A inversão do ônus da prova no processo penal e a sua (in)compatibilidade com a presunção de inocência

16/08/2016

Por Carlos Augusto Ribeiro da Silva - 16/08/2016

  • INTRODUÇÃO 

O presente trabalho visa a analisar a prática forense da inversão do ônus da prova no processo penal brasileiro e a sua (in)compatibilidade com a presunção de inocência, amplamente difundida na jurisprudência pátria, de forma que, a jurisprudência, fundando-se em uma situação de fato, como, por exemplo, a apreensão de um objeto furtado na posse do acusado, inverte o ônus da prova no processo penal e, via de consequência, acaba impondo ao acusado a comprovação de sua inocência. Portanto, o que se questiona é se a mencionada prática é compatível com o princípio da presunção de inocência. Assim, o objetivo geral do trabalho é demonstrar, a partir de um marco teórico estritamente técnico, se é possível inverter-se o ônus da prova dentro de um processo penal e compatibilizá-lo com a presunção de inocência.

2 SISTEMA ACUSATÓRIO NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO

No Brasil, dadas as colchas de retalhos que configuram o processo penal pátrio, certamente não é tarefa fácil assinalar com precisão que sistema processual penal foi eleito e vigora em nosso ordenamento jurídico, todavia, partindo-se de uma leitura constitucional do processo penal, acredita-se que com os pilares até o momento levantados chegaremos à conclusão do sistema processual penal adotado pelo nosso constituinte originário.

Nessa linha, a CRFB, sem dúvidas, projetou um verdadeiro Estado Democrático de Direito, sobretudo ao adotar como referente fundamental a dignidade da pessoa humana, de forma que, desse fato, a conclusão lógica é que o sistema que melhor atende às aspirações do constituinte originário é o acusatório, na medida em que procura respeitar os direitos fundamentais de cada ser humano, afastando-se daquela concepção transgressora de direitos incutida no sistema inquisitório2.

A par disso, o princípio reitor do sistema acusatório relaciona-se com a ideia de que é oferecido às partes a gestão total da prova, criando, a partir daí, uma característica secundária, porém indispensável do sistema, qual seja, a nítida separação das funções de julgar, acusar e defender, de modo que, partindo-se de uma visão constitucional do tema, constata-se que a CRFB, postulado que rege todo o nosso ordenamento jurídico, fez uma opção política por um sistema processual acusatório, na medida em que traçou elementos que sustentam e criam esse sistema.

Diz-se isso porque, ao passo que a CRFB concedeu ao Ministério Público, mais especificamente em seu artigo 129, I3, a exclusividade da ação penal, oficializando-o como genuíno órgão acusador e, por consequência, deixando nítida as figuras daquele que acusa e que julga, as quais não mais se confundem, deu o constituinte o primeiro passo para que a recepção do sistema processual penal fosse pelo acusatório, de modo que, qualquer norma infraconstitucional, prevista no CPP ou na legislação processual penal extravagante, que estiver em conflito com o princípio do processo acusatório, estabelecido na CRFB, deverão ser reputadas inconstitucionais e, com efeito, inválidas.

Aliás, nessa linha, Gustavo Badaró obtempera que “a constituição de 1988 adotou, indubitavelmente, um processo penal acusatório, estando claramente delineada a separação das funções de acusar, julgar e defender4. Arrematando Geraldo Prado:

Assim, se aceitarmos que a norma constitucional que assegura ao Ministério Público a privatividade do exercício da ação penal pública, na forma da lei, a que garante a todos os acusados o devido processo legal, com ampla defesa e contraditório, além de lhes deferir, até o trânsito em julgado da sentença condenatória, a presunção de inocência, e a que, aderindo a tudo, assegura o julgamento por um juiz competente e imparcial, são elementares  do princípio acusatório, chegaremos à conclusão de que, embora não o diga expressamente, a Constituição da República o adotou5.

Todavia, não se olvida a existência de algumas nuances inquisitivas no nosso sistema,  dentre elas, a admissão ainda hoje de que alguns atos que deveriam ser levados a efeito pelas partes, sejam praticados por juízes, como, por exemplo, o artigo 156 do Código de Processo Penal (CPP)6, no qual sugere-se que o magistrado aja como se parte do processo fosse, ordenando até mesmo diligências de busca de prova, o que, de maneira patente, acarreta, no mínimo, uma confusão de funções dos sujeitos processuais, ferindo o sistema acusatório.

Destarte, apesar das quebras infraconstitucionais do princípio acusatório e formas inquisitórias vivendo de contrabando no processo penal brasileiro, ratificadas muitas vezes por nossos tribunais, verifica-se que a CRFB, indubitavelmente, elegeu o sistema acusatório como o consentâneo com os princípios nela projetados, cabendo aos atores jurídicos e a um novo Código de Processo Penal aliado a partida cultural desse ranço inquisitório impregnado no nosso sistema de justiça, tonar o princípio e sistema acusatórios, mais do que meros projetos constitucionais, e sim uma realidade

3 A DISTRIBUIÇÃO DO ÔNUS DA PROVA NO PROCESSO PENAL

Em um primeiro plano, faz-se mister trazer que há duas concepções diferentes sobre o ônus da prova no processo penal, nas quais, a primeira, a bem da verdade, se respalda em raízes estritamente civilistas, alegando que o ônus da prova é dividido entre a defesa e a acusação. Já a segunda visão entende que o ônus da prova é todo da acusação, de modo que é necessário compatibilizá-lo com o postulado da presunção de inocência. A primeira visão é a dominante. A segunda é a qual este estudo filia-se. Far-se-á uma análise das duas correntes.

