A inexistência do direito adquirido de poluir

26/08/2018

Introdução.

Discute-se, em matéria ambiental, a incidência do instituto do direito adquirido e do fato consumado, como meio de intervenção do direito civil na orbita do direito ambiental para manutenção das eventuais intervenções degradadoras do ambiente natural ou cultural realizadas no pretérito.

A sucessão de normas legais ao longo do tempo, a omissão do Poder Público na fiscalização ou na normatização das relaçãoes socioambientais e, a constituição de standards urbanísticos acabaram por conflitar com a concepção de Estado Verde, vigente nas sociedades modernas, especialmente a partir da conferência de Estocolmo, em 1972.

Não é incomum, portanto, a existência de conflitos envolvendo a aplicação de novas regras jurídicas de protação do meio ambiente em face de fatos socioambientais praticados, constituídos e consumados no passado, fruto de normas elaborados em momento cultural, político e social diferentes dos vivenciados pelas socidades modernas.

Eleva-se, no presente ensaio, a posição adotada pela jurisprudência brasileira acerca da aplicação dos institutos do direito adquirido e do fato consumado em matéria de direito ambiental. 

Direito Intertemporal Ambiental.

Questão de intenso debate no direito ambiental é a aplicabilidade da nova lei no tempo, frente às situações consolidadas ou em execução ambiental. É certo, conforme consta do art. 6º da Lei n.º 4.657/42 – Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro[1], que a lei nova não poderá retroagir para prejudicar o ato jurídico perfeito e o direito adquirido, mas a interpretação destas garantias constitucionais não é nem um pouco pacífica.

Art. 6º A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.                

  • 1º Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou.

Sobre o tema, o STJ estabeleceu que “inexiste direito adquirido a poluir ou a degradar o meio ambiente”[2].

A Segunda Turma do STJ (Superior Tribunal de Justiça) ao enfrentar o tema de construção de imóvel em região de praia fundamentou sua decisão na tese de que "décadas de uso ilícito da propriedade rural não dão salvo-conduto ao proprietário ou posseiro para a continuidade de atos proibidos ou tornam legais práticas vedadas pelo legislador, sobretudo no âmbito de direitos indisponíveis, que a todos aproveita, inclusive às gerações futuras, como é o caso da proteção do meio ambiente".

Segundo o relator, ministro Mauro Campbell Marques, o recurso especial foi interposto contra acórdão proferido pelo TRF-4 (Tribunal Regional Federal da 4ª Região) que reconheceu como irregular a construção de obra em “proximidade excessiva da linha do mar, ferindo e privatizando a área de praia”. Para o Tribunal federal, a construção é contrária à disposição expressa da lei 7.661⁄88, que fixa o PNGC (Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro), datado de 1988, ainda que regulamentado tão-somente em dezembro de 2004.

Em seu recurso o proprietário alegou que a licença para construção foi concedida em 1995, portanto antes da regulamentação da lei 7.661/88, o que lhe garantiria o direito de permanecer com a obra no local.

Para o Tribunal federal, construções de qualquer espécie na faixa de praia não podem ser toleradas por ofenderem a possibilidade de acesso de toda a sociedade ao local, considerado bem público.

O fato do alvará permitindo a construção ter sido concedido antes do decreto que regulamenta a lei 7.661/88 não pode ser um argumento considerado válido. Até porque, Estados e Municípios - com competência legislativa concorrente – sobre a matéria não poderiam, na falta de regulamentação federal, promover ações contrárias às preocupações traduzidas na lei que trata do gerenciamento costeiro.

O STJ (Superior Tribunal de Justiça) não acolheu o recurso interposto pelo proprietário e confirmou a ordem de demolição da obra e a recuperação da área, sob o entendimento de que esta foi construída em área de preservação permanente e sem a observância das exigências legais. Participaram do julgamento os ministros Cesar Asfor Rocha, Castro Meira, Humberto Martins, Herman Benjamin e Mauro Campbell Marques.

Dessa forma, o tempo mostra-se incapaz de curar ilegalidade ambientais de natureza permanente, pois parte dos sujeitos tutelados, as gerações futuras, carecem de voz e de representantes que falem ou não se omitam em seu nome. Edis Milaré[3] explica:

Por sua vez, cumpre ressaltar que as normas editadas com o escopo de defender o meio ambiente, por serem de ordem pública, tem aplicação imediata, vale dizer, aplicam-se não apenas aos fatos ocorridos sob sua vigência, como também às consequências e aos efeitos dos fatos ocorridos sob a égide da lei anterior.

Aspectos do direito intertemporal no Novo Código Florestal.

Dispõe o artigo 2º, parágrafo 2º, do novo Código Florestal - Lei 12.605/2012:

As obrigações previstas nesta Lei têm natureza real e são transmitidas ao sucessor, de qualquer natureza, no caso de transferência de domínio ou posse do imóvel rural.

