A insuficiência do Ministério Público na proteção da educação como direito fundamental

30/07/2019

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenador Assis de Oliveira

Não se desconhece a dificuldade histórica que foi elevar constitucionalmente o Ministério Público à condição de uma instituição independente encarregada da defesa da sociedade na fiscalização dos poderes constituídos (na ordem, e mais ou menos com esta força decrescente: Executivo, Legislativo e Judiciário).

A Constituição de 1988 bem cumpriu com essa missão ao definir o Ministério Público brasileiro de modo ímpar e singular no mundo nos seus artigos 127 e 129. Um Ministério Público verdadeiramente “jabuticaba”, com um grande colorido e sabor.

Todavia, decorridos quase trinta e um longos anos da denominada Constituição Cidadã o Ministério Público brasileiro ainda não consegue cumprir adequadamente muitos de seus encargos.

Nesse contexto, é possível de algum modo diagnosticar a existência de uma “crise”, que sempre deveria ensejar a possibilidade de sua transformação.

Em tempo de enfraquecimento do Estado e do serviço público de modo geral, não se precisa muito esforço para perceber que não foram poucas, e continuam sendo frequentes, as tentativas históricas de impor prejuízo e dificuldades ao funcionamento do Ministério Público brasileiro.

Sabe-se que a missão do Ministério Público é enorme e, quase sempre, incompatível com as limitações orçamentárias e contidas na própria Lei de Responsabilidade Fiscal. Ademais, as condições de maior ou menor estruturação dos Ministérios Públicos Estaduais dependem, em muito, da condição financeira do próprio Estado.

A equiparação do Ministério Público com o Poder Judiciário em garantias e prerrogativas, sem dúvida, foi e ainda é uma importante conquista pela qual lutaram gerações.

Ao contrário do Judiciário, que só tem um tipo de atuação (judicial), o Ministério Público necessita transitar do extrajudicial ao judicial, o que exige o cumprimento de plurais atribuições nas mais diversas áreas, da titularidade da ação penal à fiscalização dos direitos coletivos mais diversos.

Em suma, manter uma instituição voltada à fiscalização de todos os poderes constituídos em nome da sociedade civil não é missão das mais fáceis. Ao contrário, essa só se mantém graças à força da Constituição e, sobretudo, à força de reserva da sociedade, razão da existência do próprio Ministério Público.

Ainda que se reconheça os limites desta conjuntura, a continua luta pela sobrevivência político-jurídica do Ministério Público (muitas vezes necessárias pelos próprios méritos e acertos da instituição no cumprimento do seu papel institucional) não retira os equívocos das suas gestões e administrações, até mesmo porque, via de regra, essas não são conduzidas por gestores profissionais, mas por membros do próprio Ministério Público (parte deles, em verdade, na classe dos agentes políticos, já que os agentes administrativos, de regra, sequer participam do processo eleitoral interno da instituição, o que não deixa de ser um grave déficit democrático).

Um desses graves equívocos está retratado no título-denúncia deste artigo: As Promotorias de Educação não são uma prioridade no funcionamento humano e material do Ministério Público brasileiro.

Sim, a afirmação é forte, mas infelizmente verdadeira. O Ministério Público Estadual brasileiro, de modo geral, descumpre e não prioriza a estruturação de Promotorias de Educação com atribuição exclusiva, seja como órgãos de execução especializados locais ou regionais.

Respeitadas exceções pontuais e muito bem localizadas, as Promotorias de Educação são um apêndice das Promotorias especializadas diversas ou, na melhor das hipóteses, de Promotorias da Infância e Juventude, as quais, por sua vez, já tem trabalho de sobra na temática protetiva ou mesmo infracional. É assim que infelizmente nem se prioriza a educação e muito menos se cumpre a contento o comando constitucional da prioridade absoluta na estruturação das promotorias da infância e juventude (artigo 227 da Constituição).

Assim, o Ministério Público não destoa da posição infelizmente comum a outras instituições de não estabelecerem a questão da educação como uma prioridade no seu agir cotidiano, inclusive para que a importância dessa temática seja devidamente articulada com outras Promotorias afins (dentre as quais a infância e juventude, a saúde, a proteção do patrimônio público e combate à corrupção, entre outras).

Basta percorrer as páginas virtuais dos Ministérios Públicos Estaduais brasileiros, dos mais aos menos abastados, já que vivemos inseridos em um desequilíbrio federativo marcante, para perceber que são mínimas as Promotorias de Educação com atribuição exclusiva existentes em território nacional.

Por maior que seja a necessidade e a importância de outras áreas de atuação ministerial (sem dúvida, todas as demais áreas têm homogênea e equivalente importância), fiscalizar temas relacionados à educação não poderia ser um tema “vassalo” ou secundário a outros afazeres cotidianos na agenda do Ministério Público. Se isso já foi tolerável no passado, não mais deveria ser no presente, em especial diante de uma conjuntura em que o “mercado” avança na destruição dos “direitos humanos”, como bem denuncia a sabedoria de Franz Hinkelammert.  

Apostar na fiscalização da educação como política pública é uma necessidade de primeira dimensão, ainda mais em um país como o Brasil. Um país que vergonhosamente não erradicou o analfabetismo. Um país em que faltam vagas na educação infantil na esmagadora maioria dos Municípios. Um país onde os professores do ensino fundamental e médio não são valorizados e muitas vezes não tem carreiras suficientemente estruturadas (quando muito ganham um piso insuficiente e precário). Um país que drena escassos recursos públicos de transporte, uniforme, merenda escolar e outros bens e serviços com a corrupção. Um país que ainda tem um limitado acesso à universidade. Um país que, inclusive, não poucas vezes, prefere terceirizações e processos seletivos simplificados e que ainda teima em realizar concursos públicos para contratar os recursos humanos necessários para que a educação exista enquanto política pública básica e essencial. Por fim, um país que não tem bom desempenho nos exames internacionais e nacionais da educação, um país de muitos analfabetos funcionais, alguns curiosamente escolhidos para chefiarem poderes constituídos.

