Introdução
No dia 4 de dezembro de 2017, o Presidente da República editou a Medida Provisória – MP n.º 809, que autoriza o Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio) a selecionar instituição financeira oficial, sem licitação, para criar e administrar um fundo privado que será integralizado com recursos da compensação paga por empresas em empreendimentos de impacto ambiental significativo – que são destinados às unidades de conservação instituídas pela União.
Segundo a MP, o banco oficial será responsável pela execução, direta ou indireta, e pela gestão dos recursos de compensação ambiental. A instituição financeira também fica autorizada a promover desapropriações de imóveis que estejam na unidade de conservação que receberá recursos de compensação ambiental.
Art. 14-A. Fica o Instituto Chico Mendes autorizado a selecionar instituição financeira oficial, dispensada a licitação, para criar e administrar fundo privado a ser integralizado com recursos oriundos da compensação ambiental de que trata o art. 36 da Lei nº 9.985, de 2000, destinados às unidades de conservação instituídas pela União.
§1ºA instituição financeira oficial será responsável pela execução, direta ou indireta, e pela gestão centralizada dos recursos de compensação ambiental destinados às unidades de conservação instituídas pela União.
§2ºO depósito integral do valor fixado pelo órgão licenciador desonera o empreendedor das obrigações relacionadas à compensação ambiental.
§3ºA instituição financeira oficial de que trata o caputfica autorizada a promover as desapropriações dos imóveis privados indicados pelo Instituto Chico Mendes que estejam inseridos na unidade de conservação destinatária dos recursos de compensação ambiental.[1]
A MP n.º 809/2017, no §5º do art. 14-A autorizou, ainda, a extensão da medida para todos os órgãos do Sistema Nacional de Meio Ambiente – SISNAMA, o que significa a aplicação da MP para Estados, Municípios e Distrito Federal.
5º A autorização prevista no caput estende-se aos órgãos executores do Sistema Nacional de Unidades de Conservação.
A partir desse cenário normativo, discute-se no presente artigo a constitucionalidade da MP n.º 809 e seus impactos na gestão ambiental da federação brasileira.
A contextualização
A edição da MP n.º 809/2017, foi concebida para regulamentar a forma de pagamento da compensação ambiental prevista na Lei n.º 9.985/2000 – Lei de criação do Instituto Chico Mendes. A compensação ambiental constitui um importante mecanismo de proteção do ambiente natural a partir de aportes financeiros para as Unidades de Conservação da Natureza (UCs), oriundos do processo de licenciamento ambiental. O art. 36 da Lei n.º 9.985/2000, dispõe:
Art. 36 Nos casos de licenciamento ambiental de empreendimentos de significativo impacto ambiental, assim considerado pelo órgão ambiental competente, com fundamento em EIA/RIMA, o empreendedor é obrigado a apoiar a implantação e manutenção de unidade de conservação do Grupo de Proteção Integral, de acordo com o disposto neste artigo e no regulamento desta Lei.
O art. 36 regulamenta o inciso IV do art. 225 da Constituição Federal de 1988, garantindo ao órgão ambiental o direito de exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental[2]. É do estudo que nasce a incumbência de apoiar a implementação ou manutenção de Unidades de Conservação por meio do pagamento de compensação ambiental[3].
A edição da MP n.º 809/2017, entretanto, segundo FARIAS e ATAIDE[4] deve ser entendida a partir dos seguintes elementos fáticos e jurídicos:
a) o artigo 36, caput e o parágrafo 1º, ambos da Lei Federal n.º 9.985/2000, utilizam apenas as expressões “apoiar” e “montante de recursos a ser destinado”, respectivamente, permitindo que a compensação ambiental ocorra de forma direta (por meio de ações executadas pelo empreendedor), ou através do pagamento em dinheiro.
b) a duas modalidades de adimplemento foram reconhecidas pela administração pública federal, conforme dispõe o art. 11 da Instrução Normativa n.º 20/2011 do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), segundo o qual o pagamento pode ocorrer tanto de forma pecuniária quanto por meios próprios, em que o próprio empreendedor executa as medidas compensatórias. Para o pagamento em pecúnia, o Instituto Chico Mendes criou contas em bancos para deposito dos valores.
c) a modalidade de deposito ou pagamento em pecúnia gerou o desvio de finalidade, pois, não raras vezes o poder público acaba aplicando a receita ambiental em finalidade diversa das ações em favor da unidade de conservação.
d) a criação de contas pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, embora tenha estabelecido um critério adequado para evitar o desvio de finalidade, foi suspensa pelo Tribunal de Contas por meio do acordão n.º 1.853/2013.
e) a suspensão da modalidade de pagamento pecuniário por depósito é prejudicial ao setor produtivo e ao meio ambiente.
