Coluna Advocacia Pública e outros temas Jurídicos em Debate / Coordenadores José Henrique Mouta e Weber Oliveira
Com o advento da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), o Poder Judiciário vem sendo constantemente demandado, visto que com a alteração na maneira a qual empresas coletam e processam informações, consumidores passaram a lidar com uma crescente violação na sua privacidade, liberdade de escolha e autodeterminação informativa.
Essa problemática se tornou um problema estrutural que atinge um número cada vez maior de pessoas e não está mais limitada à definição tradicional de interesses individuais. Com isso, extrapola a perspectiva intersubjetiva e bipolarizada que caracteriza o modelo tradicional de conflito.
Diante disso exige técnicas diferenciadas de tutela, que considerem a participação do indivíduo na sociedade e o contexto no qual lhe é solicitado que revele seus dados, estabelecendo meios de proteção para ocasiões em que sua liberdade de decidir livremente é cerceada por condicionantes, buscando o exercício da autodeterminação informativa.
Apesar da LGPD viabilizar o processo coletivo tradicional e a tutela coletiva para fins de reparação de eventuais violações de direitos à proteção de dados pessoais e da privacidade, a reparação ou indenização está sempre pautada em interesses individuais ou de grupos específicos, e, portanto, não é suficiente para efetivamente tutelar o direito coletivo de consumidores de não serem objetivados e qualificados fora do contexto, fomentar a política pública e solucionar o litígio estrutural preexistente.
Ainda que as sanções sejam necessárias para efetivar a aplicação de uma política pública, vale ressaltar que, o objetivo principal da política é sempre gerar o cumprimento e adequação comportamental dos agentes e não a mera punição. Diante disso, a prevenção e a orientação são peças-chaves do sistema que se pretende construir (CARVALHO; MATTIUZO; PONCE; 2020, p. 361).
A transparência, a segurança e a prevenção são parâmetros inegociáveis, que ultrapassam a atuação estatal repressiva pautada no instituto da responsabilidade civil, e, pautados na boa fé objetiva, na inserção da ética nas relações negociais e na efetivação dos direitos fundamentais à privacidade e proteção de dados, transitam para um imperialismo da governança (MARTINS; JUNIOR, 2020, p. 357).
Desse modo, para implantar de fato uma política nacional de proteção de dados pessoais e da privacidade, conforme a LGPD objetiva fazer, é necessário que em cada caso concreto haja uma investigação da segurança de dados nas empresas e a implementação de medidas que as façam se adequarem ao disposto na legislação. Nesses casos, decisões sobre a legalidade ou ilegalidade da conduta específica não oferecem uma base apropriada para respostas sólidas.
A tutela coletiva clássica não proporciona a proteção desejada diante da complexidade inerente à tutela dos dados pessoais, razão pela qual é imprescindível que se adotem outras técnicas efetivamente suficientes para assegurar a inviolabilidade dos dados. Nesse contexto, é necessário interpretar a tutela coletiva para além de interesses meramente pecuniários ou individuais, para que dessa forma surjam métodos de mudança de conduta empresarial para implantar uma política nacional e uma cultura de proteção de dados no Brasil.
Diante disso, ressalta-se que, as técnicas extrajudiciais de tutela coletiva para providências de reforma estrutural podem proporcionar mudanças sociais significativas, especialmente em razão dos litígios estruturais não mais demandarem uma resolução una, pautada na lógica do perde-ganha (VITORELLI, 2020).
O Código de Processo Civil adota um sistema de Justiça Multiportas, o qual viabiliza diferentes técnicas para resolução de diferentes conflitos. A pretensão desse sistema é dar o tratamento adequado ao conflito de interesses das partes, através de uma triagem prévia para identificar qual porta de solução para o caso seria a ideal, dentre as múltiplas portas para acesso à justiça.
As técnicas extrajudiciais podem ser exercidas em procedimentos instaurados pelos legitimados da Lei de Ação Civil Pública - Lei Federal nº 7.347, e permitem que sejam efetuados importantes trabalhos de alteração estrutural. Nesse sentido, a tutela do direito material coletivo não depende, necessariamente, do processo.
Para assegurar a proteção dos dados pessoais, é imprescindível pensar em tomadas de decisões que fujam da trivialidade convencional na perspectiva da proteção intersubjetiva, e adotar posturas ativas e concretizantes, de natureza difusa e não linear, por meio de técnicas criativas, capazes de aprimorar o tratamento de dados no Brasil.
A tutela dos dados pessoais deve abarcar todas as medidas preventivas que buscam evitar a lesão ao direito extrapatrimonial. Nesse contexto, métodos extrajudiciais de resolução de conflitos são instrumentos aptos a contribuir para a solução da problemática, visto que, são ferramentas mais flexíveis em comparação ao processo judicial, seja por estabelecer um diálogo produtivo ou pela capacidade de implementar e fiscalizar medidas que irão resultar na transformação pretendida (VITORELLI, 2020).
