A incidência do imposto de renda sobre os juros de mora – Por Vinícius Loss

21/06/2017

O objetivo principal a ser buscado por um regime democrático de direito é a segurança jurídica. Dentre as suas várias acepções, pode ser reduzida à fórmula bastante simples: “se isso, então aquilo”.

As incertezas, todavia, permeiam nosso sistema jurídico. São muitas suas origens, desde a baixa qualidade dos nossos legisladores até a baixa qualificação dos aplicadores do direito.

Uma das incertezas que os contribuintes atualmente precisam suportar diz respeito à tributação dos juros moratórios, decorrentes de rendimentos pagos em atraso, na medida em que por vezes há a incidência da regra-matriz do imposto de renda e por outras vezes não há. Vive-se, por consequência, a mais abominável das situações para a “ciência” do direito: uma “loteria jurídica”.

Pois bem. A primeira dificuldade que o operador jurídico encontra ao tratar da matéria é que o conceito de renda não está definido expressamente na Constituição. São dezenove as menções ao vocábulo “renda” em todo texto constitucional, contudo, nenhuma delas serve para o delimitar exatamente.

Quiçá, o constituinte originário não teve a preocupação de esmiuçar o que seria a “renda” pela obviedade, para a população, do conceito. Lamentavelmente, o que é bastante óbvio para a população, nem sempre é assim tão claro para os administradores da coisa pública.

A despeito de não estar expressamente previsto o conceito na Carta Maior, as suas raízes estão lá plantadas. Por exemplo, ao se trazer o comando do princípio (com conteúdo axiológico de regra) da capacidade contributiva (art. 145, § 1º, da CF/88) para o imposto sobre a renda, é de se concluir que deverá a autoridade fiscal averiguar o que efetivamente representa uma renda, um acréscimo patrimonial para o sujeito passivo, a fim de que esse valor sirva como critério material para a incidência da respetiva alíquota.

Nessa linha, e em que pese a inexistência da definição expressa de “renda”, é possível aferir que ela representa um saldo positivo, decorrente do confronto entre certas entradas e certas saídas, ocorridas num período pré-determinado. Naturalmente que tal aferição se dá por exclusão ao que a Constituição refere como sendo: faturamento (art. 195, I), adotado como “ingressos” sem, todavia, haver a preocupação com o resultado, seja positivo ou negativo; capital (arts. 156, 165, 167, 170, 172, 192), visto como investimento, sem a comparação entre o patrimônio inicial e o final; lucro (arts. 7º, 172, 173 e 195), que é adotado como o resultado positivo de uma pessoa jurídica, podendo ser, por conseguinte, uma das espécies de renda (mas sem que seja suficiente para delimitar o conceito); ganho (arts. 201 e 218), tendo este sido adotado com a mesma limitação que “faturamento”, pois não se atem ao resultado final; resultado (arts. 7º, 20, 71, 77, 109, 176, 231 e 235), é adotado como situação final do processo, sem avaliar a capacidade contributiva; e patrimônio (arts. 5º, 23, 24, 30, 144, 145, 150, 225 e 239), vocábulo com o qual o constituinte passa a ideia de situação estática de bens e direitos.

Sendo assim, nenhuma das definições encontradas na Constituição é capaz de delimitar exatamente o conceito de “renda”.

O dicionário da língua portuguesa Michaelis[1], por outro lado, definiu o vocábulo assim:

1 Produto anual ou mensal de propriedades rurais ou urbanas, de bens móveis ou imóveis, de benefícios, capitais em giro, empregos, inscrições, pensões etc.; produto, receita, rendimento. 2 Rendimento líquido depois de deduzidas as despesas materiais. 3 Série de prestações em dinheiro ou em outros bens, que uma pessoa recebe de outra, a quem foi entregue, para esse efeito, certo capital.

Note-se que em todas as acepções do vocábulo vê-se um elemento volitivo, isto é, a realização de um trabalho ou a remuneração pelo capital investido (seja decorrente de imóveis – aluguel, arrendamento; seja decorrente de investimentos monetários), que implica, necessariamente, um acréscimo patrimonial.

E foi nessa linha que o legislador ordinário seguiu, ao estipular, no CTN, a incidência do imposto sobre a renda, confira-se:

Art. 43. O imposto, de competência da União, sobre a renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica:

I - de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos;

II - de proventos de qualquer natureza, assim entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso anterior.

Além de tratar de “renda”, o legislador também dispôs acerca de “proventos de qualquer natureza”, desde que estes representem “acréscimo patrimonial”. Portanto, somente quando há um efetivo ganho, um “aumento” constatado entre o patrimônio inicial e o final em um determinado espaço de tempo[2], é que se está diante de hipótese de incidência do imposto de renda[3].

Daí que todas as verbas entendidas como “indenização”, aquelas que servem para “recompor o patrimônio”, não se submetem à hipótese de materialidade do tributo, na medida em que não há o necessário acréscimo patrimonial.

Isso porque o vocábulo “indenizar” é assim definido pelos dicionários[4]:

1 Dar indenização ou reparação a; compensar, ressarcir: O patrão despediu-o mas indenizou-o. Indenizar alguém de (ou por) prejuízos. Indenizaram as perdas e danos ao proprietário. 2 Ser indenizado, ressarcido; receber indenização ou compensação: Indenizo-me do tempo perdido. Após o exaustivo labor, indenizar-se-ia em largo repouso.