A inconstitucionalidade da MP n.º 809/2017 e os impactos na gestão ambiental da federação brasileira
Sem discutir a essencialidade da criação do fundo de compensação ambiental, posto que tal matéria deveria, no mínimo, ser tratada no âmbito do Conselho Nacional de Meio Ambiente – CONAMA, antes de ser regulamentada; resta analisar a constitucionalidade da norma e os impactos na gestão ambiental da federal brasileira.
No que toca a constitucionalidade, a edição da MP n.º 809/2017 deve ser confrontada com o dispositivo constitucional que autoriza ao Poder Executivo Federal expedir Medidas Provisórias, a saber:
Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional.[5]
As medidas provisórias, conforme citação supra, estão disciplinadas no art. 62 da Constituição Federal. Para expedição de uma medida provisória exige-se do Presidente da República o cumprimento de dois requisitos[6]: a) requisito material, afeto às vedações contidas na própria constituição, como é o caso da proibição da edição de medidas provisórias que versem sobre direitos políticos, dentre outros assuntos; e b) requisito formal, ligado a demonstração da situação de relevância e de urgência, relacionada com a tramitação e a iniciativa da meteria que se pretende normatizar.
A medida provisória nº 809/2017 guarda dúvida quanto a constitucionalidade material em relação ao parágrafo 5º do art. 14-A, cujo conteúdo autoriza a criação do fundo de compensação para todos os órgãos do SISNAMA.
5º A autorização prevista no caput estende-se aos órgãos executores do Sistema Nacional de Unidades de Conservação.
Vê-se, pelo dispositivo normativo que a autorização prevista no caput se estende para aos Estados, aos Município e ao Distrito Federal. Resulta, contudo, que as normas relativas às competências ambientais, no âmbito da federação brasileira, são reguladas por meio de Lei Complementar, como é o caso da Lei Complementar n.º 140/2011, que fixa normas, nos termos dos incisos III, VI e VII do caput e do parágrafo único do art. 23 da Constituição Federal, para a cooperação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios nas ações administrativas decorrentes do exercício da competência comum relativas à proteção das paisagens naturais notáveis, à proteção do meio ambiente, ao combate à poluição em qualquer de suas formas e à preservação das florestas, da fauna e da flora.
É indene de dúvida, que a ação de administrar fundo de compensação ambiental é uma competência comum de todos os entes da federação no que concerne à proteção das unidades de conservação. Portanto, no caso da criação e regulação de fundo de compensação ambiental, a matéria deve ser tratada por LEI e por LEI COMPLEMENTAR, nos exatos termos do art. 23 da Constituição Federal, in verbis:
Art. 23 Leis complementares fixarão normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional.
Ultrapassada a premissa quanto a espécie normativa, volta-se a análise dos requisitos materiais para a edição de medida provisória. Dispõe o art. 62 e respectivos incisos:
Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional.
§1º É vedada a edição de medidas provisórias sobre matéria:
I – relativa a:
a) nacionalidade, cidadania, direitos políticos, partidos políticos e direito eleitoral;
b) direito penal, processual penal e processual civil;
c) organização do Poder Judiciário e do Ministério Público, a carreira e a garantia de seus membros;
d) planos plurianuais, diretrizes orçamentárias, orçamento e créditos adicionais e suplementares, ressalvado o previsto no art. 167, § 3º;
II – que vise a detenção ou sequestro de bens, de poupança popular ou qualquer outro ativo financeiro;
III – reservada a lei complementar;
IV – já disciplinada em projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional e pendente de sanção ou veto do Presidente da República.
Conforme consta do inciso III, parágrafo 1º do art. 62, é vedada a edição de medida provisória reserva a matéria que deve ser regulada por meio de lei complementar.
Logo, a MP n.º 809/2017, ao menos no que se refere ao parágrafo 5º, é inconstitucional por vicio material, posto que regulou matéria reservada à Lei Complementar.
Por outro lado, a MP n.º 809/2017, guarda vicio de inconstitucionalidade formal. Pelo art. 62, já citado, a admissibilidade da medida provisória está condicionada a demonstração, concomitante, da presença das condições de relevância e de urgência.