Entretanto, no Brasil a busca pela solução judicial tem prevalecido em detrimento de uma série de possibilidades de meios consensuais de resolução de conflitos, como a mediação, a conciliação e a negociação. A cultura brasileira da judicialização de conflitos contribui para o afogamento desmedido do poder judiciário, em decorrência de uma excessiva judicialização de demandas, o que acarreta, além da demora na entrega justa e tempestiva da prestação jurisdicional, uma grande carga financeira ao Estado. Portanto, os elevados índices processuais resultam em uma lentidão na prestação judicial, reflexo da ampla quantidade de processos em curso.
A realidade brasileira, caracterizada pela ausência de um contexto processual no qual o acordo seja a melhor solução, pode ser contornada diante de estímulos significativos para a celebração de acordos de características estruturais, o que não ocorre comumente, pois gestores públicos ou privados não são estimulados a celebrar acordos complexos, deixando para gestões futuras a solução dos problemas (VITORELLI, 2020).
O acordo em um contexto estrutural contribui para que o foco seja ampliado para além da noção simplificada de autor e réu, pretensão e resistência, ponderados os interesses por trás das posições de cada parte. Dessa forma, o acordo será, em muitos casos, a saída com maior potencial para produção de bons resultados para ambas as partes. Além disso, possibilita o adiamento de providências que poderiam ser determinadas em sede de tutela provisória, em processos individuais e coletivos, capazes de desestruturar ainda mais a instituição (VITORELLI, 2020).
As técnicas estruturantes extrajudiciais podem contribuir na mudança de comportamento empresarial no que tange ao respeito pela privacidade e pela proteção de dados pessoais de consumidores, desde que os acordos destaquem a obrigação das empresas atuarem preventivamente, com a elaboração de mecanismos de mitigação de riscos e relatórios de reação a acidentes, proporcionando que o rol de direitos previstos na legislação sejam assegurados aos titulares dos dados, alterando a dinâmica contratual e o modo através do qual o consentimento é fornecido.
Os acordos devem exigir que as empresas criem salvaguardas em casos de eventuais riscos de acidentes, sistemas que assegurem o exercício de direitos pelos titulares dos dados, como o acesso aos dados tratados; a correção de dados incompletos, inexatos ou desatualizados; a anonimização, o bloqueio ou eliminação de dados desnecessários (CARVALHO; MATTIUZZO; PONCE, 2020, p. 368).
A adoção de medidas técnicas e administrativas, seguras e cautelosas, voltadas à segurança dos dados pessoais são de suma importância, bem como o uso de mecanismos destinados a impedir o vazamento dos dados, e a exigência de comprovação ao Ministério Público ou a ANDP da adoção destas medidas e da conformidade da empresa com as diretrizes legais. Assim, estas obrigações se tornam técnicas que contribuem para estimular o surgimento da cultura de proteção de dados pessoais.
Desse modo, os agentes que não atuem em conformidade com os princípios e diretrizes da legislação devem ser compelidos a adequarem as suas atividades ao dispositivo legal, evitando vazamentos ou incidentes envolvendo dados pessoais de indivíduos.
O Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), previsto no art. 5º, §6º da Lei 7.347/1985, ganha relevo no contexto normativo de incentivo à autocomposição, visto que, trata-se de instrumento para autocomposição coletiva, para adequar a conduta dos responsáveis às disposições legais.
Com o TAC, o ordenamento jurídico permite que as partes envolvidas autorregulem os seus interesses, visando alcançar um ajustamento das condutas às exigências legais e recuperem danos causados na medida do possível, podendo o acordo versar sobre qualquer espécie de direito transindividual (ALVIM; CUNHA, 2020).
O objeto do acordo pode ser substancialmente amplo, podendo estabelecer qualquer obrigação, a depender do caso concreto, como obrigação de fazer, de não fazer, de dar ou pagar. A questão principal é a adequação das disposições negociais aos eventuais direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos relacionados ao TAC ao ordenamento jurídico (ALVIM; CUNHA, 2020).
As partes podem estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o procedimento. Trata-se de uma disposição da relevância ao autorregramento de vontade no âmbito do direito processual civil (ALVIM; CUNHA, 2020).
Desse modo, é reconhecido pelo ordenamento jurídico um espaço para que a expressão de vontade das partes receba proteção jurídica, visto que é extremamente relevante que os interesses das partes sejam sopesados para que os efeitos almejados sejam produzidos.
O TAC é uma ferramenta capaz de contribuir para a consolidação da política de proteção de dados pessoais e da privacidade, de maneira a ultrapassar a margem da resolução de conflitos pela tutela coletiva tradicional e dessa forma, contribuir para uma resolução mais prática e efetiva da problemática.
Alguns TAC’s já celebrados demonstram esta possibilidade, podendo ser observados como um passo inicial rumo a uma mudança estruturante. Conforme se observa no Termo de Ajustamento de Conduta nº 01/2019, celebrado em 2019 pela Netshoes e o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, no Inquérito Civil Público 08190.044831/18-44, em razão de incidente de segurança envolvendo a base de dados de clientes da empresa, no qual foram vazados dados pessoais de milhões de usuários.