Atinente à corrente da divisão de cargas no processo penal, faz-se necessário remontar às raízes civilistas do ônus da prova, as quais, inegavelmente, influenciaram nas regras de distribuição da carga probatória no processo penal pátrio, precipuamente porque a doutrina processual penal sobre o ônus da prova, muitas vezes fez apenas uma simples transposição da distinção entre fatos constitutivos, impeditivos e modificativos do direito, a qual foi elaborada pelos doutrinadores processualistas civis7.

Assim, o Novo Código de Processo Civil (NCPC), em seu artigo 3738, dispõe sobre o ônus da prova de modo expresso, aduzindo que cabe ao autor provar os fatos constitutivos de seu direito e, ao réu, eventuais fatos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito que o autor alega possuir.

A partir da leitura do artigo acima, exsurge a interpretação de que aquele que vem ao órgão jurisdicional com uma pretensão de assegurar algum direito, deverá provar as suas condições de constituição, sem presumir-se a sua existência, ou seja, deverá provar em que se funda aquela pretensão deduzida em juízo, constituindo o direito que alega lhe caber, de modo que, as condições anormais, ou seja, as condições que tenham o condão de derruir ou modificar o direito aventado pelo autor devem ser provadas pelo réu, incumbindo-lhe esse ônus.

Nota-se que esta distribuição é levada a efeito conforme a posição processual que a parte assume. Se ela está no polo ativo compete-lhe provar, como dito, o fato constitutivo de seu pretenso direito. Caso esteja no polo passivo, compete-lhe apenas provar fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito alegado pelo autor. Desse modo, nessa órbita, mais especificamente acerca de cada fato disposto no artigo 373 do NCPC, cuja redação encontrava-se exatamente igual no antigo postulado, merece ser trazido à baila a objetiva lição de Gustavo Henrique Badaró:

Fatos constitutivos são aqueles que têm a eficácia jurídica de fazer nascer, de constituir, uma relação jurídica. São fatos que dão o vida ao direito. O ônus da prova dos fatos constitutivos incumbe ao autor. Fatos modificativos ou extintivos são fatos que operam em um momento posterior à constituição da relação jurídica, tendo a força de modificar a eficácia jurídica já produzida por essa relação ou determinar a sua extinção. O ônus da prova dos fatos modificativos e extintivos incumbe ao réu. Por fim, os fatos impeditivos são aqueles cuja essência é necessária para a eficácia jurídica dos fatos constitutivos e cujo concurso impede a produção de seus efeitos. Os fatos impeditivos quando comprovados impedem que o fato constitutivo produza o efeito que lhe é normal ou próprio, que constitui a sua razão de ser. Também para os fatos impeditivos o ônus da prova é do réu9.

Ora, entendidas as regras acima explicitadas, é fácil perceber que tanto no processo civil quanto no processo penal, deverá partir-se da premissa de que é sobre a parte que alega um direito que irá recair a incumbência de demonstrar a existência do fato que alega existir, de modo que cabe trazer na íntegra o disposto no artigo 156 do CPP, o qual, apesar de não trazer em seu bojo uma observância patente ao direito material, em muito não se difere do critério adotado pelo legislador processual civil, ao preconizar o seguinte:

Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício:

I - ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida; (Acrescentado pela L-011.690-2008)

II - determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante.

Avulta, no mencionado dispositivo, que a regra concernente ao onus probandi, ao encargo de provar, é regida pelo princípio actori incumbit probatio ou onus probandi incubit ei qui asserit, ou seja, deve incumbir-se da prova o autor da tese levantada, não diferindo, o caput do dispositivo supracitado da essência do ônus da prova no processo civil.

Logo, à luz da legislação processual civil, cabe à acusação demonstrar: existência do fato imputado e sua autoria, a tipicidade da conduta, os elementos subjetivos de dolo ou culpa, a existência de circunstâncias agravantes e qualificadoras. De outro lado, quando o réu aventar qualquer excludente de ilicitude ou culpabilidade, por serem consideradas fatos impeditivos, capazes de obstar a eficácia do direito de punir estatal, estas devem ser provadas pelo acusado10.

A segunda concepção, por outro lado, preconiza que não há uma verdadeira distribuição de provas dentro do processo penal pátrio, isto é, não há cargas probatórias impostas ao acusado, precipuamente quando se está diante de um processo penal acusatório sob a égide do princípio da presunção de inocência. Essa corrente, para tanto, faz uma interpretação constitucional do artigo 156 do CPP, preconizando que está totalmente na mão do acusador provar o fato típico, ilícito e culpável com todas as suas circunstâncias.

Nesse estudo, avulta-se que deve prevalecer essa concepção, na medida em que o réu nada tem a provar, sua única incumbência dentro de um processo penal dito acusatório é de opor-se à pretensão acusatória. É a acusação, o Ministério Público, que deve provar o que alegou. Não podendo, diante da temerária situação de extirpação do convívio social, que, em regra, é o poder repressivo estatal, simplesmente remontar-se ao Direito Processual Civil, o qual, como dito alhures, em regra, trata-se de instrumento para garantia de direitos disponíveis, sob pena de levar a efeito uma regra de julgamento à revelia da presunção de inocência.