Os conceitos de relevância e de urgência são fruídos e revelam inúmeras discussões sobre a possibilidade de controle de constitucionalidade. Parte da doutrina, amparada em decisões do Supremo Tribunal Federal - STF, compreende que a expedição da medida provisória decorre de ato discricionário do chefe do Poder Executivo Federal, devendo ser tratada no ambiente político e com o controle de constitucionalidade exercido pelo Congresso Nacional. Nesse caso, não caberia controle de constitucionalidade pelo Poder Judiciário, salvo quando fosse evidenciada a absoluta ausência dos requisitos relevância e urgência[7]. Outra corrente, compreende que é perfeitamente possível realizar o controle de constitucionalidade repressivo das medidas provisórias sob o aspecto formal pelo Poder Judiciário, analisando a existência ou não dos requisitos relevância e urgência. Nesse caso, entende-se que a edição da medida provisória não guarda relação com o ato discricionário, cuja natureza permite a escolha da decisão amparada em mais de uma alternativa; o que não se afigura no caso concreto das medidas provisórias.
No presente artigo, adota-se a tese de que o Poder Judiciário pode realizar o controle de constitucionalidade das medidas provisórias. Primeiro, pelo fato de que se trata de uma garantia prevista na Constituição Federal, art. 5º inciso XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Segundo, em razão de que o Poder Judiciário, por meio do STF, é responsável por exercer o papel de guardião da Constituição, devendo, na atual organização dos poderes, exercer o controle dos atos dos demais Poderes da República, dentro dos limites da Constituição.
Nesse diapasão, adotando-se a tese da possibilidade de controle repressivo da medida provisória pelo Poder Judiciário, volta-se a discussão acerca da constitucionalidade da MP n.º 809/2017. Para tanto, pergunta-se:
a) qual é a relevância da criação do fundo de compensação ambiental por medida provisória?
b) qual é a urgência da criação do fundo de compensação ambiental por medida provisória?
Quanto à relevância, não se verifica, pois, dentro do SISNAMA, já existem os fundos de meio ambiente, geridos pelos respectivos conselhos de meio ambiente. Ademais, a criação de um fundo específico para as compensações ambientais, sem discutir com os integrantes do SISNAMA e, ainda, outorgando ao ente financeiro a gestão, não resultará na eficácia desejada em favor do meio ambiente e muito menos evitará os desvios de finalidade.
Já em relação a urgência, também não se verifica, pois, os problemas envolvendo o uso dos recursos oriundos de compensações ambientais não datam de 2017, ao contrário, preexistem há tempos. No caso, como a lei n.º 9.985/2000 já disciplina o apoio e determina o aporte de recursos, bastaria alterar as regras do decreto regulamentador, não justificando, assim, o atropelo do processo legislativo.
Conclusão
A partir das premissas discutidas, compreende-se que a MP n.º 809/2017 é inconstitucional, seja sob o aspecto formal, seja pelo aspecto material. Resulta, ainda, que a edição da medida provisória impacta sobremaneira o sistema federativo, trazendo consequências à gestão ambiental, notadamente para os Estados e para os Municípios, pois, acaba por atravancar o recebimento de compensações ambientais.
[1] Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2017/Mpv/mpv809.htm. Acesso em 13 de fev. 2018.
[2] Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em 13 de fev. 2018.
[3] Sobre o valor ou percentual da compensação ambiental ver decisão do STF sobre inconstitucionalidade da expressão contida no §1º do art. 36 da Lei n.º 9.985/2000, “ser inferior a meio por cento dos custos totais previstos para implantação do empreendimento”. Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=263194. Acesso em 13 de fev. 2018.
[4] FARIAS, Talden. ATAIDE, Pedro. MP 809 e a aplicação de recursos na compensação ambiental. Disponível em https://www.conjur.com.br/2017-dez-11/opiniao-mp-809-aplicacao-recursos-compensacao-ambiental. Acesso em 13 de fev. 2018.
[5] Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em 13 de fev. 2018.
[6] A inconstitucionalidade material ocorre quando, o conteúdo de uma espécie normativa, afronta totalmente ou parcialmente, outro dispositivo constitucional. A inconstitucionalidade formal ocorre quando a forma não é observada.
[7] ADI N.º 2527-9 DF. Disponível em www.stf.jus.br. Acesso em 14 de fev. 2018.
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