A Justiça Restaurativa no Juizado da Infância e Juventude e a Lei do Sinase

28/01/2020

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenador Assis da Costa Oliveira

A Justiça Restaurativa no Brasil chega como uma possível alternativa para a falência e morosidade do sistema penal, de modo que os três projetos pilotos desenvolvidos a partir de 2005, por meio do Ministério da Justiça, em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD),  foram implantados em São Caetano e Porto Alegre, no âmbito dos Juizados da Infância e Juventude; e, em Brasília, no âmbito dos Juizados Especiais Criminais.

A Organização das Nações Unidas (ONU) editou, em 2002, a Resolução 12, para delimitar princípios básicos para a utilização de Programas de Justiça Restaurativa em matéria criminal, aos seus Estados Membros, devido ao aumento significativo de iniciativas restaurativas.

No Brasil, a Resolução 225 do CNJ, de 31 de maio de 2016, estabelece, em seu artigo 1º, a Justiça Restaurativa “como um conjunto ordenado e sistêmico de princípios, métodos, técnicas e atividades próprias, que visa à conscientização sobre os fatores relacionais, institucionais e sociais motivadores de conflitos e violência”.[1]

A referida resolução tem como um dos seus objetivos a uniformização do conceito e execução da Justiça Restaurativa, devido a enorme diversidade de técnicas que podem ser empregadas. Refere-se ainda, que nos casos de adolescentes em conflito com a lei, as práticas restaurativas deverão ser prioritárias, conforme art. 35, II e III da Lei 12. 594/2012

Os princípios que devem orientar toda prática restaurativa encontram-se no artigo 2º, o qual destaca o princípio da corresponsabilidade, a reparação do dano, a voluntariedade, a confidencialidade, a consensualidade, o atendimento à necessidade de todos os envolvidos.

Os Tribunais de Justiça dos Estados, em parceria com instituições privadas, serão responsáveis pela aplicação da Justiça Restaurativa, inclusive, os facilitadores deverão ter capacitação conforme prevê o Capítulo VI.

O primeiro momento que acena a um vetor restaurativo presente na Lei n. 12.594/2012, encontra-se no art. 1º, que ao instituir o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) e regulamentar a execução das medidas socioeducativas destinadas a adolescente que pratique ato infracional, traz no §1º o entendimento de que esse sistema se reconhece como um “conjunto ordenado de princípios, regras e critérios que envolvem a execução de medidas socioeducativas, incluindo-se nele, por adesão, os sistemas estaduais, distrital e municipais, bem como todos os planos, políticas e programas específicos de atendimento a adolescente em conflito com lei”. 

O §2º, do art. 1º, reforça, em primeiro lugar, a concepção estatutária das medidas socioeducativas, como aquelas prescritas no art. 112, do Estatuto da Criança do Adolescente, e em segundo lugar estabelece como objetivos destas medidas: a responsabilização, a integração social e a reprovação da conduta infracional (incisos I, II e III). É exatamente, no inc. I, do §2º, art. 1º, ao tratar da ideia da responsabilização, que a Lei do Sinase prescreve: “a responsabilização do adolescente quanto às consequências lesivas do ato infracional, sempre que possível incentivando a sua reparação”. Reparação, portanto, temos anunciada e enunciada à concepção restaurativa com vistas a reparar a consequência lesiva causada pelo ato infracional. Está a Lei do Sinase falando em punição, castigo, retributividade pela lesão causada? Não! A lei faz referência à responsabilidade do adolescente, a qual, se possível, dar-se-á pela via da reparação. Assim, aqui está presente o ato de reparar, restaurar, consertar.

A Lei do Sinase ao cuidar, especificamente, da execução da medida socioeducativa, elenca como princípios:

Art. 35.  A execução das medidas socioeducativas reger-se-á pelos seguintes princípios: 

I - legalidade, não podendo o adolescente receber tratamento mais gravoso do que o conferido ao adulto; 

II - excepcionalidade da intervenção judicial e da imposição de medidas, favorecendo-se meios de autocomposição de conflitos; 

III - prioridade a práticas ou medidas que sejam restaurativas e, sempre que possível, atendam às necessidades das vítimas; 

IV - proporcionalidade em relação à ofensa cometida; 

V - brevidade da medida em resposta ao ato cometido, em especial o respeito ao que dispõe o art. 122 da Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente)

VI - individualização, considerando-se a idade, capacidades e circunstâncias pessoais do adolescente; 

VII - mínima intervenção, restrita ao necessário para a realização dos objetivos da medida; 

VIII - não discriminação do adolescente, notadamente em razão de etnia, gênero, nacionalidade, classe social, orientação religiosa, política ou sexual, ou associação ou pertencimento a qualquer minoria ou status; e. 

IX - fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários no processo socioeducativo. 

O inciso I, do art. 35,  na realidade, reafirma uma das grandes conquistas da humanidade: o princípio da legalidade, o que significa dizer que não poderá ser constituído um processo de apuração de um ato, se este não se constituir como algo contrário ao ordenamento jurídico, que constitua um ato infracional, uma conduta descrita como crime ou contravenção penal (art. 103, do Estatuto da Criança e do Adolescente).

No inciso II, do art. 35, está positivada a concepção que pouco a pouco adentra o Sistema de Justiça: a desjudicialização dos conflitos. Por isso a nitidez desse inciso em falar que a intervenção judiciária e a imposição de medida deverá ser excepcional, com destaque aos meios de autocomposição de conflitos – essência da Justiça Restaurativa.

