A inconstitucionalidade do exercício de atividades de trânsito pela Polícia Civil de Minas Gerais e a desvinculação do DETRAN        

10/09/2020

Coluna Defensoria e Sistema de Justiça / Coordenador Jorge Bheron

Em 2016 a Defensoria Pública de Minas Gerais interpôs duas ações civis públicas questionando a cobrança ilimitada de diárias de pátio de apreensão de veículos automotores, sendo a primeira na comarca de Janaúba e a segunda na Capital, esta última de âmbito estadual[1].

Verificou-se que o Departamento de Trânsito de Minas Gerais (DETRAN/MG), por meio de Instruções Normativas, autorizou a cobrança de diárias por todo o período que o veículo permanecesse no pátio, contrariando o disposto do art. 328 §5º do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), e também a Resolução n. 623 do Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN), que limitam a cobrança ao prazo máximo de 6 (seis) meses[2].

Apurou-se, ainda, a existência de diárias em valores exorbitantes, como um veículo apreendido em pátio na Capital gerando a quantia de R$ 121.961,64 (cento e vinte e um mil, novecentos e sessenta e quatro centavos) de débito ao respectivo proprietário[3].

No entanto, uma outra questão também chamou atenção, merecendo análise mais detida fora daqueles autos processuais: o próprio exercício de atividades de trânsito pela polícia judiciária, bem como a vinculação do DETRAN/MG à esta última. Ressalte-se que, por isso, a Instrução Normativa acima mencionada foi assinada por autoridade policial.

Minas Gerais é o único Estado da federação em que o referido Órgão Executivo do Sistema Nacional de Trânsito (SNT) é subordinado à polícia judiciária.

O artigo 139, inciso III da Constituição do Estado de Minas Gerais atribuiu à Polícia Civil as atividades pertinentes a “registro e licenciamento de veículo automotor e habilitação de condutor”, e a Lei Complementar Estadual nº 129/13 (Lei Orgânica da Polícia Civil do Estado de Minas Gerais) estruturou o DETRAN no âmbito daquela (artigo 37).

Todos os demais entes adotam organização administrativa diversa, predominando o modelo autárquico. O Estado de São Paulo foi o último a proceder à desvinculação, transformando o órgão de trânsito em autarquia por meio da Lei Complementar nº 1.195 de 17 de janeiro de 2013.

Não sem razão, já que a polícia judiciária não tem atribuição para exercício de atividades típicas de trânsito, motivo pela qual a referida vinculação é inconstitucional.

O artigo 144, §4º da Constituição Federal de 1988 preceitua incumbirem à polícia civil as "funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais”, não deixando qualquer margem para desvio de sua atividade finalística.

Exatamente por isso, foi excluída pelo Código de Trânsito Brasileiro do SNT, conforme se extrai do rol taxativo do artigo 7º, incisos I ao VII, vejamos:

Art. 7º Compõem o Sistema Nacional de Trânsito os seguintes órgãos e entidades:

I - o Conselho Nacional de Trânsito - CONTRAN, coordenador do Sistema e órgão máximo normativo e consultivo;

II - os Conselhos Estaduais de Trânsito - CETRAN e o Conselho de Trânsito do Distrito Federal - CONTRANDIFE, órgãos normativos, consultivos e coordenadores;

III - os órgãos e entidades executivos de trânsito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;

IV - os órgãos e entidades executivos rodoviários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;

V - a Polícia Rodoviária Federal;

VI - as Polícias Militares dos Estados e do Distrito Federal;

VII - as Juntas Administrativas de Recursos de Infrações - JARI.

Ressalte-se, por relevante, que a Constituição Mineira foi publicada quando estava em vigor o antigo Código de Trânsito (Lei 5.108, de 21 de setembro de 1966) e esse não relacionava quais entes faziam parte do Sistema Nacional de Trânsito. Porém, o Código de Trânsito de 1997 elencou quais os entes podem fazer parte do referido sistema e, conforme visto, excluiu a Polícia Civil.

Assim, a atribuição de atividades de trânsito à polícia judiciária malfere o artigo 7º, incisos I ao VII, do CTB e, por consectário, a competência privativa da União para legislar sobre trânsito (artigo 22, XI da CF/88). Não obstante, viola o próprio artigo 144, §4º da CF/88, que não autorizou o exercício de atribuições diversas da apuração de infrações penais.