O dispositivo legal, embora envolva aspectos relacionados à responsabilidade ambiental, demonstrando que a legislação ambiental adota a natureza propter rem; também fixa que sob o aspecto da responsabilidade civil, a recuperação de dano ambiental praticado em desfavor do meio ambiente não é irrito em relação ao tempo, pois, a obrigação de recuperar os danos persiste para os sucessor do imóvel, ainda que relacionados com ações pretéritas ou com as mudanças do ordenamento jurídico.   

A situação narrada pelo Novo Código Florestal foi sedimentada pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça – STJ no REsp 926.750/MG[4], cujo âmago do verbete delineia que  "ao adquirir a área, o novo proprietário assume o ônus de manter a preservação, tornando-se responsável pela reposição, mesmo que não tenha contribuído para o desmatamento."

                (...)

3. A existência de área de reserva legal no âmbito das propriedades rurais caracteriza-se como uma limitação administrativa necessária à tutela do meio ambiente para as presentes e futuras gerais e em harmonia com a função social da propriedade, o que legitima haver restrições aos direitos individuais em benefício dos interesses de toda a coletividade. 4. De acordo com a jurisprudência do STJ, a obrigação de demarcar, averbar e restaurar a área de reserva legal constitui-se uma obrigação proptem rem, que se transfere automaticamente ao adquirente ou ao possuidor do imóvel rural. Esse dever jurídico independe da existência de floresta ou outras formas de vegetação nativa na gleba, cumprindo-lhe, caso necessário, a adoção das providências necessárias à restauração ou à recuperação das mesmas, a fim de readequar-se aos limites e percentuais previstos na lei de regência.

A circunstância intertemporal da aplicação do direito ambiental se mantêm, ainda, em face da teoria do fato consumado. Segundo a jurisprudência do STJ REsp. 1.172.643/SC e REsp 1200904, é dever do adquirente revestir-se das cautelas necessárias quanto às demandas existentes sobre o bem litigioso e que a possibilidade do terceiro ter adquirido o imóvel de boa-fé não é capaz, por si só, de afastar a aplicação das regras de direito ambiental, cuja natureza jurídica demanda garantia de um meio ambiente sádio e equilibrado para as presente e futuras gerações.

ADMINISTRATIVO. AMBIENTAL. PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. EDIFICAÇÃO EM ÁREA DE PROTEÇÃO PERMANENTE. PROXIMIDADE A LEITO DE RIO. CONSTATAÇÃO DE ATIVIDADE CAUSADORA DE IMPACTO AMBIENTAL. CASAS DE VERANEIO. IMPOSSIBILIDADE DE ALEGAÇÃO DE FATO CONSUMADO EM MATÉRIA AMBIENTAL. INEXISTÊNCIA DE AQUISIÇÃO DE DIREITO DE POLUIR. JURISPRUDÊNCIA DO STJ. PROVIMENTO DO RECURSO ESPECIAL. SUPOSTA VIOLAÇÃO AO ART. 557 DO CPC. CONTROVÉRSIA IDÊNTICA A OUTRAS JULGADAS COLEGIADAMENTE PELA TURMA. ALEGAÇÃO DE INCIDÊNCIA SUPERVENIENTE DA NOVA CODIFICAÇÃO FLORESTAL. FALTA DE PREQUESTIONAMENTO. PRECLUSÃO DO DIREITO. AUSÊNCIA DE APRESENTAÇÃO DE CONTRARRAZÕES EM RECURSO ESPECIAL[5]. (g.n.)

Conclusão.

Resulta, dada a natureza jurídica da disciplina de direito ambiental, um direito difuso e de terceira geração, pertencente ao ramo do direito público; responsável por tutelar um complexo de princípios e normas coercitivas reguladoreas das atividades humanas que, direta ou indiretamente, passam a afetar a sanidade do ambiente em sua dimensão global, visando a sustentabilidade para as presente e futuras gerações[6] (MILARÉ, 2015), que a aplicação das normas jurídicas de direito civil e processual civil, relativas ao direito adquirido e ao fato consumado não se aplicam as hipóteses em que o bem tutelado seja de natureza socioambiental, posto que a garantia ao meio ambiente sustentável, para as presentes e futuras gerações, exige o sacrifício do direito individual em favor do interesse e do direito coletivo. 

 

Notas e Referências

[1] Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del4657compilado.htm. Acesso em 24 de ago. 2018.

[2] Disponivel em https://observatorio-eco.jusbrasil.com.br/noticias/2952936/nao-ha-direito-adquirido-de-poluir-ou-degradar-o-meio-ambiente. Acesso em 24 de ago. 2018.

[3] MILARÉ, Edis. Direito do ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015

[4] Disponível em https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/607864288/recurso-especial-resp-1317304-mg-2012-0078976-6?ref=topic_feed. Acesso em 24 de ago. 2018.

[5] Disponível em http://blog.hidrosuprimentos.com.br/teoria-do-fato-consumado-inexiste-direito-adquirido-de-poluir-o-meio-ambiente-diz-o-stj/. Acesso dia 24 ago. 2018.

 

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