Por Naiara Czarnobai Augusto – 03/12/2016
Vivemos na segunda fase da pós-modernidade, a digitalidade. Estamos na quarta revolução industrial, a conhecida internet industrial. Já percebemos que a força bruta de trabalho está a ser substituída por invenções robóticas, mais eficientes, menos suscetíveis a falhas, e o principal atrativo: independentes de encargos trabalhistas e previdenciários para seus “empregadores”.
A inteligência artificial, que antes poderia ser implementada apenas em atividades automatizadas, tem conquistado outros lugares. Como exemplo, a criatura Pepper, um robô de um metro e meio de altura e 28 kgs, tão fofo como uma criança, e capaz de se sensibilizar quando alguém perto manifesta choro ou riso. Nítida junção entre raciocínio lógico e capacidade emocional.
Parece uma tecnologia inacessível, mas nossos celulares já disponibilizam assistentes pessoais, como a Siri da Apple, que interage com o usuário.
De acordo com o desenvolvedor do Pepper, a tecnologia empregada permite reconhecer emoções por meio de mudanças de expressões faciais e entonação de voz. Sua função pode ser de atendente em lojas, vendedor, professor e informante. Seu criador garante, com confiabilidade, a possibilidade de compreensão de sentimentos, o que os humanos ainda não conseguem fazer com precisão.
Afinal, quem nunca se deparou em uma discussão ou um entrave iniciado por uma simples falha de interpretação dos sinais emocionais enviados pelo outro interlocutor?! Quem nunca acreditou estar sendo duramente criticado por uma mensagem de whatsapp, quando o redator expunha seu ponto de vista da maneira mais gentil e compreensiva possível? No território das emoções, somos tão ignorantes quanto os paleantropologistas alegam terem sido os neandertais.
Cientificamente, o cérebro primitivo estava situado mais próximo da medula espinhal, regulando funções básicas como respiração e controle de reações e movimentos. Não era um cérebro pensante. Já o neocórtex, com camadas externas, supostamente teria se desenvolvido a partir das emoções, e assim conhecido como a sede do pensamento, acrescentando um sentimento ao que pensamos sobre ele. Teríamos desenvolvido um cérebro emocional, para só após o racional. Na sequência, teriam se desenvolvido a capacidade de aprendizado e memorização.
Os sentimentos são expressão pura da sutiliza e da complexidade da vida emocional. São as emoções que ativam as outras áreas do cérebro para trabalhar, como o pensamento. Assim, criamos sentimentos sobre sentimentos, com um depósito de memória emocional. Fatos marcantes, tragédias, ápices de felicidade, permanecem em nosso subconsciente aguardando um gatilho para emitir sinais de alerta ou de familiaridade. Daí porque a importância das primeiras lembranças emocionais em nossa infância e adolescência, servindo de parâmetro para atitudes e desenvolvimento de vínculos na fase adulta.
São as ligações emocionais que nos fazem navegar em meio às decisões mais importantes da vida. Justamente esta expressão da consciência que nos leva a adotar postura moralmente aceitáveis e também a replicar comportamentos reprovados em termos éticos.
Daniel Goleman é um brilhante psicólogo que trabalha com a inteligência emocional. Seus principais livros tratam desta, e além disso, da inteligência social, multifocal e ecológica. Segundo o autor, é a multiplicidade da inteligência que permite a riqueza e individualidade de cada ser pensante, somada ao espectro de talentos natos.
O sucesso da obra inteligência emocional revela uma era sedenta por conhecer e dominar seus próprios sentimentos. É o que pode ser chamado de autoconsciência. Também é nítido e importante o reconhecimento de um sentimento quando ele ocorre. Assim, uma pessoa pode tomar decisões adequadas diante de um estado de raiva, euforia ou ataque, contendo a impulsividade quando necessário. Os crimes passionais são um exemplo de descontrole emocional súbito, levando o criminoso a cometer um ato que em outras circunstâncias jamais faria.
As emoções são essenciais para o bom desempenho da racionalidade. Quando nos depararmos entre sentimento e pensamento, será a inteligência emocional que conduzirá a tomada de decisão.
Como o Direito tem a função de regular comportamentos sociais, tornar-se cada vez mais evidente a necessidade de os operadores jurídicos desenvolverem habilidades para decifrar condutas e posturas para definir o que pode, ou não, ser admitido, e o que deve ser penalmente reprimido no terreno das emoções.
Neste ponto, deparamo-nos com dois problemas principais: a crescente digitabilidade da vida humana, e a utilização da inteligência artificial para atividades antes restritas ao homem.
Inicialmente, os usuários da Internet vêm um mundo de facilidades e praticidades. A geração do agora. “See now, buy now”. Não se admite mais esperar uma resposta de uma mensagem, se um e-mail não é encaminhado em minutos, se a compra não é formalizada já, e se a publicação e os “super likes” não acontecem com o imediatismo que se espera, está armada a tempestade.
Assim vamos olhando mais para os celulares do que para as paisagens. Preocupamo-nos em registrar mil imagens e publicar logo as fotos de nossas viagens, que sequer prestamos atenção ao momento que se vive no presente. A melhor comida não é a mais gostosa, é a mais atraente aos seguidores (food porn). A felicidade mais explícita é a fotografia mais retocada com efeitos do instagram. Compartilhamos nossos melhores momentos com desconhecidos e poupamos quem está perto da nossa melhor parte da vida.