A corroborar o exposto acima, insta transcrever o entendimento de Carl Josef Anton Mittermaier:

As analogias do processo civil ainda fizeram considerar as justificações dadas pelo acusado, com relação a circunstâncias de fato a si favoráveis, como verdadeiras exceções, cuja prova lhe incumbe. Porém é este um dos raciocínios mais falsos e perigosos. A confusão que a este respeito reina no direito civil, encontramo-la no direito criminal, sempre que para aí passa um tal princípio; e assim como no primeiro tentou-se classificar sob diversas denominações as exceções que o réu pode apresentar, assim também os antigos criminalistas trataram da exceção álibi e da exceção culpa; e, se nos modernos tempos caíram em desuso estas denominações, não deixou de substituir em alguns espíritos a opinião de que, em matéria de exceção (se, por exemplo, alega-se o caso de legítima defesa, etc., etc.), a prova compete ao acusado. Ora, embora restrita a um pequeno número de casos, esta opinião é insustentável com referência ao processo criminal; e, especialmente aplicada à confissão parcial (qualificada), tem produzido grandes inconvenientes11.

Nessa visão, é justamente essa a regra de julgamento que deve o juiz seguir: se a acusação tem o dever (note-se bem: dever, não “faculdade”) de provar que o réu cometeu um fato típico, ilícito e culpável, não pode o juiz, diante destas afirmações propulsoras da ação penal, atribuir ao famigerado acusado o encargo de provar quando este ventilar alguma causa impeditiva, modificativa ou extintiva da pretensão acusatória, haja vista que é presumidamente inocente e não há carga probatória alguma, apenas devendo gerar uma dúvida razoável para ser absolvido.

Como se percebe, ao afirmar que o ônus da prova é todo da acusação, estar-se-á trabalhando com premissas compatíveis com os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo, de modo que, ainda, é de todo oportuno externar que apesar de não haver ônus probatório imposto ao acusado, nada lhe impede que possa produzir provas, principalmente porque é inegável que existe um interesse do acusado em demonstrar sua inocência, mas este apenas assume o risco de não produzir provas nesse sentido, não podendo, diante do exposto, que suas alegações com o intento de derruir a acusação sejam afastadas sob o argumento que não foram produzidas provas nesse sentido.

Desta maneira, inexorável a conclusão de que a acusação, consoante a segunda concepção delineada, a qual filia-se esse trabalho, é que deve provar um fato típico, ilícito e culpável, com todas as suas circunstâncias relevantes, de maneira que ao réu cabe apenas opor-se à pretensão acusatória, precipuamente porque é parte hipossuficiente dentro do processo penal, haja vista que enfrenta o rolo compressor Estatal, que o quer ver sujeito ao seu aparato de persecução penal, de modo que o artigo 156 do Código de Processo Penal encontra-se, em muito, equivocado, haja vista sua raiz estritamente civilista, à revelia dos postulados constitucionais que pautam o processo penal pátrio.

4 A PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA COMO REGRA DE JULGAMENTO

No Brasil, o princípio da presunção de inocência é um desdobramento do princípio do devido processo legal, consagrando-se como um dos mais importantes pilares do Estado Democrático de Direito, sendo inserto no artigo 5º, LVII, da CRFB, preconizando que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.

Sob a perspectiva do julgado, a presunção de inocência, dentro da dinâmica probatória do processo penal, assume uma grande relevância, precipuamente quanto ao valor processual que deve ser maximizado, pois, atento à carga probatória debruçada sobre os ombros do órgão acusador, quando o juiz constatar que um fato não foi devidamente provado, precipuamente aqueles constitutivos de direito do acusador, deve ele suscitar a dúvida, a qual deve ser resolvida em favor do acusado, de modo que a presunção de inocência constitui-se uma regra de julgamento consistente em um critério a ser seguido pelo julgador quando houver dúvida sobre fato relevante para a decisão da causa12.

A presunção de inocência como regra de julgamento, consubstanciada no in dubio pro reo, busca a prevalência da tutela da liberdade do indivíduo, afastando àquela concepção inquisitorial e de cunho civilista de que a dúvida deva ser um verdadeiro in dubio contra reum, de forma que denota uma contenção do poder do Estado de punir, na medida em que há efetiva atribuição ao autor da ação penal condenatória de demonstrar de forma indubitável, todos os aspectos do fato criminoso que imputa ao acusado, acarretando que a ausência de certeza acerca desse direito constitutivo, impõe a manutenção da situação de inocência e, via de consequência, exsurgindo a dúvida, absolve-se o acusado, consistindo essa absolvição consequência da citada regra de julgamento.

Nesta acepção, percebe-se que o princípio da presunção de inocência, como garantia inerente a qualquer cidadão, impõe que, dentro do processo penal, o acusado seja resguardado pelo mencionado princípio de maneira absoluta, afastando-se a sua aplicabilidade apenas em um campo formal e abstrato, de sorte que através da existência de um ônus total nas costas do acusador – posição adotada nesse trabalho –, resulta que essa atribuição integral quando não devidamente suprida, resultando dúvida irremovível, deve sempre favorecer o acusado, até porque, como ressalta Gomes Filho, é elementar que a presunção de inocência traça diretrizes ao julgador em caso de dúvida, constituindo garantia fundamental a ser observada no âmbito probatório13.

Ora, é de inexorável raciocínio que, como dito, o acusado, dentro do processo penal pátrio, a partir da óptica processual penal constitucional, apenas se opõe à pretensão acusatória, não lhe competindo fazer nenhuma contraprova, pois a ele, é possível  simplesmente negar, sem fundamento algum, os fatos que lhes são imputados, não acarretando em nenhuma veracidade do alegado pela acusação, ao contrário do que acontece no processo civil, quando, o qual, como mencionado, contenta-se com a verdade formal. Assim, devendo a acusação comprovar o fato criminoso com todas as suas circunstâncias possíveis e estando o réu sob o manto da presunção de inocência, o qual está intimamente ligado ao in dubio pro reo, a dúvida deve sempre vir em socorro ao acusado. Como bem salienta Afrânio Silva Jardim:

Assim, não nos parece cientificamente correto resolver a questão do ônus da prova na ação penal condenatória na dependência do que, neste ou naquele caso foi alegado pela acusação ou pela defesa. Repita-se: a defesa não manifesta uma verdadeira pretensão, mas apenas pode se opor à pretensão punitiva do autor. Urge, destarte, tratar o problema do ônus da prova dentro de um sistema lógico, em termos genéricos e não casuisticamente.