Além da obrigação de pagar estipulada no valor de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais) a título de danos morais coletivos, a empresa se ocupou em implantar medidas adicionais ao seu Programa de Proteção de Dados e a realização de esforços na orientação de consumidores, de maneira a aumentar o nível de conhecimento sobre os riscos cibernéticos e medidas de proteção de seus dados pessoais, por meio de campanha de conscientização e da disseminação de boas práticas para privacidade e proteção de dados.
Outro exemplo foi o TAC firmado entre o Ministério Público e a Microsoft, nos autos da Ação Civil Pública nº 5009507-78.2018.03.6100, referente à adequação das licenças e do software do sistema operacional Windows 10 aos ditames legais vigentes no Brasil. O acordo estipulou obrigações de fazer, como a necessidade da empresa promover em sua Política de Privacidade cláusulas contendo informações relacionadas ao tratamento dos dados pessoais de maneira clara e inteligível aos consumidores.
O déficit informacional existente nessas relações aflora a condição de vulnerabilidade do consumidor digital, razão pela qual, medidas que assegurem uma prestação clara e qualificada de informações a respeito do tratamento e do fluxo de dados pessoais não podem ser negligenciadas.
Diante disso, os acordos mencionados estipularam condutas com nítido caráter preventivo, na medida em que as empresas ficaram obrigadas a implementar novas medidas de segurança aos seus programas de proteção de dados, protegendo os dados pessoais de forma eficaz, informando corretamente os usuários, com o objetivo de implantar no setor corporativo uma nova política de governança, visando a adequação e conformidade de suas atividades com as diretrizes previstas na legislação.
Desse modo, as técnicas estruturantes extrajudiciais podem contribuir para uma significativa mudança de comportamento empresarial. Além disso, esse estimulo à resolução consensual de conflitos evitam a inflação de litígios a serem analisados pelos tribunais brasileiros, os quais já estão sobrecarregados.
Notas e Referências
ALVIM, Thereza; CUNHA, Ígor Martins da. Termo de Ajustamento de conduta, mediação e conciliação: Uma breve reflexão a respeito do negócio jurídico que previne ou resolve conflitos que envolve direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos. Revista de Processo, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, vol. 304, p. 379 – 404, Jun. 2020.
BESSA, Leonardo Roscoe; NUNES Ana Luisa Tarter. Instrumentos processuais de tutela individual e coletiva: Análise do art. 22 da LGPD. In: BIONI, Bruno; DONEDA, Danilo;
JUNIOR, Otavio Luiz Rodrigues; MENDES, Laura Schertel; SARLET, Ingo Wolfgang. Tratado de proteção de dados pessoais. Rio de Janeiro: Forense, 2021.
CARVALHO, Vinicius Marques de; MATTIUZZO, Marcela; PONCE, Paula Pedigoni. Boas Práticas e Governança na LGPD: Fiscalização, aplicação de sanções administrativas e coordenação intergovernamental. In: BIONI, Bruno; DONEDA, Danilo; JUNIOR, Otavio Luiz Rodrigues; MENDES, Laura Schertel; SARLET, Ingo Wolfgang. Tratado de proteção de dados pessoais. Rio de Janeiro: Forense, 2021.
FILHO, Adalberto Simão. A Governança Corporativa Aplicada às Boas práticas e compliance na Segurança dos dados. In: DE LIMA, Cíntia Rosa Pereira (Org.). Comentários à Lei Geral de Proteção de Dados: Lei n. 13.709/2018, com alteração da lei n. 13.853/2019. São Paulo: Almedina, 2020.
JUNIOR, Hermes Zaneti; PAVAN, Luiz Henrique Miguel. O Ministério Público e sua participação em processos judiciais com impacto direto e indireto em compromissos de ajustamento de conduta para tutela coletiva. Revista de Processo, Vol. 323, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, Jan 2022.
MARTINS, Guilherme Magalhães; JÚNIOR, José Luiz de Moura. Segurança, Boas práticas, Governança e Compliance. In: DE LIMA, Cíntia Rosa Pereira (Org.). Comentários à Lei Geral de Proteção de Dados: Lei n. 13.709/2018, com alteração da lei n. 13.853/2019. São Paulo: Almedina, 2020.
RODRIGUES, Laura Secfém; NOGUEIRA, André Murilo Parente. Compromissos de ajustamento de conduta e processo estruturante na proteção de dados pessoais: é hora de um novo passo. Revista de Direito e as Novas Tecnologias. vol. 11. ano 4. São Paulo: Ed. RT, jun. 2021.
VITORELLI, Edilson. Levando os conceitos a sério: Processo estrutural, processo coletivo, processo estratégico e suas diferenças. Revista de Processo. vol 284 p. 333-369. São Paulo: Revista dos Tribunais. Out, 2018.
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