O Supremo Tribunal Federal já decidiu que polícia judiciária sequer poderia exercer a vigilância dos estabelecimentos penais, justamente por não ter correlação com suas atribuições constitucionais. O acórdão restou assim ementado, no que interessa:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTIGOD 7º, INCISOS I E III, E 12, DA LEI DISTRITAL N. 3.669. ORGANIZAÇÃO DA POLÍICIA DO DISTRITO FEDERAL. AGENTES PENITENCIÁRIO. ALEGAÇÃO DE USURPAÇÃO DE COMPETÊNCIA DA UNIÃO. VIOLAÇÃO DO DISPOSTO NOS ARTIGOS 21, INCISO XIV, E 32, §4º, DA CONSTITUIÇÕA DO BRASIL. AÇÃO DIRETA JULGADA PARCIALMENNTE PROCEDENTE.

1.Exame da constitucionalidade do disposto nos artigos 7º, incisos I e III, e 13, da Le distrital n. 3.669, de 13 de setembro de 2005, que versa sobre a criação da Carreia de Atividades Penitenciárias.

2.A Constituição do Brasil --- artigo 144, §4º --- define incumbirem às polícias civis “as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares”. Não menciona a atividade penitenciária, que diz com a guarda dos estabelecimentos prisionais, não atribui essa atividade específica à polícia civil. Precedente. (...). (ADI 3.916, Rel. Min. Eros Grau. J. 03.02.2010).

Os Departamentos de Trânsito são órgãos ou entidades executivos de trânsito do Estado, dotado de poder próprio de polícia e de gestão, devendo prestar o serviço com fulcro na especialização, medida mais consentânea com os princípios da administração pública, especialmente o da eficiência.

Por outro lado, há notório enfraquecimento da capacidade institucional de investigação da polícia com o destacamento de policiais para exercerem atividades como vistorias e licenciamento veiculares, credenciamento de pátios de apreensão de veículos - e a fixação dos valores de diárias de estadia, credenciamento de clínicas médicas, habilitação de condutor, dentre outras.

A missão constitucional da polícia judiciária é um dos pilares do Estado Democrático de Direito, voltada à realização da segurança pública e à proteção dos direitos fundamentais, por isso, seu fortalecimento é de interesse de toda sociedade.

 

Notas e Referências

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.

BRASIL. Lei 9.503, de 23 de setembro de 1997. Código de Trânsito Brasileiro. Diário Oficial da União, Brasília, DF.

DAYRELL, Gustavo; Aspectos jurídicos das cobranças das diárias de estadia pela apreensão de veículos automotores. In: SIMÕES, Lucas Diz; MORAIS, Flávia Marcelle Torres Ferreira de; FRANCISQUINI, Diego Escobar; (Orgs.). Defensoria Pública e a tutela estratégica dos coletivamente vulnerabilizados. Belo Horizonte: Editora D’Plácido.

DENATRAN. Resolução nº 623 CONTRAN, de 06 de setembro de 2016. Disponível em: https://infraestrutura.gov.br/images/Resolucoes/Resolucao6232016_republicada.pdf.

DETRAN. Instrução Normativa nº 01 e 02, de 29 de fevereiro de 2016. Disponível em: https://www.detran.mg.gov.br/images/IN022016.pdf. Acesso em: 14 agosto de 2019.

MINAS GERAIS (Estado). Constituição (1989). Constituição do Estado de Minas Gerais. Diário Oficial do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG.

SÃO PAULO (Estado). Lei Complementar nº 1.195 de 17 de janeiro de 2013. Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Diário Oficial do Estado de São Paulo, São Paulo, SP.

[1] Autos nº 0351.16.000775-0 e 0024.16.503916-5, respectivamente.

[2] Se o veículo não for retirado no prazo de 60 (sessenta) dias contados da data de recolhimento, deve ser leiloado, e o valor obtido destinado ao pagamento das despesas de estadia, dentre outras (artigo 328 do CTB).

[3] Para um aprofundamento sobre a limitação de diárias remete-se ao seguinte texto: DAYRELL, Gustavo; Aspectos jurídicos das cobranças das diárias de estadia pela apreensão de veículos automotores. In: SIMÕES, Lucas Diz; MORAIS, Flávia Marcelle Torres Ferreira de; FRANCISQUINI, Diego Escobar; (Orgs.). Defensoria Pública e a tutela estratégica dos coletivamente vulnerabilizados. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, p. 121-136, 2019.

 

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