Pelo sistema proposto, ao réu sempre se atribuirá o benefício da dúvida, porque a dúvida demonstra apenas que a acusação não logrou convencer o órgão jurisdicional de que o acusado praticou a infração penal (tipicidade, ilicitude e culpabilidade), como afirmado na peça acusatória14.

Conforme se extrai do exposto, o princípio da presunção de inocência, no escopo processual penal constitucional, apesar da intima relação com o princípio do in dubio pro reo, o transcende, na medida em que não se trata de mera aplicação de uma regra a favor do acusado em juízo de análise da prova. Muito mais, exige-se prova certeira da responsabilidade criminal do acusado, de modo a não suscitar nenhuma dúvida acerca das nuances do fato criminoso, devendo a responsabilidade criminal ser provada acima de qualquer dúvida. Dito de outra forma: mediante a aplicação absoluta da presunção de inocência, a regra de julgamento não é simplesmente a preponderância da prova, mas a necessidade que o julgador tem de apenas responsabilizar alguém criminalmente quando houver demonstração, acima de qualquer dúvida razoável, desta responsabilidade criminal.

Dessa maneira, a presunção de inocência, como regra de julgamento, consiste no critério a ser adotado sempre que houver dúvida sobre fato relevante para a decisão do processo, de modo que, como garantia fundamental que é, para a imposição de sentença condenatória, é necessário provar, eliminando qualquer dúvida razoável, impondo a necessidade de certeza para alguém ser responsabilizado criminalmente .

Nessa órbita, definida a presunção de inocência como regra de julgamento, impende expor que a identificação dessa regra consiste, essencialmente, no in dubio pro reo, revelando um conteúdo garantista do ônus da prova, haja vista que nas situações em que o juiz deve aplicar a regra de julgamento, representa isso uma inegável garantia ao acusado, pois mais do que diretrizes voltadas ao juiz no momento de decidir sobre aspecto relevante dentro do processo, esse ônus objetivo – regra de julgamento –, é um mecanismo técnico-processual de realização da garantia política da presunção de inocência.

5 A RAIZ DA INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA

Em um primeiro plano, cabe rememorar que o Novo Código de Processo Civil (NCPC), em seu artigo 373, dispõe sobre o ônus da prova de modo expresso, aduzindo que cabe ao autor provar os fatos constitutivos de seu direito e, ao réu, eventuais fatos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito que o autor alega possuir15, todavia, não faz expressa menção à inversão do ônus da prova, apenas destacando, em seu parágrafo 3º16, a única possibilidade de inversão do ônus da prova, a qual será pactuada pelas partes, alterando a ordem prevista em lei, quando tratar-se de direitos disponíveis.

Assim, excluindo  a possibilidade da inversão acima mencionada, é sabido que em determinadas situações o juiz não angaria elementos suficientes aptos a sufragar um provimento jurisdicional e, no âmbito civilista, por necessidades econômicas e sociais, visando a proteção do consumidor, criou-se a figura da inversão do ônus da prova, na sua modalidade legal, positivada no artigo 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor (CDC), de forma que buscou-se o equilíbrio na relação processual, na qual figura o fornecedor e o consumidor, sendo este último, em regra, mais fraco.

Aduz artigo 6º, VIII, do CDC, o seguinte:

Art. 6º São direitos básicos do consumidor:

[...]

VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências;

[...].

Portanto, a partir da interpretação do artigo 333 do CPC e do inciso VIII do artigo 6º do CDC, chega-se a uma conclusão, qual seja, a técnica da inversão do ônus da prova, com vistas à proteção do consumidor, subverte a lógica probatória do mencionado artigo do antigo e NCPC, na medida em que a inversão levada a efeito pelo CDC libera o encargo probatório da parte autora em menoscabo do réu. Em outros termos: enquanto o NCPC aduz que cabe ao autor provar os fatos constitutivos de seu direito, o CDC preconiza que cabe ao réu, em situações excepcionais, o ônus de provar a não-ocorrência dos fatos constitutivos do autor e, cumulativamente, o ônus ordinário de comprovar a ocorrência de algum fato impeditivo, extintivo ou modificativo do direito do autor.

Todavia, para ser invertido o ônus da prova na seara cível, é necessário que dois requisitos sejam preenchidos cumulativamente ou alternativamente, quais sejam, o critério objetivo consistente na hipossuficiência e o critério subjetivo consistente na verossimilhança das alegações.

O critério objetivo consistente na hipossuficiência não está intimamente ligado à situação econômico-financeira do consumidor, e sim na sua vulnerabilidade dentro do processo cível, isto é, sua deficitária capacidade probatória ante o fabricante, de forma que tal critério visa a tutela de um direito material consumerista, vulnerabilidade essa que pode significar a derrocada da sua tese constitutiva de direitos, frente à sua (in)capacidade de produção de provas.

Já o critério subjetivo consistente na verossimilhança das alegações, está intimamente ligado com o direito material pleiteado em juízo, na medida em que esse requisito é preenchido quando o autor mediante as provas e alegações já irrogadas constitui uma probabilidade enorme de que sejam verdadeiras as suas alegações.

