A lição político - hermenêutica de Espinosa: a potência de ler de qualquer um

11/03/2017

Por Luis Eduardo Gomes do Nascimento e Paulo César de Oliveira – 11/03/2017

Se Lefebvre admoestava aos linguistas a inexistência de referência à obra de Leibniz, cabe a nós, interessados na construção de uma hermenêutica consistente, reconhecer com espanto que a grande omissão da obra fundadora e seminal de Gadamer “Verdade e Método” é Espinosa[1]. O espanto é maior porque a lição hermenêutica de Espinosa é fecunda e antecipou muitas questões com as quais no debatemos até hoje.

Richard Palmer, ao auscultar os diversos sentidos da hermenêutica, expõe que a expressão abarca seis significados: 1) uma teoria da exegese bíblica; 2) uma metodologia filológica; 3) uma ciência de toda compreensão linguística; 4) uma base metodológica das ciências do espírito; 5) uma fenomenologia da existência; 6) sistemas de interpretação para obter o significado dos mitos e símbolos[2].

Na parte em que explica a hermenêutica como metodologia filológica, lembra que os racionalistas buscavam ultrapassar os juízos prévios, fazendo uma breve alusão a Espinosa.

Espinosa, na obra Tratado Teológico-Político, dedica o capítulo VII à interpretação bíblica. Gianni Vattimo, ao fazer a genealogia da hermenêutica, reconhece Lutero como um dos seus precursores. E elogia a grandeza do gesto político de Lutero de se opor ao magistério da Igreja Católica que se arrogava a condição de única intérprete válida do texto bíblico[3].

A lição de Espinosa é similar, mas ainda mais contundente. Espinosa quer mostrar que a posição formal de poder não é por si o lugar da razão. Empreende uma crítica dura ao princípio da autoridade que, nas suas mais variadas formas, sempre remete ao lugar de poder do sujeito enunciador.  Afirma que a mais alta autoridade pertence a cada um para interpretar a Escritura de forma que não há outra regra que a da Luz Natural comum a cada um, não reconhecendo autoridade exterior[4].

Mas o destronar do princípio da autoridade não significa a autorização para se interpretar de qualquer forma. Para afastar a possibilidade de arbítrio, Espinosa propõe um método composto por três critérios que antecipam, de alguma maneira, os três níveis básicos de toda interpretação: a) gramatical; b) estrutural e c) histórico.

Eros Grau, seguindo Wróblewski, assinala que a interpretação se desenvolve em três contextos distintos: o linguístico, o sistêmico e o funcional. Impressiona que, em 1670, Espinosa já tratava, é claro que com outros termos, desses três níveis, antecipando de forma revolucionária a hermenêutica atual. Vamos a seu método de interpretação.

Espinosa afirma: “Em primeiro lugar, ela deve compreender a natureza e as propriedades da língua na qual foram escritos os livros da Escritura e que seus autores estavam acostumados a falar.”[5]

Nesse nível, portanto, a compreensão da língua é erigida em critério axial da interpretação.  No Brasil, tem-se enfatizado a necessidade de se respeitar os limites semânticos. Já fizemos a observação de que a sibilina expressão decorre do desconhecimento do funcionamento dos signos. Um signo sempre reenvia a outros signos de forma que somente com a equivalência sem identidade se evita a dissolução de todo o sentido[6].

Apostar, contorcendo-se para não reconhecer o problema da equivalência na diferença, na interpretação por sinonímia é mais um equívoco. Até os analíticos cujos sonhos sempre envolvem a univocidade reconhecem que não há sinonímia perfeita. W. V. Orman Quine admite que quando parafraseamos uma asserção para resolver a ambiguidade buscamos não uma asserção sinônima, mas uma mais informativa pela qual se afasta outras intepretações[7]. Ernildo Stein partilha desse entendimento quando afirma que não podemos dizer a mesma coisa com outras palavras[8].

Na pesquisas sobre semântica, a ideia de sinonímia nunca esteve vinculada à ideia de identidade perfeita, mas de parentesco, e, portanto, de analogia.

No segundo nível, Espinosa enuncia:

Devem-se agrupar as enunciações contidas em cada livro e reduzi-las a certo número de pontos principais, de modo a encontrar facilmente todas aquelas que se relacionam com o mesmo objeto; notar em seguida todas aquelas que são ambíguas ou obscuras ou em contradição umas com as outras[9].

Nesse ponto, não se deve associar o critério com a interpretação usualmente denominada sistemática, pois vincada à ideia de unidade, isto é, de uma conta-por-um que ignora as contradições. Ao buscar a coerência do texto, Espinosa reconhece a possibilidade de contradições. Estaria mais próximo, portanto, da ideia de sistema enquanto conjunto cujos elementos não podem ser modificados sem importar em modificação do todo.

Esse nível tem sido negligenciado na teoria do direito e precisa de maiores desdobramentos. A lição de Espinosa é interessante porque ao elevar o texto ao contexto intertextual surgem contradições que precisam ser resolvidas.

Por fim, arremata:

Em terceiro lugar, essa investigação histórica deve trazer a respeito dos livros dos Profetas todas as circunstâncias particulares que chegaram ao nosso conhecimento: compreendo nesse item a vida, os costumes do autor de cada livro, a finalidade a que ele se propunha, qual foi, em que ocasião, em que tempo, para quem, em qual língua enfim ele escreveu. Ele deve também conter os casos próprios a cada livro: como ele foi coletado na origem, em que mãos caiu, quantas lições diferentes são conhecidas de seu texto, quais homens decidiram admiti-lo nos cânones e, enfim, de que modo todos os livros reconhecidos unanimemente como canônicos foram reunidos num só corpo[10].

