A legítima defesa de Wally Alligator e um ideal de purgatório - Um conto póstumo sobre a liberdade individual de um canino

20/05/2017

Por Mayra Matuck Sarak – 20/05/2017

Dizem as más ou realistas línguas de que cachorro só é amigo do homem por desconhecer o dinheiro. Porém, não foi o caso da minha pessoa mamífera no corpo canino de Wally Alligator. Eis aqui pontos de meu existencialismo sobre quando ainda fazia parte de um ângulo mamífero na Terra. Vim ao mundo quando sentimentos de saudade ficam mais aguçados e cemitérios ganham mais flores – dia de finados, sem grande popularidade entre peludos. Nasci no dia em que se morre, num domingo quando a menina estava na casa dos avós que tinham uma cachorra prestes a dar cria.

Ela tinha cinco anos e vivia com um livro grande de capa dura nas mãos sobre um desenho de multidão com um personagem perdido no meio dela: “Onde está Wally?” – um cara magrelo, sempre de cachecol, tons de vermelho, jeans e óculos. Um tipo intelectual “charmosinho” que inspirou meu primeiro nome. Chovia forte e deliciosamente no domingo que vibrou em meu cadáver áureo as duas pulsões estruturais que regem a nossa vida segundo Freud: a de vida e a de morte.

O primeiro e único parto que a menina fez em sua vida foi o dos filhos da cadela Ciça, minha mãe. Éramos uma maçaroca biológica em forma de pequenas bolinhas de pelo banhadas com sangue e patas encolhidas. O líquido aminiótico da bolsa explodia na passagem de cada filhote do ventre para o cesto forrado envolvendo a Ciça deitada e gemendo em comunhão com os trovões extravagantes daquele dois de novembro. Obviamente, fiz essa passagem em sono REM e demorei dias para abrir os olhos. Um dos meus irmãos nasceu sem o céu da boca e infelizmente não resistiu. A menina ajudou a embrulhar. Por outro lado, uma das minhas irmãs ficou famosa por ter uma mancha nas costas em forma de coração.

Minha mãe estava esgotada, mas meus seis irmãos e eu permanecemos saudáveis, manhosos e impiedosos ao redor de suas tetas dilatadas de leite. Nesse momento, a Teoria de Charles Darwin a respeito da seleção natural das espécies imperou, e a menina me observou como o mais gorducho, o mais forte ladrão de tetas daquela ninhada! Após alguns dias de recém-modelado das entranhas recém-exploradas da cadela Ciça, eu era uma bolinha peluda, macia e manhosa, com boquinha rosada manchada de leite, olhinhos de sono e preguiça ambulante. O semblante de docilidade da minha aura canina vinha dessa composição. Após uma relutância familiar em me aceitarem como um novo membro, num dia de tempestade, a menina e seu tio vieram me pegar da casa dos avós e levar para a casa desse tio, que quis ser meu dono e pai mamífero de duas patas. Foi assim após desmamado da mãe Ciça, uma fox-terrier vira-lata e apresentado ao pai Quick, um fox-terrier pelo duro com Pedigree, bonitão e despido de preconceitos rígidos. Boa parte da vida percorreu “normalmente” com atividades diárias de bola, ração, guloseimas, passeio, carinho, banho e essas coisas que fazem parte da cultura interna de uma família que decide ter um cão com a consciência do que isso implica. Anos mais tarde da longa vida que eu teria como destino, soube que a cadela Ciça faleceu velhinha e nanando embaixo dos pés de um velho ranzinza.

Na infância fui destruidor de coisas, mijão e cagão. Na adolescência, como todos, adquiri uma forma indefinida, mas, felizmente, ao contrário de alguns, modifiquei para melhor e tornei-me um príncipe mestiço de fox-terrier com vira-lata. O lado vira-lata herdado de minha mãe me tornou robusto para um fox-terrier pelo duro com Pedigree como o meu pai. E, o gene de legítimo terrier pelo duro, me deu um charme Sheepdog, com franja e bigode. De qualquer forma, tinha o mínimo denominador comum do gene característico da raça fox-terrier, descrito como um bom componente de caça contra os ratos causadores da Peste Negra. Ainda assim, vivia em um contexto urbano, morava em apartamento, e não conheci o habitat de caça. Um de meus primeiros prazeres da carne foi o de lacrar com os dentes os membros de minha própria família, que amava, além de abrir exceções para quem cruzasse meu caminho com um sorrido largo e receptivo como se a vida fosse simplesmente linda, sem motivo algum para ressentir-se dela.