Dessa forma, a inversão do ônus da prova no âmbito civilista, está prevista em lei, de modo que deve ser levada a efeito apenas quando essa o autoriza e estiverem presentes cumulativamente ou alternativamente os requisitos acima explicitados, de forma que aquela só subsistirá quando o autor não consegue demonstrar os fatos constitutivos de sua pretensão e o réu não consegue demonstrar os fatos impeditivos, modificativos ou extintivos dessa mesma pretensão. Ou seja, o juiz frente a uma dúvida insuperável quanto aos fatos constitutivos não demonstrados pelo autor e não destruídos pelos fatos impeditivos, modificativos ou extintivos dessa mesma pretensão, mediante o preenchimento dos mencionados requisitos, para que não deixe de decidir – non liquet –, pode utilizar-se das regras positivadas da inversão do ônus da prova.

Nesse diapasão, a inversão do ônus da prova constitui-se uma regra de julgamento que será moldada diante do seguinte caminho: 1) O juiz, ao deparar-se com o processo, analisa as alegações tanto do autor quanto do réu, para formar seu convencimento e decidir a lide; 2) Caso chegue a um juízo de certeza, isto é, caso não tenha dúvidas acerca dos fatos trazidos a ele, deverá sentenciar favoravelmente àquele que está com o direito; 3) Caso contrário, ou seja, se ainda estiver dúvidas acerca do fato, analisará os requisitos objetivo e subjetivo a serem preenchidos pelo consumidor, os quais, caso constatados, darão supedâneo para deflagrar a inversão do ônus da prova; 4) Como resultado, se o réu destruir o direito constitutivo do autor, preenchendo o seu encargo de provar, que fora invertido,  a ação será julgada de forma desfavorável ao consumidor e, caso contrário,  caso o réu não angarie provas suficientes a preencher esse encargo,  a ação será julgada favoravelmente ao consumidor17.

Desse modo, definida a inversão do ônus da prova como regra de julgamento no processo civil, frente às demandas consumeristas, e destrinchando essa faceta da distribuição de cargas probatórias, faz-se necessário fazer um ligamento com o processo penal, ou seja, como essa regra de raiz civilista influencia a inversão do ônus da prova levada a efeito no âmbito penal nos foros do Brasil afora? A resposta é a seguinte: a divisão de cargas no processo penal, como dito, remonta às raízes civilistas do ônus da prova, as quais, inegavelmente, influenciaram nas regras de distribuição da carga probatória no processo penal pátrio, precipuamente porque a doutrina processual penal sobre o ônus da prova, muitas vezes fez apenas uma simples transposição da distinção entre fatos constitutivos, impeditivos e modificativos do direito, a qual foi elaborada pelos doutrinadores processualistas civis de forma que o CDC ao positivar a regra de inversão do ônus da prova, apenas corroborou as regras de distribuição já elencadas no antigo e NCPC, mas esquece-se os aplicadores da inversão do ônus da prova no processo penal que, no processo civil, e precipuamente no âmbito do direito do consumidor, a lide versa, em regra, sobre direitos disponíveis, ao contrário do  que ocorre no processo penal, que sempre versa sobre direitos indisponíveis18.

Ora, traçada a raiz da inversão do ônus da prova, cabe trazer que o presente estudo, como já dito, filia-se a corrente de que o réu nada tem a provar, sua única incumbência dentro de um processo penal dito acusatório é de opor-se à pretensão acusatória. É a acusação, o Ministério Público, que deve provar o que alegou, afastando-se, portanto, sob a óptica constitucional do artigo 156 do CPP19, as técnicas de distribuição civilista do ônus da prova, o que leva a seguinte indagação: mediante a temerária situação de estar-se diante de um direito indisponível – liberdade –, no processo penal, é compatível com a presunção de inocência uma inversão do ônus em decorrência da interpretação do mencionado dispositivo? Crê-se que a resposta é negativa.

 6 A REGRA DE JULGAMENTO NO PROCESSO PENAL E A INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA

De posse das análises das seções anteriores, apesar do esforço de pesquisa do presente estudo, não se encontrou na doutrina pátria algum doutrinador que afirme abertamente e veementemente ser possível a inversão do ônus da prova à maneira como é feita no processo civil, nem mesmo com a adaptação por meio dos princípios reitores do processo penal, sobretudo a presunção de inocência, todavia, malgrado a anemia teórica dessa temática, a aplicabilidade da inversão do ônus da prova é comum e não faltam exemplos, precipuamente por intermédio de entendimentos jurisprudenciais construídos a partir de regras da experiência, ficções, generalizações e presunções judiciais20.

A aplicabilidade da inversão do ônus da prova no processo penal, por vezes, à revelia do princípio da presunção de inocência e adotando fundamentos de cunho estritamente civilista, geram precedentes que se repetem cotidianamente sem uma maior reflexão acerca das consequências de sua aplicabilidade, tanto é que nem mesmo a doutrina, com seu papel relevante de interpretação e sistematização de normas vigentes e concepção de novos institutos jurídicos, reserva algumas linhas para tratar do assunto.

Como já afirmado, a regra de julgamento que vigora no processo penal pátrio é o in dubio pro reo, a qual é consequência direta do princípio da presunção de inocência, de modo que incumbindo à acusação todo o ônus da prova, não se pode admitir uma inversão legal do ônus da prova, isto é, não se pode admitir que, diante da natureza indisponível do direito que está em jogo no processo penal deflagrado, que se cogite uma regra legal de inversão do ônus da prova.

