A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais se aplica a Condomínios?

19/09/2020

A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei nº 13709/2018) finalmente entrou em vigor (18.09.2020) e muitas das dúvidas ainda existentes não foram respondidas. A Autoridade Nacional de Proteção de Dados Pessoais será o órgão responsável por sanar boa parte destas dúvidas, na medida em que caberá a ela regular o sistema de proteção de dados no país e fiscalizar as operações de tratamento de dados pessoais no território nacional.

Uma das muitas perguntas que vem sendo feitas diz respeito a eventual (des)necessidade de adequação dos condomínios, principalmente pela discussão quase infindável a respeito da sua personalidade jurídica.

Os condomínios, residenciais ou comerciais, coletam dados pessoais não só dos moradores, mas dos visitantes, entregadores, prestadores de serviços, dentre outros. Realizam controle de entrada e saída das suas dependências, que não raras as vezes envolvem a coleta de dados pessoais sensíveis, como foto e digitais. Parece óbvio (ou ao menos deveria parecer) que este tratamento de dados está tutelado pela Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), mas será que isso corresponde à realidade?

Analisando o artigo 1º, da LGPD, verifica-se que esta se aplica ao tratamento de dados pessoais realizado por pessoa física ou jurídica. Em complementação, o artigo 4º diz que a LGPD não se aplica ao tratamento de dados realizado por pessoa natural para fins exclusivamente particulares e não econômicos.

Pois bem. Para responder o questionamento do título, antes é necessário entender qual a natureza jurídica dos condomínios. Seriam estes equiparados à pessoa jurídica?  A matéria parece ainda controversa. Vejamos.

Na primeira Jornada de Direito Civil, fora aprovado o Enunciado 90 do Conselho de Justiça Federal com os seguintes dizeres: “Deve ser reconhecida personalidade jurídica ao condomínio edilício nas relações jurídicas inerentes às atividades de seu peculiar interesse”[1]. Este Enunciado foi, posteriormente, modificado e tornado mais abrangente na III Jornada de Direito Civil do Conselho de Justiça Federal com a aprovação do Enunciado 246, a saber: "Deve ser reconhecida personalidade jurídica ao condomínio edilício"[2].

Em consonância com tais enunciados, ainda surgiu o Enunciado 596, do mesmo Conselho, o qual declara que: “O condomínio edilício pode adquirir imóvel por usucapião”[3]Convém, ainda, destacar a justificativa deste enunciado, em que é admitida a existência de controvérsia sobre a questão da natureza jurídica do Condomínio. A justificativa destaca os seguintes pontos:

“(...) O STJ já reconheceu a personalidade do condomínio para fins tributários. O Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, embora não admita a irrestrita e incondicional atribuição de personalidade jurídica ao condomínio edilício, tem admitido a aquisição de imóveis por este último, inclusive por meio de escritura pública de compra e venda (vide Apel. Cível 001991077.2012.8.26.0071 abril/2013). Tanto a Lei 4.591/1964 (ao versar sobre o leilão extrajudicial art. 63, § 3º) quanto o CPC (ao regrar a hasta pública) respaldam a aquisição de propriedade em nome do condomínio edilício, o que se tem verificado na prática (...)”[4]

Sintetizando este coro, Maria Helena Diniz concluiu que  “tem, portanto, o condomínio em edifício (...) personalidade jurídica; uma vez que só pessoas físicas ou jurídicas é que podem praticar atos de aquisição (...), não há por que equipará-lo à massa falida, ao espólio ou à herança jacente ou vacante, que não são pessoas jurídicas (...)[5]”.

Na contramão deste entendimento, sedimentando a controvérsia, parecem estar as Turmas que compõe a 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, que entenderam que o condomínio não faz jus à indenização por dano moral, na medida em que é um ente despersonalizado – uma massa patrimonial –, não sendo, portanto, dotado de honra objetiva, conforme ementa abaixo:

“AGRAVO INTERNO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER CUMULADA COM INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. NATUREZA JURÍDICA DO CONDOMÍNIO. ENTE DESPERSONALIZADO. VIOLAÇÃO DA HONRA OBJETIVA. DANO MORAL NÃO CONFIGURADO.
1. O propósito recursal consiste em determinar a possibilidade jurídica do pedido de reparação de danos morais formulado por condomínio, antes a publicação de conteúdo potencialmente lesivo em redes sociais por moradores temporários.
2. No âmbito das Turmas que compõem a Segunda Seção do STJ, prevalece a corrente de que os condomínios são entes despersonalizados, pois não são titulares das unidades autônomas, tampouco das partes comuns, além de não haver, entre os condôminos, a "affectio societatis", tendo em vista a ausência de intenção dos condôminos de estabelecerem, entre si, uma relação jurídica, sendo o vínculo entre eles decorrente do direito exercido sobre a coisa e que é necessário à administração da propriedade comum.
3. Caracterizado o condomínio como uma massa patrimonial, não há como reconhecer que seja ele próprio dotado de honra objetiva. Precedente.
4. Agravo interno não provido” (STJ. T3. AgInt no REsp 1837212 / RJ. Min.rel. Nancy Andrighi. Jul.31.08.20).

Diante desta discussão, entende-se que apesar do posicionamento das Turmas que compõe a 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, a tendência em considerar a personalidade jurídica do condomínio é relevante e poderá prevalecer no tocante à proteção de dados. Caso não prevaleça, ainda assim, é evidente que o condomínio representa um coletivo de pessoas naturais/jurídicas unidas em virtude da propriedade, de modo que por uma interpretação ou outra o artigo 1º estaria suprido, aplicando-se a LGPD aos condomínios.