Nesse nível, os elementos, segundo Todorov, são distribuídos em três: 1) o objetivo do livro; 2) o autor e 3) o leitor. Mas, diante da referência às circunstâncias, além daqueles elementos, deve haver remissão não só ao contexto de edição de texto, mas à experiência social-histórica no qual os elementos estão inseridos[11].

Outra lição de Espinosa consiste na exigência de que a interpretação seja orientada e dirigida pelo texto, polemizando contra a exegese patrística que impunha ao texto as pressuposições arraigadas na sua tradição. A lição continua vigente. Todo ato de interpretação/aplicação exige uma capacidade de desapego dos próprios pressupostos, de abertura ao distinto Outro.  Todorov mostra Colombo como o símbolo da hermenêutica em que não há espaço para o outro, desenvolvendo a típica interpretação ‘finalística’ que sempre encontra o que já desde sempre estava definido no ponto de partida. Tal como Ulisses amarrado ao mastro, aferra-se às suas pressuposições que impedem qualquer possibilidade de abertura à alteridade do outro[12].

Espinosa reprocha o proceder daqueles que, tendo por si estabelecido que o mundo é eterno, não hesitariam em violentar a Escritura e a explicar de maneira que ela pareça ensinar a lição previamente definida. Por isso, conclui: “Se cada um tivesse a liberdade de interpretar à sua maneira a lei, a sociedade não poderia subsistir, ela tombaria na dissolução e o direito público se tornaria direito privado.”[13].

O modo como se sucedeu o golpe parlamentar aqui no Brasil, totalmente alheio à necessária apuração de crime de responsabilidade, mostra o grau de dissolução que nos acossa.

Reverbera, sem questionamento, a assertiva de Jakobson de que não há propriedade privada na linguagem, propalando-se que os sentidos não estão disponíveis ao intérprete. Perspectiva tão idealista quanto a do senhor que imaginava evitar o afogamento se retirasse da mente a ideia de gravidade. Eco mostra que é possível que o intérprete sove o texto, dobrando-o aos seus intentos prévios. Mas não se deixa vencer pelo realismo chão. Interpretar consubstancia o que denominamos uso público da razão e para preservar essa esfera é fundamental verificar em que situações ocorre um apropriação privada da linguagem. Temos muito a fazer, mas a picada foi aberta por Espinosa.

Os níveis bosquejados por Espinosa são mecanismos voltados a tornar a pesquisa sobre o sentido do texto desprovida de pressuposições prévias que, como era comum na exegese patrística, eram impostas ao texto[14].

Hoje em que a paixão pela desigualdade ganha figura novamente, a lição político-hermenêutica de Espinosa continua vigente: interpretar encontra fundamento na razão e não no lugar formal do poder. Por isso, qualquer um, desde que no rigor do exercício da razão, integra a comunidade aberta dos intérpretes.


Notas e Referências:

[1] Li e reli com ávido interesse essa obra e me espantei com a gritante ausência de enfrentamento da hermenêutica de Espinosa. Na verdade, Gadamer faz apenas quatro céleres alusões a Espinosa. Ainda assim pode-se dizer que é uma omissão. No Brasil, o silencio é maior ainda. Reparemos essa história. Não obstante, é preciso ler e reler Gadamer, ele por ele mesmo.

[2] PALMER, Richard E. Hermenêutica. Lisboa: Edições 70, 1999, p. 48.

[3] VATTIMO, Gianni. Comunismo hermenéutico: de Heidegger a Marx. Barcelona: Herder, 2012, p. 129.

[4] Traité théologico-politique: Paris: GF Flammarion, 1965, p. 158. Luz Natural significa Razão.

[5] Cit. p. 140.

[6] Ver: http://justificando.cartacapital.com.br/2017/01/16/prolegomenos-para-uma-hermeneutica-analogica/

[7] QUINE, W. V. Orman. Palabra y objeto. Barcelona: Editorial Labor, 1968, p. 169.

[8] STEIN, Ernildo. Diferença e repetição: ensaios sobre desconstrução. 2ª ed. Rio Grande do Sul: Unijuí, 2008, p. 281 à 293.

[9] Cit. p. 140.

[10] Cit. p. 142.

[11] Gadamer invoca o conceito de experiência em Hegel, mas parece ser de forma não muito consequente, pois a contradição não logra um lugar na filosofia de Gadamer.

[12] DUSSEL, Enrique. Método para uma filosofía de la liberación: superación analéctica de la dialectica hegeliana, p. 189.

[13] Cit. p. 157.

[14] TODOROV, Tzvetan. Simbolismo e interpretação. São Paulo: Unesp, p. 186.


Luis Eduardo Gomes do Nascimento. Luis Eduardo Gomes do Nascimento é Professor na Universidade do Estado da Bahia, UNEB, Brasil. Ex-Professor na Faculdade de Ciências Aplicadas e Sociais de Petrolina, PE, FACAPE, Brasil. Mestrando em Ecologia Humana na Universidade do Estado da Bahia, UNEB, Brasil. Advogado.. .


Paulo César. . Paulo César de Oliveira é Advogado. Pós graduado em Direito e Processo Penal. . . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito. 


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