A Lei 9.514/1997 que dispõe acerca da alienação fiduciária tem dado relativa segurança jurídica aos Credores Fiduciários (o dono do capital), todavia, a referida Lei tem sido usada, rotineiramente, fora dos trilhos da sua intenção originária, atraindo muitas externalidades negativas para o mundo dos negócios, para a vida social e familiar.
Do mesmo modo, é de se indagar sobre o procedimento para a transferência do domínio como causa do inadimplemento, que se dá pela execução extrajudicial, sem a observação do princípio do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. A resposta a esta questão, sobre a constitucionalidade do rito extrajudicial, virá com o julgamento do Tema 982-STF[i].
No presente texto colocamos em discussão dois pontos fundamentais, a saber: (i) o uso enviesado da Lei de Alienação Fiduciária e suas consequências; (ii) a execução extrajudicial e o questionamento quanto à sua constitucionalidade, diante de outros grandes princípios constitucionais.
Quanto à primeira abordagem, a respeito do uso enviesado da Lei de Alienação Fiduciária, parte-se da premissa que o propósito da Lei em comento é a de atender o Sistema Financeiro Imobiliário, utilizando-se do mútuo, principalmente o derivado de Instituições Financeiras, para aquisição de bens imóveis (casa própria ou imóvel para o fomento da atividade econômica onde o empresário fixa o seu estabelecimento).
Ocorre que em razão de interpretações equivocadas, não apenas dos Tribunais, mas dos Sujeitos beneficiários de um mercado clandestino, a finalidade originária tem sido desfigurada, de modo a fomentar o uso indiscriminado da cláusula de alienação fiduciária, fora dos trilhos legais.
Tome-se, como exemplo, o mútuo decorrente de práticas usurárias, e diante da figura do sujeito que denominamos “agiota”. Prato cheio para simulação de Escrituras Públicas de Confissão de Dívida, onde o agiota cobra o que quer e como quer, e já computa os juros na respectiva confissão de dívida, sem atendimento aos demais requisitos de validade para a aplicação da cláusula de alienação fiduciária.
Presume-se aqui, a utilização maliciosa do instituto da alienação fiduciária, com consequências gravíssimas ao mercado, a higidez da lei, e as pessoas submetidas ao processo expropriatório extrajudicial, sem observação dos grandes temas da Constituição da República.
No período pandêmico, por exemplo, muitos pequenos empresários emprestaram dinheiro de particulares, a título de capital de giro, a juros elevadíssimos (extorsivos), e entregaram seus imóveis em garantia fiduciária, inclusive os de moradia. Com o prolongamento da pandemia, ficaram à mercê de atos de expropriação indevida de bens pelo uso distorcido da respectiva garantia.
É tão importante a reflexão sobre essa questão, no contexto da compreensão sobre a existência de limites legais, que uma vez rompidos no cotejo da prática usurária, (simulada, conhecida, vista e presumida), ocasionam tantos danos pessoais, familiares e a sociedade, que já não é mais possível fechar os olhos para tantas evidências.
Cabe ao Terceiro participante do Leilão Extrajudicial investigar a origem da submissão do bem a tal procedimento expropriatório, e não adquirir o respectivo imóvel, por essa via, quando se deparar com vícios de origem, facilmente detectáveis pela simples leitura da Escritura Pública de Confissão de Dívida. É certo que a sua boa-fé estará comprometida, se não avaliar bem o caso concreto e não atestar se há ação de nulidade ajuizada pelo proprietário expropriado do seu bem pelo rito do procedimento extrajudicial.
Em absoluto, não se recomenda a aquisição em circunstâncias duvidosas. Obviamente, o financiamento imobiliário para a aquisição da casa própria não está enquadrado neste mesmo raciocínio, o que serve para as hipóteses fora do trilho, a exemplo do empréstimo para fomentar o capital de giro empresarial, tanto os decorrentes de mútuos bancários como os de mútuos por particulares, em que se comprometerá o imóvel da própria atividade ou único bem imóvel de moradia.
Esse tema merece profunda e nova reflexão, especialmente pelos juízes, pois somente será possível fazer justiça no caso concreto quando identificar o negócio com a interpretação restritiva da Lei em comentário e segundo a sua intenção originária, cujas soluções sob este prisma, espraiarão todos os efeitos e externalidades positivas, que a decisão judicial poderá agregar, restringindo-se o mercado clandestino e ilegal do acesso e do uso da Lei de Alienação Fiduciária.
O resultado neste sentido evitará novas práticas condenáveis e que submetem pequenos empresários em crise, a empréstimos impagáveis, comprometendo valioso patrimônio entregue a valor vil.