Ora, a presunção de inocência como regra de tratamento e, principalmente, como regra de julgamento consubstanciada no in dubio pro reo, tem auto aplicabilidade e força normativa imediata, de forma que, tomando-se como verdadeira a inocência do acusado, enquanto não existirem provas produzidas sob o crivo do contraditório, que derruam tal condição, não é possível inverter-se ônus da prova, sob pena de se estar não só ferindo a própria CF, como também, adotando regra oposta, o in dubio pro societate, o qual, com o devido respeito àqueles que pensam em sentido contrário, não existe substrato teórico nem legal apto a sustentá-lo.

A demonstrar a incompatibilidade da presunção de inocência com o chamado in dubio pro societate, impende trazer à baila os ensinamentos de Paulo Rangel citado por Aury Lopes jr, o qual assevera que:

[...] o chamado princípio in dubio pro societate não é compatível com o Estado Democrático de Direito, onde a dúvida não pode autorizar uma acusação, colocando uma pessoa no banco dos réus [...] O Ministério Público, como defensor da ordem jurídica e dos direitos individuais e sociais indisponíveis, não pode, com base na dúvida, manchar a dignidade da pessoa humana e ameaçar a liberdade de locomoção com uma acusação penal [...] não há nenhum dispositivo legal que autorize esse chamado princípio in dubio pro societate. O ônus da prova, já dissemos, é do Estado e não do investigado [...].21  

Assim, é perceptível que diante da presunção de inocência, como regra de julgamento consubstanciada no in dubio pro reo, a qual, diante de sua natureza constitucional não pode ser relativizada, sendo a inversão do ônus da prova no processo penal uma verdadeira inversão contra o réu, consubstanciada no in dubio pro societate, o qual além de não ter substrato legal, é incompatível com a estrutura de cargas probatórias definida pela presunção de inocência, a qual, como já dita, impõe nas costas do acusador a demonstração de todo o fato criminoso, com todas as suas circunstâncias.

Desta sorte, é de inexorável raciocínio que diante de uma dúvida, ou insuficiência probatória por parte da acusação a regra de julgamento a ser aplicada imediatamente é o in dubio pro reo e não simplesmente inverter-se o ônus da prova com intuito de criar um prejuízo processual ao acusado consubstanciado em uma potencialidade de risco de uma sentença condenatória, de forma que como aduz Aury Lopes Jr “o problema da carga probatória é, na realidade uma carga para o juiz, proibindo-o de condenar alguém cuja culpabilidade não tenha sido completamente provada”22.

Arrematando: diante da regra de julgamento consubstanciada no in dubio pro reo não há possibilidade de inversão do ônus da prova no processo penal com intuito de condenar o acusado, haja vista que o provimento jurisdicional condenatório só pode manter-se enquanto não surgir uma prova que crie uma dúvida fundada, de modo que o in dubio pro reo, corolário da presunção de inocência, constitui-se como um critério pragmático para a solução de uma incerteza processual, de modo que a inversão do ônus da prova dentro do sistema probatório penal subverte essa regra de julgamento, construindo presunções de caráter inquisitorial e regras eminentemente incompatíveis com os ditames constitucionais.

7 A IMPOSSIBILIDADE DE FLEXIBILIZAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA EM FACE DA INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA

O princípio da presunção de inocência, como dito, é um dos princípios centrais do direito penal e processual penal, sendo um princípio fundamental de civilidade, como explica Luigi Ferrajoli “representa o fruto de uma opção garantista a favor da tutela da imunidade dos inocentes ainda que ao custo da impunidade de algum culpado”.23Assim, a culpa e não a inocência é que deve ser demonstrada, haja vista que esta é presumida desde o início, devendo-se em juízo assegurá-la ao cidadão até que haja prova capaz de rasgar esse manto, de forma a aplicar, corretamente, sem atropelo da CRFB, a repressão estatal.

Percebe-se, portanto que a presunção de inocência como regra de julgamento consubstanciada no in dubio pro reo, tendo suma importância na defesa social, precipuamente porque erigida à patamar constitucional, demonstra que levar a efeito a inversão do ônus da prova no processo penal, em face da incumbência da acusação dentro de um processo acusatório, seria um ferimento frontal dos direitos constitucionais há muito conquistados à custa de muitas vidas e deliberações, sendo estes heranças irrenunciáveis de vários séculos de afirmação24.

Inverter o ônus da prova é derruir a presunção de inocência, tendo em vista que essa como regra de julgamento no processo penal condenatório, caso sofra alguma alteração concernente a distribuição do ônus da prova, a qual deve ser pautada pelo princípio acusatório e a incumbência da acusação neste, feriria a regra constitucionalmente já instituída, de forma que como aduz Gustavo Henrique Badaró “a presunção de inocência possui hierarquia constitucional, pelo que não pode ser alterada por nenhuma lei, posto que seria inconstitucional [...] a presunção de inocência é cláusula pétrea”25.

De maneira prática, quando se cogita uma inversão do ônus da prova, pautado no artigo 156 do CPP, sob uma óptica estritamente civilista e à revelia dos princípios fundantes do processo penal, estar-se-á flexibilizando a presunção de inocência, na medida em que libera a carga probatória das costas do acusador e as coloca nas costas do acusado, de modo que caso este não cumpra seu encargo, potencializa a possibilidade de um decreto condenatório, isto é, caso este não comprove sua inocência, a qual deveria ser presumida, é considerado culpado, de maneira que essa faceta inquisitória subverte o princípio da presunção de inocência esculpido ao longo de décadas e positivado na CRFB.

