do capital privado (bancada ruralista, bancada do minério, bancada evangélica, bancada da bala), subjugando os podres ao submundo do resto – o resto da saúde, o resto da educação, o resto da assistência social, o resto da segurança.
h) o descuido com a vida. Os estudos indicam que o processo de crescimento econômico e populacional tem exigido a ocupação de mais espaço na crosta terrestre e, por via direta, a exploração dos recursos naturais. A exploração do meio ambiente natural, nas proporções atuais, pode gerar a dizimação de espécies da fauna e da flora sem precedentes e sem possibilidade de reversão. O descuido com a vida inclui o abandono do Ser Humano, tratado com produto liquido do capitalismo, possui valor instrumental e utilitarista, cuja exploração pressupõe o exaurimento das forças e depois descarte.
i)o descuido com o planeta terra. A sociedade mundial explora os recursos naturais do planeta terra como se fossem infinitos; degradando a fauna e a flora; poluindo a terra, o ar e a agua, matando todas formas de vida. O Ser Humano não percebe que a destruição do planeta terra pode representar a destruição da própria vida no planeta.
A situação de descuido e de descaso dos Seres Humanos com a vida no planeta terra e a falta de bom senso nas relações sociais gera, por um lado, a falta de esperança e por outro lado, o surgimento dos salvadores da pátria (os aproveitadores, os espertos de plantão). A lógica do descuido tem como resultado o retorno à barbárie, do medievalismo e do tempo das trevas.
Conclusão.
O resultado prático da aplicação da lógica do descuido pode ser visto no cotidiano da vida moderna. Nas cidades, não é difícil encontrar Seres Vivos abandonados pelas ruas (moradores de rua, usuários de drogas, cachorros abandonados), fruto da ganancia do mercado econômico e da política liberal do Estado mínimo, que reduz o investimento na área social. O crescimento desordenado das cidades tem resultado na formação de favelas e palafitas, sem acesso à agua, a saneamento básico, a calçamento, a escola, a posto de saúde, ou seja, sem uma moradia digna. As cidades convivem, ainda, com tragédias climáticas, com excesso de calor, sem arborização e com prevalência de concreto ou excesso de chuvas, sem capacidade de escoamento, gerando destruição e dor; com tragédias estruturais, oriundas da leniência do Estado deteriorado, combalido e submetido aos fatores reais de poder (veja, por exemplo, os acontecimentos funestos ligados ao rompimento da barragem de Mariana e de Brumadinho, bem como a desdita do Clube Regatas do Flamengo).
A lógica do descuido pode ser vista e será vista por todos os lados conquanto as condições éticas da humanidade não sejam discutidas e alteradas. É elementar que se propicie um novo ambiente de convivência humana, abrindo-se espaço para um novo homem, vindo de dentro para fora, cujo valor essencial seja a ética do cuidado.
Notas e Referências
[1] BOFF, Leonardo. Saber cuidar: ética do humano - compaixão pela terra. 7º ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 1999.
Imagem Ilustrativa do Post: Paisagem Rural // Foto de: Rubem Porto Jr // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/rubempjr/14027751266
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