Vê-se que, no inciso III, do art. 35, é previsto como princípio as práticas ou medidas que se apresentem como restaurativas e, sendo possível, que se atenda às necessidades das vítimas. Observa-se, nesse inciso, uma menção direta da Lei do Sinase a respeito do sistema restaurativo ao anunciar que a execução das medidas socioeducativas deveria ser oportunizada a práticas ou medidas restaurativas e, nesse sentido, havendo possibilidade, que fossem atendidas as necessidades das vítimas.

O inciso IV, do art. 35, refere-se à proporcionalidade em relação à ofensa cometida. Portanto, a intervenção sociopedagógica a ser aplicada deve ser adequada e necessária à situação do adolescente autor de ato infracional e consoante à ofensa cometida.  Não se está dizendo que a Lei do Sinase instituiu uma “dosimetria” da medida socioeducativa e a lesão ao direito ocorrida. Antes, trata-se de ressaltar o cuidado com que tipo de medida a ser aplicada, para que não seja em sua essência mais gravosa do que o dano efetivamente ocorrido.

No inciso V, do art. 35, encontramos a questão da brevidade da medida em resposta ao ato cometido, que reforça o já previsto no art. 122, do Estatuto da Criança e do Adolescente.  O art. 122, além de prescrever as três únicas possibilidades de aplicação da internação (1. ato infracional cometido com grave ameaça ou violência à pessoa; 2. prática reiterada de outras infrações graves; 3. descumprimento reiterado e injustificado de medida anteriormente imposta), prescreve em seu § 2º que não poderá ser aplicada a internação se outra medida se apresentar como mais adequada (ver também o parágrafo único do art.116).

De igual modo, o inciso VI, do art. 35, ao tratar da individualização, implica que as medidas socioeducativas devem considerar a idade, capacidades e circunstâncias pessoais do adolescente. Esse inciso repete diversas disposições estatutárias, como por exemplo: art. 123, art. 117, parágrafo único e art. 126.

O inciso VII, do art. 35, diz respeito a mínima intervenção, restrita ao necessário para a realização dos objetivos da medida. Chama atenção que a Lei do Sinase avança em relação ao art. 121 do Estatuto, pois nesse artigo a referência é que a medida de internação, restritiva da liberdade, deverá ser breve, excepcional e respeitar a condição do adolescente de pessoa em desenvolvimento. Já a Lei 12.594/2012 destaca que o princípio da mínima intervenção se presta a toda medida.

No inciso VIII, do art. 35, tem-se positivada a ideia da não discriminação do adolescente, notadamente em razão de etnia, gênero, nacionalidade, classe social, orientação religiosa, política ou sexual, ou associação ou pertencimento a qualquer minoria ou status.

Por fim, no inciso IX, do art. 35, anote-se o fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários no processo socioeducativo, isto é, deve ser dada prevalência às medidas que visem ao fortalecimento desses vínculos, consciente de que somente com o apoio efetivo da família, seja a de origem, seja a família extensa, bem como os mecanismos sociais agregadores é que se poderá ter, efetivamente, o resgate cidadão deste adolescente (esta matéria também está prevista no art. 100 caput e inciso X, do Estatuto da Criança e do Adolescente).

Não restam dúvidas que a compreensão da Justiça Restaurativa é algo que vai além de uma mera compreensão filosófica, muito além do que a aplicação de uma metodologia consensual é de fato uma proposta de verdadeira humanização no que concerne a compreensão do conflito que resulta das práticas contrárias às estabelecidas na lei penal, e modo a ter uma noção mais ampla para além do ato lesivo e suas consequências impostas pelas normas, mas o que tal violação interfere nas relações.

Os defensores da Justiça Restaurativa e, com toda razão, não querem que esta proposta seja lida como uma terceirização das decisões, uma forma de eliminar processos, como se fosse uma catalizadora de redução judicial. De modo algum, pois ela contempla princípios que lhe são próprios: a emancipação, voluntariedade, segredo de justiça, atendimento individualizado. Nos círculos restaurativos tudo é construído pelas partes, porque a base principiológica da Justiça Restaurativa em sua essência é o envolvimento da comunidade, no sentido de se colocar como colaborativa.

No entanto, em que pese toda a riqueza da Justiça Restaurativa, parece-nos que não se deva preocupar tão somente com a sua capacitação, como deve ser o procedimento, o conhecimento de toda a metodologia envolvida, sim, isto se faz necessário. O que nos preocupa é que a Justiça Restaurativa quando aplicada na esfera que envolva a prática de atos infracionais deva ter, de igual modo, uma ampla compreensão da Doutrina da Proteção Integral.

Observamos que muitos que fazem esse trabalho não têm uma formação também necessária no Direito da Criança e do Adolescente, na compreensão do Sistema de Garantias. Não incomum, por exemplo, é o uso da palavra “delito”, quando se deveria utilizar “ato infracional”; “reincidência”, quando deveria ser utilizado “ato reiterado”, pois se diante dos pressupostos da Justiça Restaurativa devemos ter conhecimentos específicos e necessários, de igual modo à compreensão da Doutrina da Proteção Integral, suas implicações.

Preocupa-nos, de igual modo, a fala de muitos ao referirem-se ao “ato infracional”, o situam como um dano que provoca ou deveria provocar um “sentimento” ruim, tememos que essa concepção possa resultar numa culpabilização do adolescente, sob uma determinada construção de que estaríamos internalizando a responsabilidade. E isso precisa ser seriamente analisado e estudado criteriosamente.

 

Notas e Referências

[1] BRASIL. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução 225, de 31 de maio de 2016. Brasília, 2016.

 

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