É perceptível que a submissão de uma pessoa à jurisdição penal do Estado o coloca em uma situação no mínimo conflitante, a qual constitui uma polarização entre a pretensão punitiva estatal, exercida por meio de uma acusação inicial e a necessidade de resguarda-se o jus libertatis titularizado pelo acusado, de maneira que para repressão estatal seja concretizada é necessário um processo penal e dentro deste as regras do jogo devem ser respeitadas, dentre elas a presunção de inocência, a qual só será retirada do acusado quando a acusação lograr êxito, por meio de sua incumbência probatória, de demonstrar aquilo que afirmou inicialmente, isto é, a ocorrência de um crime com todos as suas elementares e circunstâncias.

Ora, o ônus da prova, como várias vezes dito no presente estudo, é todo da acusação, de forma que a regra do artigo 156 do CPP, a qual serve de supedâneo para a aludida inversão do ônus da prova, deve ser lida em conjugação ao artigo 41 do CPP e harmonizada com a regra de julgamento consubstanciada no in dubio pro reo, de maneira que é imperioso o raciocínio que não parece cientificamente correto resolver um processo criminal, na dependência da (in)capacidade probatória do réu, o qual está sob o manto da presunção de inocência durante todo o processo criminal, de forma que deve-se repugnar a inversão do ônus da prova em um processo penal condenatório, de maneira a preservar um sistema lógico sob a óptica da CRFB e não a implantar, casuisticamente, facetas inquisitoriais, o que levaria, inevitavelmente, a uma insegurança judicial e a um estado de arbitrariedades dentro do processo penal.

Entretanto, apesar do esforço do presente estudo, a inversão do ônus da prova vem ganhando força cotidianamente nos tribunais Brasil afora, de modo que a presunção de inocência é cada vez mais relativizada, chegando-se ao ponto da situação de Alípio, cuja história é contada por Santo Agostinho, o qual é citado por Alexandre Morais da Rosa:

[...] Alípio, pois, passeava diante do tribunal, sozinho, com as tábuas e o estilete, quando um jovem estudante, o verdadeiro ladrão, levando escondido um machado, sem que Alípio o percebesse, entrou pelas grades que rodeiam as ruas do banqueiro, e se pôs a cortar seu chumbo. Ao ruído dos golpes, os banqueiros que estavam em baixo alvoraçaram-se, e chamaram gente para prender o ladrão, fosse quem fosse. Mas este, ouvindo o vozeiro, fugiu depressa, abandonando o machado para não ser preso com ele. Ora, Alípio, que não o vira entrar, o viu sair e fugir precipitadamente, Curioso, porém, saber a causa, entrou no lugar. Encontrou o machado e se pôs, admirado a examiná-lo. Bem nessa hora chegam os guardas dos banqueiros, e ao o surpreenderem sozinho, empunhando o machado, a cujo golpes, alarmados haviam acudido. Prendem-no, levam-no, e gloriam-se diante dos inquilinos do fato de ter apanhado o ladrão em flagrante, e já o iam entregar aos rigores da justiça [...]26   

No caso ilustrativo acima, é um típico caso em que a jurisprudência aplica a inversão do ônus da prova no processo penal, com a fórmula quase que trivial de que a circunstância de o agente ser encontrado na posse da coisa delituosa logo após ou momentos depois do cometimento do crime, presume-se seja ele o autor da subtração, de maneira que aplica-se o artigo 156 do CPP à luz de uma presunção de culpabilidade e não de uma presunção de inocência, de modo que, nesses casos, por vezes, jogado nas costas do acusado o encargo de provar que não é o autor da subtração, logo, provar sua inocência, caso não tenha ele a capacidade probatória suficiente para derruir aquilo que a própria acusação afirmou, é condenado, com base em uma inversão descabida do ônus da prova, pois, por vezes, a sua inocência é conhecida apenas por ele, tendo como prova apenas as suas palavras.

Como se percebe, a inversão do ônus da prova no processo penal, acaba tendo o condão de liberar das costas do acusador a comprovação de um fato típico, ilícito e culpável, com todas as suas circunstâncias relevantes, de maneira que derrui o fato de que ao réu caberia apenas opor-se à pretensão acusatória, precipuamente porque é parte hipossuficiente dentro do processo penal, haja vista que enfrenta o rolo compressor Estatal, denotando uma subversão do princípio da presunção de inocência, violando frontalmente a CRFB, sendo a inversão do ônus da prova no processo penal condenatório uma verdadeira flexibilização do princípio da presunção de inocência, o que, ao ver desse estudo, não pode vingar dada a natureza  e substrato desse princípio.

É necessário que haja maturidade jurídica para implantarmos necessariamente um processo penal fundado no princípio acusatório, onde a presunção de inocência seja garantida ao acusado, afastando-se facetas inquisitoriais como a inversão do ônus da prova em um processo penal condenatório, de modo a respeitar os ditames estabelecidos pela própria CRFB, a qual, como dito, consagrou como sistema processual penal, o acusatório, o qual está fundado no princípio acusatório e revestido de outros princípios inerentes ao processo penal pátrio, dentre eles, o princípio da presunção de inocência.

Portanto, o processo penal como garantia, precisa ser levado a sério, sob pena de “se continuar a tratar a Inocência como figura decorativo-retórica de uma democracia em constante construção e que aplica, ainda, um processo penal do medievo, cujo efeitos nefastos se mostram todos os dias”27.