Com a invenção da conectividade, estamos o tempo todo conectados no celular, no carro, no computador, na geladeira, etc. No entanto, a utilização dos recursos tecnológicos implica em ausência social. Além disso, vivemos em um fluxo acelerado de informações. Sabemos pouco sobre tudo. Estamos na era homem-rede-homem, com multiplicidade de estímulos.
Antes era cômodo ter um celular que fazia ligações em qualquer lugar, mas hoje é um recurso de primeira necessidade. O aparelho possui mil funções, das quais precisamos verdadeiramente de poucas. A cada lançamento, uma falsa sensação de necessidade imperiosa, o que não implica em ampliação das potencialidades humanas.
Percebe-se, apenas, a relativização do tempo e do espaço com o uso das tecnologias, a comunicação aqui e agora. Os prejuízos não são apenas para a ergonomia humana, mas também às relações sociais, aos impactos econômicos e à criminalidade facilitada pela identidade oculta na rede.
Uma criança tem substituída a experiência de conhecer e tocar em determinada espécie de planta quando procura na internet informações a respeito desta, e cria percepções a partir de experiência de terceiros que publicaram ou replicaram tal conteúdo explicativo. Substituímos as sensações de viver pela informação de vivência. Não é preciso ir até a Tailândia para descobrir tudo que existe naquele território.
Somos muito mais informados, em termos superficiais, do que grandes gênios da física, da filosofia e da matemática jamais foram em seu tempo. Steven H. continua a comunicar e a contribuir para a evolução científica graças ao uso da tecnologia, mas suas maiores descobertas antecedem o uso destas.
Não se ignora que existem novas formas de conceber o pensamento por meio da utilização de dispositivos de meios de comunicação. Também se deve reconhecer o valor do foco no ser humano, no eu, na evolução pessoal. O efeito apelativo e negativo se vislumbra quando o “eu” é a única preocupação em detrimento da coletividade, da essencialidade de conviver com outros, de aprender por meio do exercício das diferenças nas relações, e das diferentes formas de compreensões sobre determinado fato.
Somos interativos, mas não interagimos de fato pela internet. Somos projetistas da nossa própria estrutura de relações sociais, mas não construímos relações sólidas através da rede.
Os seres humanos são uma espécie social, dependem da construção subjetiva, mas nos tornamos nativos e imigrantes digitais sem valores moralmente consolidados. Não há preocupação em formação e consolidação da identidade na era digital. Tudo posso e tudo me convém.
Como o Direito vai regular comportamentos tão imprevisíveis e constantemente alternados com um misto cultural e social tão gritante?
O Direito existe para regulamentar comportamentos, para evitar o mal-estar social. Não é possível acompanhar a velocidade com que os padrões estão mudando a partir do uso das tecnologias. A criminalidade digital representa 90% do índice atual. Há, ainda, um percentual da deepweb, darkweb e dentre outras, que sequer conhecemos dada a escassez de recursos para a repressão dessas ações delituosas.
Dependemos de auxílio técnico de psicólogos e psiquiatras para compreender os estados emocionais humanos por trás de cada ação regulamentada pelo Direito, e ainda não conseguimos alcançar o êxito da verdadeira motivação de ir contra o sistema legal implantado.
As testemunhas estão sendo substituídas por documentos digitais, por dados extraídos de máquinas para comprovação de fatos antes relatados a partir de sensações e percepções. A dificuldade no descobrimento da verdade aumenta na medida em que possuímos menos contato com a realidade pessoal.
A pergunta que se repete e ecoa em nosso pensamento é como controlaremos e como consideraremos as ações eventualmente praticadas por detentores de inteligência artificial e emocional? Se as máquinas substituirão os humanos, como de fato já realizam em diversos setores da indústria, e em breve em lojas e estabelecimentos comerciais, como daremos conta de todas as implicâncias jurídicas dessa modalidade?
Se hoje o Pepper é capaz de avaliar emoções humanas, estima-se que em breve possa reagir conforme tais impressões. O custo de aquisição desse robô é de aproximadamente US$1.600 mais US$200 mensais para acesso à internet e seguro contra danos. Se ele pode substituir um humano em diversas tarefas, o valor é relativamente baixo para tamanho benefício.
Considerando que nos primeiros instantes em que disponível à venda no Japão, mais de mil unidades foram comercializadas, é possível presumir que diversas outras empresas concorrentes desenvolverão modelos semelhantes para poder agitar o mercado. Inclusive, será que teremos robôs violentos como nos filmes de ficção científica, os quais carecem de compreensão emocional?
A tecnologia tem avançado a passados largos, dominando a atuação humana e intervindo nas relações jurídicas. Estamos preparados para tal evolução? Haveremos de criar dispositivos penais para coibir praticas delituosas praticadas por detentores de inteligência artificial e emocional? Se depender da eficiência do Congresso Nacional, com projetos de lei que atravessam décadas, e com o Supremo Tribunal Federal assumindo uma postura de legislador, podemos esperar o circo pegar fogo. O Direito, mais uma vez, não vai socorrer quem dorme.
.
Naiara Czarnobai Augusto é Graduada em Direito e Especialista em Direito Penal e Processual Penal. Atualmente trabalha no Núcleo Técnico Especializado e no Núcleo de Inteligência do Centro de Apoio Operacional Técnico do Ministério Público de Santa Catarina, ao qual está vinculado o Laboratório de Tecnologia no Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (LAB-LD) do MPSC.
Imagem Ilustrativa do Post: Pepper at Opening Ceremony of the 28th Tokyo International Film Festival // Foto de: Dick Thomas Johnson // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/31029865@N06/22401702656
Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode
O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.