Minha família foi digna ao conviver, mesmo que de modo estranho, com meu livre-arbítrio anticristão (convenhamos, nosso Estado é laico). Afinal, por que roer um ossinho sintético quando se pode pegar o basset linguiça ruivo do vizinho do 8º andar? Sadia ®. Ou o poodle esnobe do 5º? Depois que mordi o antebraço do Sr. Manoel, vizinho português dono do basset, por engano, quando este suspendeu o cão dele pra cima no elevador numa altura em que um cão porte médio não alcança, passei a usar guia dentro de casa para casos de necessidade ou legítima defesa. Sinceramente, uma guia peitoral é como um chinelo velho e amigo.

A vida foi generosa com o basset ruivo, pois ele se foi pelo percurso normal da idade canina após uma existência plena, antes de ver seu fiel companheiro envelhecer com alguma demência de memórias presenciais e póstumas. Algo humano demais e desnecessário para um cão fiel. De fato, eles eram discretos demais para merecerem esse desgaste. Ao contrário da fala fanha e esnobe da Sra. Mara e seu poodle branco, de cacheados fios de algodão hidratado. Mesmo que a ética seja considerada um valor.

Implicava até com minha sombra desobediente, mas convivia bem com a Tuca, quando ela ia limpar a casa. Eu respeitava a Tuca. Ela me respeitava. Um dia nos olhamos prolongadamente. Ela interpretou como um pedido para dar um passeio e resolveu atender. Ambos estávamos no 11º andar para descer. A porta do elevador era automática e a família do poodle estava com tudo aberto na casa deles. Até que o elevador parou e o poodle surgiu de algum lugar invadindo o elevador. A Tuca, diante do instinto de preservação do medo que nos protege, me levantou para o alto com força. Ah! Que posição desconfortável! Rapidamente me espremi pela guia peitoral e escapuli por baixo ao encontro do poodle cacheado. Lati para começar, mas logo o poodle correu pra casinha junto de mamãe fanha. Não pude perder a oportunidade de entrar no apê deles. A dona Mara e seu cão gemeram sem frescura. Ela vestia uma saia de seda estampada que rapidinho fiz uma colcha de retalhos e dei um safanão amigo nos cachos hidratados do poodle atrevido e melindroso. Saí de peito erguido ao encontro da Tuca, que estava desesperada sabe-se lá o motivo. Posteriormente, a vizinha nos acusou de invasão de domicílio e ficou um ano sem dirigir sua voz fanha para todos os meus. Passei por isso indo me isolar num canto, rosnando e impondo distância, assim, muito democraticamente, resguardei meus atos questionáveis.

Os mamíferos de duas patas possuem hábitos estranhos e minha família não era exceção: nesse mesmo dia, após me defender bravamente diante dos prantos da vizinha, indignada, minha mãe me levou ao Pet Shop para trocar a guia, mas dessa vez, por aquela que se o cão puxa muito, aperta o pescoço. Enquanto ela escolhia, eu olhava a imensa gaiola de pássaros cantantes e multicoloridos. Um deles me chamou a atenção. Me aproximei com reciprocidade. Porém, a gaiola caiu no chão e abriu. Os pássaros voaram para todos os lados, sendo que nem pude conversar com esse novo amigo. Fiquei frustrado. O dono do tal Pet Shop espumava de raiva e minha mãe dizia: “o senhor nos desculpe, quero pagar pela despesa causada”. Ouvimos dele um apenas: “por favor, senhora, se retire”. Obedecemos ao estranho que aprisionava pássaros e voltamos para o nosso habitat. Após me chamar de “seu puto” com ímpeto na voz, notei minha dona com um sorriso Mona Lisa nos lábios observar o lado austero do meu bigode molhado na brisa da janela do carro. Estava realmente cansado desse dia longo.