Assim é perceptível que diante das premissas levantas e, precipuamente, sob a óptica constitucional do processo penal, é evidente que a inversão do ônus da prova contraria o princípio da presunção de inocência, de modo que quando aplica-se tal procedimento, na verdade está se dizendo: “A acusação não logrou êxito até o momento na comprovação de um fato típico, ilícito e culpável, com todas as suas circunstâncias relevantes, de modo que caso o acusado não derrua esta mera alegação, será condenado, instaurando-se, portanto, uma presunção de culpabilidade”.

Desta feita, essa última seção se dispôs a apresentar o substrato teórico que sustenta a posição de que não é possível haver uma flexibilização do princípio da presunção de inocência em face da inversão do ônus da prova, de modo que trabalhou-se com as premissas já levantas ao decorrer do estudo, principalmente com a regra e julgamento consubstanciada no in dubio pro reo e o papel da presunção de inocência dentro de um processo penal dito acusatório, de forma que um processo penal deflagrado deve ser percorrido não como um mero jogo de cena, não como um mero caminho para se chegar a uma pena, e sim um processo penal como garantia, no qual devem ser respeitados os princípios fundantes deste e, principalmente, o vilipendiado princípio da presunção de inocência que está cravado na Constituição da República Federativa do Brasil.

8 CONCLUSÃO

Dentro da realidade jurídica brasileira, tem-se que, no fundo, o sistema processual pátrio é um sistema acusatório não puro, ortodoxo, mas um sistema acusatório com vestígios de inquisitivo, pois ainda há certas práticas inquisitoriais, como por exemplo, a produção ex officio de provas pelo juiz. Entretanto, apesar dessas facetas inquisitivas, é fato insofismável que a CRFB consagrou o princípio acusatório, cujo resultado é um processo efetivamente justo, de partes, caracterizado pela rígida separação de funções de investigar, acusar, defender e julgar, configurando, destarte, verdadeira oposição ao desvalor do processo inquisitivo e, via de consequência, a instituição de um sistema acusatório.

Assim, consagrado o princípio acusatório, não há uma verdadeira distribuição de provas dentro do processo penal pátrio, isto é, não há cargas probatórias impostas ao acusado, precipuamente quando se está diante do princípio da presunção de inocência, devendo-se fazer uma interpretação constitucional do artigo 156 do CPP, preconizando que está totalmente na mão do acusador provar o fato típico, ilícito e culpável com todas as suas circunstâncias, de forma que ao réu cabe apenas opor-se à pretensão acusatória, precipuamente porque é parte hipossuficiente dentro do processo penal, haja vista que enfrenta o rolo compressor Estatal, que o quer ver sujeito ao seu aparato de persecução penal, de modo que o artigo 156 do Código de Processo Penal encontra-se, em muito, equivocado, haja vista sua raiz estritamente civilista, à revelia dos postulados constitucionais que pautam o processo penal pátrio.

Instituído o sistema acusatório, a incumbência da acusação dentro de um processo penal acusatório, é de todo oportuno que a regra de julgamento, consequência direta da presunção de inocência, consubstanciada no in dubio pro reo, é  consistente no critério a ser adotado sempre que houver dúvida sobre fato relevante para a decisão do processo, de modo que, como garantia fundamental que é, para a imposição de sentença condenatória, é necessário provar, eliminando qualquer dúvida razoável, impondo a necessidade de certeza para alguém ser responsabilizado criminalmente.

Todavia, apesar das regras tecnicamente traçadas, no cotidiano forense é levado a efeito uma aplicação do artigo 156 do CPP de forma inquisitorial, em que justifica-se uma inversão do ônus da prova de maneira descabida, liberando das costas do acusador uma carga probatória que por força constitucional lhe pertence e a coloca nas costas do acusado, de modo a instaura-se, na verdade uma presunção de culpabilidade, onde o acusado deve comprovar sua inocência em juízo, ferindo, frontalmente a Constituição Federal.

Dessa forma, dentro da realidade jurídica brasileira, inegável, ao menos tecnicamente que, quando se fala em inversão do ônus da prova, estar-se-á remontando as raízes de cunho estritamente civilista, com regras incompatíveis com a presunção de inocência e a regra de julgamento consubstanciada no in dubio pro reo, na medida em que com a aplicação desta faceta inquisitória dentro do processo penal acusatório, declara-se implicitamente, por vezes, a insuficiência probatória da acusação em demonstrar a ocorrência de um de um fato típico, ilícito e culpável, com todas as suas circunstâncias relevantes, de modo que ao inverter-se o ônus da prova, subverte-se a regra de julgamento e declara-se, na verdade, uma presunção de culpabilidade, ao contrário da presunção que reza a CRFB, qual seja, a presunção de inocência.

Todavia, apesar da aplicabilidade cotidiana da inversão do ônus da prova, é necessário que, apesar da tarefa hercúlea de presumir a inocência, haja maturidade jurídica para se implantar necessariamente um processo penal fundado no princípio acusatório, afastando a manutenção de uma mentalidade inquisitória, onde a presunção de inocência seja garantida ao acusado em um processo penal condenatório, de modo a respeitar os ditames estabelecidos pela própria Constituição da República Federativa do Brasil.


Notas e Referências:

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 SANTO AGOTINHO. Confissões. Trad. J. Oliveira Santos. São Paulo: Martin Claret, 2002  apud ROSA, Alexandre Morais da. Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos. 2. ed., rev. e ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.


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Carlos Augusto Ribeiro é Advogado Criminalista. Pós-graduando em Ciências Criminais pela Faculdade CESUSC. Membro da Comissão de Assuntos Prisionais da OAB/SC. Membro da Associação dos Advogados Criminalistas de Santa Catarina. Email: crb1.adv@gmail.com.

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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