As peculiaridades do caso concreto devem ser bem compreendidas, especialmente quanto estiverem ligados ao contexto acima e/ou ao Tema 982/STF, que passa ser aqui comentado.
O Tema 982 do STF, afetado no Recurso Extraordinário de nº 860.631, manejado contra acórdão da Segunda Turma do TRF3, que atualmente aguarda julgamento, teve sua repercussão geral reconhecida no dia 02/02/2018.
No mérito do referido recurso alega-se, principalmente, a violação ao artigo 5º, XXXV, LIII, LIV e LV, da Constituição da República, apontando que: “[...] a execução extrajudicial no Sistema Financeiro Imobiliário, prevista pela Lei 9.514/1997, viola os princípios do devido processo legal, da inafastabilidade da jurisdição, da ampla defesa e do contraditório, na medida em que permite ao credor fiduciário a execução do patrimônio do devedor sem a participação do Poder Judiciário e, consequentemente, sem a figura imparcial do juiz natural, o que se traduziria numa forma de autotutela, repudiada pelo Estado Democrático de Direito [...][ii]”.
Confira-se a ementa do Tema 982:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. PROCESSUAL CIVIL E CONSTITUCIONAL. SISTEMA FINANCEIRO IMOBILIÁRIO. EXECUÇÃO EXTRAJUDICIAL. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE BEM IMÓVEL. PRINCÍPIOS DA INAFASTABILIDADE DA JURISDIÇÃO, DO DEVIDO PROCESSO LEGAL, DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. DIREITOS FUNDAMENTAIS À PROPRIEDADE E À MORADIA. QUESTÃO RELEVANTE DO PONTO DE VISTA JURÍDICO, ECONÔMICO E SOCIAL. EXISTÊNCIA DE REPERCUSSÃO GERAL.
Neste contexto, cabe mencionar que o STF construiu o Tema 982 diante da preocupação corrente com o desvirtuamento da finalidade da Lei de Alienação Fiduciária, que deveria, na verdade, servir ao fomento para a aquisição de imóvel (principalmente da casa própria), e não para mútuos decorrentes de capital de giro ou garantia de outras modalidades de empréstimos entre particulares que não visam a aquisição.
Se a discussão do capital de giro implica em reflexão sobre o desvirtuando da lei, o que dizer do empréstimo particular baseado em possível prática de agiotagem, nos termos da primeira parte deste estudo.
Ademais, o RE em questão, suscita a inconstitucionalidade da execução extrajudicial, comparando-a ao procedimento previsto no Decreto-Lei 70/1966, também submetido a julgamento pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal sob a sistemática da repercussão geral (RE 627.106, Tema 249).
Ressalta-se, ademais, relevante distinção tecida no Acórdão em questão, acerca da matéria versada nos autos do RE 860.831 e da matéria tratada no RE 627.106 - Tema 249 da repercussão geral do Supremo Tribunal Federal. Confira-se:
“[...] Cumpre destacar que, nada obstante recaia a discussão sobre a constitucionalidade da execução extrajudicial em contratos imobiliários, a matéria versada nos autos não guarda identidade com a tratada no RE 627.106 - Tema 249 da repercussão geral do Supremo Tribunal Federal. Naquele leading case, discute-se a recepção constitucional do Decreto Lei 70/1966, que prevê a execução extrajudicial para dívidas contraídas no regime do Sistema Financeiro Habitacional, com garantia hipotecária, situação diversa da presente demanda, cujo objeto é a constitucionalidade da Lei 9.514/1997, que prevê a possibilidade de execução extrajudicial nos contratos de mútuo pelo Sistema Financeiro Imobiliário, com alienação fiduciária de imóvel. Nessa última modalidade de contrato não há transmissão da propriedade ao devedor, mas tão somente transferência da posse direta do bem. O credor fiduciário, portanto, não se imiscui no patrimônio do devedor para excutir bem de propriedade alheia, uma vez que o imóvel permanece sob propriedade da instituição financeira até a quitação do contrato pela outra parte, o que se traduz em diferença substancial entre as relações jurídicas de hipoteca e de alienação fiduciária para a finalidade de análise à luz dos princípios constitucionais invocados. [...]”
O reconhecimento da relevância deste assunto pelo STF, a ponto de repercutir na caracterização da repercussão geral, decorre de infinitas batalhas jurídicas travadas nos Tribunais sobre o rito da execução extrajudicial, e das fundadas divergências doutrinárias.