Com a chegada da maturidade, foquei mais para a família, mesmo que o TOC tenha dado o semitom acima. Recusava Havaianas e não tolerava quem arrastasse os pés com elas. Sabia ser carinhoso em outros momentos, era elegante para comer e adorava um pãozinho. Tive duas namoradas, sendo que apenas uma levei para casa, infelizmente, no dia errado do cio: a Areta. Era apaixonado por ela, que descaradamente me abaixou o rabo. Sofri. Restou-me o consolo dos trapos velhos que dava para montar a galope.

Há uma frase do escritor Luís Fernando Veríssimo que gosto demais: “o destino é um gozador”. Havia o Tom, o fox terrier vizinho que morava bem embaixo de mim. Tínhamos uma linguagem única: nos amávamos e odiávamos ao mesmo tempo, da mesma forma, ou sem forma alguma! Porém, houve apenas um encontro fatal no elevador: eu saindo para a garagem, ele entrando para subir. O olfato nos disse que estávamos mais perto do que de costume. A porta abriu e nossas bocas pareciam garras inseparáveis. Havia força, rancor, dor e vigor em nosso silêncio arenoso. Foi o que no mundo de duas pernas chama-se beijo. Esse foi o beijo mais fatal da minha vida. Com as guias que asfixiam o pescoço, nossas donas foram impiedosas, mas em vão para nos separar. Foi um encontro muito especial, com o mesmo grau de respeito. O funcionário do prédio veio com um balde de água para nos descolar. Levamos pelos um do outro em nossas salivas e só voltamos a estar algumas vezes pela janela, no precioso momento em que tínhamos para nos afrontar. Até que um dia, a dona do Tom mudou de casinha.

A catarata tornou meu temperamento mais intransigente na velhice, que, obviamente, chegou para mim. Meu último gesto senil foi abocanhar quem resolvesse assistir Big Brother Brasil no habitat de casa. Em meus últimos dias, comecei a ser dominado por uma letargia. Perambulava lentamente pela casa e aguardei fielmente minha dona chegar do trabalho, depois, voltei a dormir para sempre em sono REM, já sem as regalias do líquido aminiótico. A passagem foi serena. Estava rodeado por quem mais me amava e produzi um capital abstrato chamado emoção.

Enquanto levavam meu corpo embrulhado num cobertor para o veterinário que atendeu, minha alma subia lentamente como uma bexiga que se perde no tempo e no cosmos. Me senti um astronauta no espaço e pude observar como a Terra é de longe. Ao esbarrar nas nuvens, começou um túnel meio violeta… achei que fosse o céu, mas era o purgatório, e seu ar mais puro que o antigo lugar de meu habitat. Segui na direção de uma árvore nesse novo espaço que me pariu ou engoliu. Foi assim que conheci Machado e seu potinho “emplasto Brás-Cubas”. Voltei anestesiado de cão para onde quer que fosse.

É costume incomum se levar cães para enterrar em cemitérios (claro, desconhecemos dinheiro), por isso a Prefeitura recolhe o cadáver do nosso ego como resíduo descartável de Centros Veterinários e nos destina para cremação coletiva. (Preferi não me informar sobre a sanitária disso). Apenas gostaria de dizer algo dessa busca original mamífera: não tive filhotes com a cadela da minha vida. Pratiquei os crimes de lesão corporal e invasão de domicílio. Torci para o Corinthians. Nunca tive uma defesa, dessas formais feitas por advogados. Recebi o único beijo fatal na mordida de um semelhante igual. “Não transmiti a nenhuma criatura o legado de minha miséria”, mas pude me rever. Deixei saudades eternas. Recebi mordidas de paz em minha cova.


Notas e Referências:

ASSIS, Machado de.Memórias Póstumas de Brás Cubas.


Mayra Matuck. . Mayra Matuck Sarak é estudante do 8º semestre do curso de Direito da FMU. . . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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