A propósito disso, o que diz o planejamento estratégico do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) especificamente sobre isso no seu “mapa estratégico nacional” (2020-2029) de missão, valores, visão, resultados para sociedade, processos integradores, e aprendizado e crescimento? Por mais que lá estejam genericamente considerados a “defesa dos interesses sociais”, a “inovação”, a “garantia da implementação de políticas públicas”, a defesa da “atuação ministerial integrada” e a “transversalidade dos direitos fundamentais”, inclusive a proposta para se “disseminar práticas de governança e gestão” e a preocupação com a própria “sustentabilidade em toda forma de atuação”, nada de específico consta em relação à educação.  

Ainda que no relatório do referido planejamento existam programas e indicadores direcionados à educação, que focam na questão do estímulo à educação integral, na necessidade de fiscalização dos recursos da educação e do próprio orçamento, de nada servem essas otimistas e abstratas previsões se não houver a compreensão de que, concretamente, a existência de órgãos de execução (sobretudo Promotorias de Justiça) é fundamental para que os resultados possam ser atingidos.

E as Corregedorias-Gerais que, como órgãos de orientação e fiscalização, recolhem dados e estatísticas, que visitam os órgãos de execução e avaliam a distribuição dos serviços, por que não apostam na mudança desse quadro? E o significado da “Carta de Brasília” de 2016 que, ao propor “modernização do controle da atividade extrajurisdicional pelas corregedorias do Ministério Público”, documento apresentado pelo próprio CNMP como “acordos de resultados firmado entre a Corregedoria Nacional e as Corregedorias das unidades do Ministério Público”, limitou-se a prever o reconhecimento de áreas prioritárias de atuação[1]?

Para dar uma amostragem ao tamanho do problema, vamos aos “exemplos” (na maior parte, maus exemplos) de alguns de diversos Estados brasileiros.  

O Ministério Público Gaúcho prevê um total de dez Promotorias Regionais de Educação. De longe, ainda que numa opção clara de reorganização espacial[2], parece ser o melhor estruturado em relação ao tema.

O Ministério Público do Rio de Janeiro, por exemplo, na sua capital, conta com três Promotorias de Educação com atribuição exclusiva e mais três outras Promotorias Regionais com atuação no tema. O Ministério Público do Ceará também conta com três unidades no seu Estado.

O Ministério Público do Maranhão conta com duas Promotorias com atribuição exclusiva na educação. O Ministério Público paranaense com apenas uma, mesma situação do Tocantins e de Minas Gerais!  

Há lugares que tem uma Promotoria para educação, mas que ainda acumula outras atribuições, como é o caso do Ministério Público Catarinense, em que a Promotoria de Educação da Capital é encarregada de zelar pelas fundações.

Já o Ministério Público Sul Mato-Grossense não tem nenhuma Promotoria com atribuição exclusiva na Educação!  Da mesma forma no Ministério Público Alagoano, onde pedidos de Promotores e Promotoras já tentaram sem sucesso (e aprovação no Colégio de Procuradores de Justiça) transforar uma Promotoria da Fazenda em Promotoria da Educação.

Diante dessa amostragem, propõe-se o constrangimento epistêmico próprio das perguntas necessárias: cadê o exemplo do Ministério Público brasileiro em reconhecer que a “educação” é o princípio e começo de tudo?

Não reconhecer isso é negar uma perspectiva melhor de futuro, mais do que isso, uma aposta na esperança de que o Ministério Público possa, de fato, dar o exemplo.

Afinal, como certa feita, em 2010, já bem questionava o então atuante Grupo Nacional de Membros do Ministério Público (GNMP), “cadê as Promotorias de Educação”[3]? Nove anos se passaram e pouco ou quase nada mudou. E isso que desde junho de 2013 o próprio Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais (CNPG) recomendou a criação de promotorias especializadas da educação[4]...

Como bem afirma João Paulo Faustinoni Silva, em sua dissertação de Mestrado denominada “O Ministério Público e a defesa do direito à educação”[5], não obstante, referida recomendação ainda não se tornou realidade em todos os Ministérios Públicos estaduais, mantendo-se, também no Ministério Público Federal, a organização das Procuradorias com atribuições cumulativas”.

Até quando?

 

Notas e Referências

[1] Entre as diretrizes estruturantes, conta: “estabelecimento de Planos, Programas e Projetos que definam, com a participação da sociedade civil, metas claras, precisas, pautadas com o compromisso da efetividade de atuação institucional em áreas prioritárias de atuação, valorizando aquelas que busquem a concretização de objetivos fundamentais da República e dos direitos fundamentais (artigo 3o da CR/1988)”.

[2] A propósito da regionalização como um dos caminhos possíveis para aperfeiçoamento do Ministério Público, consulte-se: BERCLAZ, Márcio Soares. MOURA, Millen Castro Medeiros de. Para onde caminha o Ministério Público. Disponível em:  https://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI60018,31047-Para+onde+caminha+o+Ministerio+Publico

[3] Cf. http://www.gnmp.com.br/publicacao/24/cade-as-promotorias-de-educacao

[4] Cf. https://www.cnpg.org.br/index.php/noticias-cnpg/2710-recomendacao-voltada-para-educacao-e-aprovada-em-reuniao-do-cnpg

[5] Cf. SILVA, João Paulo Faustinoni e. Ministério Público e a defesa do direito à educação: subsídios teóricos e práticos para o necessário aperfeiçoamento institucional. Dissertação (Mestrado)-Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. 226 p.

 

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