Ao analisar a RCL 53058, em 02 de maio de 2022, o Ministro Alexandre de Moraes (Relator) decretou, em decisão monocrática, a cassação do ato reclamado, com a posterior suspensão do andamento do REsp 1.906.521-MS, haja vista que este versava sobre a constitucionalidade da Lei 9.514/1997, bem como sobre a direta ofensa ao artigo 5º, XXXV, da Constituição da República.[iii]
Confira-se o trecho da r. decisão:
“Desse modo, o caso possui estrita aderência às balizas do Tema 982-RG (“discussão relativa à constitucionalidade do procedimento de execução extrajudicial nos contratos de mútuo com alienação fiduciária de imóvel, pelo Sistema Financeiro Imobiliário - SFI, conforme previsto na Lei n. 9.514/1997”), motivo pelo qual deveria o Juízo da origem ter sobrestado o Recurso Extraordinário até o julgamento definitivo do supracitado Tema. Merece reparado, portanto, o ato reclamado.”[iv]
Observa-se, inclusive, que o Ministro chama atenção para a necessidade de o Juízo de Origem ter sobrestado o feito, ao observar aderência ao Tema 982.
Confiram-se as razões de decidir:
“Faz-se uma breve retomada dos fatos antes de analisar o mérito. Tratou-se, na origem, de ação anulatória de leilão extrajudicial com pedido de revisão contratual. O TJMS manteve a sentença de 1º grau que declarou a nulidade de cláusula contratual de garantia de alienação fiduciária e estabeleceu a inaplicabilidade do procedimento extrajudicial de expropriação previsto na Lei 9.514/94 em contrato de empréstimo de capital de giro, limitando sua incidência aos casos de garantia sobre o imóvel adquirido com o próprio numerário fornecido em decorrência do mútuo bancário. [...] Os trechos processuais acima transcritos são inequívocos em comprovar tratar o processo, na origem, de execução extrajudicial relacionada a contrato de mútuo (Cédula de Crédito Bancário decorrente de contrato de capital de giro) com alienação fiduciária de imóvel fundada na Lei 9.514/1997.”[v]
Como visto, houve destaque para a distinção realizada entre os empréstimos de capital de giro – tradicionais de pessoa jurídica e aqueles específicos para fins de aquisição imobiliária, que não é o caso em questão.
Conclui-se com o estabelecimento de algumas premissas para dar eficácia as decisões judiciais que envolverem a discussão sobre a cláusula de alienação fiduciária, para o efeito de repercutir em externalidades positivas.
Deste modo, a decisão judicial:
a) Não deve afetar a concessão de crédito pelos canais legais, que se utilizam da legítima intenção da lei de alienação.
b) Deve preservar a finalidade do Sistema Fiduciário Imobiliário, que é o empréstimo/mútuo para a aquisição de bens imóveis.
c) Deve impedir a rotineira prática da expropriação ilegal de bens decorrentes de práticas usurárias (agiotagem).
d) Deve impedir o uso da cláusula de alienação fiduciária em operações que não cabem, a exemplo do mútuo para capital de giro empresarial, que é, inclusive, o paradigma citado pelo Ministro Alexandre de Moraes que acaba de sobrestar o feito (RCL 53058 – REsp 1.906.521-MS) até julgamento do Tema 982.
e) Deve atender o alerta do referido Ministro para que situações do gênero sejam resolvidas e deferidas nas Instâncias Inferiores até o julgamento do Tema, sem a necessidade de recursos aos Tribunais Superiores, evitando, assim, elevados custos de transação.
f) Deve incentivar o controle do Poder Judiciário para resolver situações pontuais de falhas do mercado e abuso do poder.
g) Deve favorecer a política processual e constitucional de observação do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, evitando atos simulados, e demais atos abusivos decorrentes da usura, como os frequentemente denunciados em milhares de ações de nulidade que transitam pelos Tribunais Pátrios.
Notas e referências
[i]Recurso extraordinário em que se discute, à luz do art. 5º, incs. XXXV, LIII, LIV e LV, da Constituição da República, a constitucionalidade do procedimento de execução extrajudicial, previsto na Lei n. 9.514/1997, nos contratos de mútuo com alienação fiduciária do imóvel, pelo Sistema Financeiro Imobiliário - SFI. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=4694303&numeroProcesso=860631&classeProcesso=RE&numeroTema=982. Acessado em: 18/01/2023.
[ii] Página 2, REPERCUSSÃO GERAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO 860.631 SÃO PAULO. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=313633243&ext=.pdf
[iii] SANTOS, Rafa. Alexandre suspende recurso no STJ que trata de alienação fiduciária. Revista Consultor Jurídico, 5 de janeiro de 2023, 18h47. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-jan-05/alexandre-suspende-recurso-stj-trata-alienacao-fiduciaria#author.
[iv]RECLAMAÇÃO 53.058 MATO GROSSO DO SUL. P. 13. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/decisao-stf-tema-982.pdf
[v] RECLAMAÇÃO 53.058 MATO GROSSO DO SUL. Pp. 8 -9. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/decisao-stf-tema-982.pdf
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