Quando se busca resposta ao questionamento proposto no Regulamento Europeu de Proteção de Dados (GDPR), o artigo 4º assim conceitua o responsável pelo tratamento de dados pessoais:

7) «Responsável pelo tratamento», a pessoa singular ou coletiva, a autoridade pública, a agência ou outro organismo que, individualmente ou em conjunto com outras, determina as finalidades e os meios de tratamento de dados pessoais; sempre que as finalidades e os meios desse tratamento sejam determinados pelo direito da União ou de um Estado-Membro, o responsável pelo tratamento ou os critérios específicos aplicáveis à sua nomeação podem ser previstos pelo direito da União ou de um Estado-Membro[6];

Denota-se do conceito de responsável pelo tratamento, que dentre os entes ali citados, a figura do condomínio melhor se encaixaria na previsão de “outros organismos”, pois, aquém de entrar no mérito de ser dotado de personalidade jurídica ou não, tal como apresentado de início nesta coluna, o condomínio é um organismo que determina as finalidades e os meios de tratamento dos dados pessoais que coleta em sua organização.

Neste sentido, a Autoridade Francesa de Proteção de Dados Pessoais (CNIL) já enfrentou essa problemática em questionamentos que lhe foram apresentados, especialmente no tocante à possibilidade de instalação de câmeras de vigilância em condomínios de apartamentos[7]. Nesta oportunidade, a CNIL pontua pela aplicabilidade do Regulamento Geral de Proteção de Dados Pessoais e, ainda, vai além, elaborando verdadeiro roteiro de como devem ser instaladas e como deve ser a realizado o acesso e guarda dos dados pessoais tratados em razão das câmeras de segurança.

Uma vez exposta a experiência internacional com o tema, há que se refletir, ainda no tocante à LGPD, para a previsão do seu artigo 4º, inciso I, que exclui do seu campo de atuação tratamento de dados pessoais realizados por pessoa natural para fins exclusivamente particulares e não econômicos.

A finalidade deste artigo parece bem clara: excluir da aplicação da lei o tratamento de dados qualificado como doméstico, ou seja, a pessoa natural que trata dados pessoais para fins particulares e não econômicos, tal qual a agenda com números de telefone de amigos e parentes, mensagens trocadas com amigos e parentes, dentre inúmeras outras possibilidades.

Embora seja possível defender que o artigo 4º, inciso I, da LGPD, seja exaustivo, e que por este simples fato já estaria resolvida a problemática ora proposta nesta coluna (condomínios não estão ali previstos), é certo dizer que o tratamento de dados pessoais em condomínios extrapola e muito as finalidades particulares e não econômicas, sobretudo pela diversidade de categoria de dados que este tem sob o seu tratamento, na gestão da propriedade comum a todos.

Sejam estas informações para fins cadastrais ou de segurança dos condôminos, funcionários ou mesmo prestadores, nos parece que tratamento destes dados pessoais extrapola o caráter privado, ainda que não se tenham atividade econômica deste tratamento.

O titular que se submente a uma coleta de dados biométricos (dados sensíveis no conceito legal[8]) por uma portaria, seja o titular um condômino ou mesmo um prestador de serviços, não poderia ser excluído da tutela legal da LGPD, pelo fato de que esta coleta não tem finalidade econômica.

Outra questão complexa envolvendo os condomínios reside na identificação do controlador e operador dos dados pessoais. Como definido pela LGPD, o controlador é a pessoa física ou jurídica responsável pelo tratamento dos dados pessoais. Na prática condominial, deve-se observar a quem compete a decisão sobre o tratamento dos dados pessoais. Pode ser que a decisão compita ao condomínio como um todo ou pode ser que ela será exercida pelo síndico, em nome de todo o condomínio. Em outros casos, a decisão pode ser da administradora do condomínio, quando houver. A análise sempre deve ser feita a partir do caso concreto e de quem compete a tomada de decisão sobre o tratamento dos dados pessoais.

Em relação ao operador, definido pela LGPD, como sendo a pessoa física ou jurídica que realiza a atividade de tratamento em nome do controlador. Assim, pode ocorrer da empresa de segurança ser a operadora dos dados pessoais tratados em razão do monitoramento, hipótese na qual obedecerá às orientações do controlador e assim por diante. A definição das figuras do controlador e do(s) operador(res) é crucial para um bom plano de adequação do condomínio à LGPD.

 

Notas e Referências

[1] https://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/718 , acessado em 12.09.2020.

[2] https://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/478 , acessado em 12.09.2020.

[3]https://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/854#:~:text=O%20STJ%20j%C3%A1%20reconheceu%20a,personalidade%20jur%C3%ADdica%20ao%20condom%C3%ADnio%20edil%C3%ADcio%22., acessado em 12.09.2020

[4]https://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/854#:~:text=O%20STJ%20j%C3%A1%20reconheceu%20a,personalidade%20jur%C3%ADdica%20ao%20condom%C3%ADnio%20edil%C3%ADcio%22., acessado em 12.09.2020

[5] Diniz, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, 1º volume: teoria geral do direito civil. São Paulo: Saraiva. p.298.

[6] https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32016R0679&from=EN acesso em 18.19.2020.

[7] https://www.cnil.fr/fr/la-videosurveillance-videoprotection-dans-les-immeubles-habitation acesso em 18.9.2020

[8] Art. 5º Para os fins desta Lei, considera-se:

[...]

II - dado pessoal sensível: dado pessoal sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural;

 

 

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