Em todas as suas acepções, tem-se o “ressarcimento”, a compensação por perdas e prejuízos, isto é, não se trata de remuneração ou acréscimo patrimonial, mas sim de recomposição patrimonial, sem que exista ganho líquido a este, ainda que exista um ingresso de recursos.

É importante buscar a significação dos vocábulos, porquanto, como é cediço, embora a CF/88 estabeleça que caberá à Lei Complementar a definição de tributos e suas espécies, assim como suas hipóteses de incidências (art. 146, III, “a”), o próprio CTN (recepcionado como Lei Complementar pela Constituição) dispõe, em seu art. 110, que não é permitido à legislação tributária “alterar a definição, o conteúdo e o alcance dos institutos”, bem como seus conceitos.

Indenização, pois, não pode desencadear a incidência tributária do imposto de renda, pois sua definição está atrelada a compensar um prejuízo sentido (seja ele material ou imaterial), não acarretando aumento patrimonial[5].

É imperioso destacar – para evitar confusão terminológica – que a não tributação de uma indenização não se trata de hipótese de “isenção”, mas de “não-incidência”, duas figuras completamente distintas – grosso modo, naquela o imposto é devido, porém, em caso específico, assim definido em lei, não é cobrado; nesta, por sua vez, não há previsão legal para que seja tributado.

Estabelecidas as premissas, é necessário agora a investigação sobre o conceito de “juro”.

Ele tem significação em vários campos do conhecimento humano, entre eles o da economia, da política e do direito.

Em economia, o mais amplamente conhecido, é a renda decorrente da utilização da moeda por terceiros, isto é, o detentor do capital priva-se de fazer seu uso imediato para receber uma remuneração pela utilização deste capital por terceiros.

Na política, com utilização um pouco menos óbvia para o homem médio, destaca-se a sua utilização como manipulação da disponibilidade da moeda no mercado. Segundo amplamente aceito na doutrina econômica, reduzir a oferta de moeda, majorando-se os juros pagos pelo Poder Público para remunerar seus credores, acarreta a redução do crédito no mercado e, por consequência, arrefece a economia, diminuindo os efeitos perniciosos da inflação.

No direito, o juro tem, pelo menos, duas acepções. Numa delas é o “fruto civil do capital”, sendo, por conseguinte, acessório daquele, quando serve como remuneração pelo capital do qual seu proprietário se privou por interesse próprio. Na outra acepção, ele é visto como compensação pela impontualidade no pagamento[6].

Entre as muitas possíveis classificações, a que interessa para este artigo é a que o separa em juro compensatório e moratório. Nos dizeres do ilustre professor Venosa, os juros “serão compensatórios, quando representarem fruto do capital, ou moratórios, quando representarem indenização pelo atraso no cumprimento da obrigação.”. Portanto, naqueles, há a compensação (ou a remuneração) pela utilização do capital de terceiros, decorrente da convenção das partes, de decisão judicial ou da lei; nestes, por outro lado, há a indenização da parte lesada pelo descumprimento de uma obrigação pela outra parte, há a prática de um ato ilícito, de impontualidade, que enseja a penalização do lesante com o pagamento de juro.

Na primeira situação, nota-se, claramente, que o contribuinte escolheu se privar da utilização de seu capital líquido mediante o pagamento de uma remuneração, denominada “juro”. Ou seja, escolheu majorar o seu patrimônio (auferir renda) ao invés de utilizar imediatamente os seus recursos disponíveis. Há, pois, um “acréscimo patrimonial”.

Na segunda situação, por outro lado, o contribuinte sofreu com o ato ilícito praticado pela outra parte, que não cumpriu uma obrigação em seu termo. Isto é, o contribuinte ficou privado de seu capital, que poderia até mesmo ser essencial para sua sobrevivência, porquanto foi vítima de um ato ilício, o qual deve ser prontamente indenizado pelo lesante, na forma do art. 927 do Código Civil. Está claro que não houve a opção do contribuinte, neste caso, sobre o destino de seus recursos financeiros. Ficou privado por conta de terceiros.

O Código Civil (arts. 395 e 404) trata dos juros de mora com os termos “prejuízos” e “cobertura” (no sentido de indenização), além de o parágrafo único do art. 404 ainda mencionar “indenização suplementar”, quando provado que os “juros de mora não cobrem o prejuízo”. Em outras palavras, a legislação civil, expressamente, estabelece que os juros de mora são uma indenização. E não poderia ser diferente, na medida em que eles existem para compensar o atraso involuntário no recebimento de crédito.

Se os juros moratórios são pagos quando existe a prática de um ilícito, consistente no não cumprimento de uma obrigação no seu termo, o lesante/devedor fica obrigado a reparar os danos daí advindos, na forma do art. 927 do Código Civil, e não de “remunerar o capital atrasado”, o que ressalta ainda mais a natureza reparatória dos juros de mora[7].

Pelo que estabelecido até aqui, é de se concluir que o art. 16, parágrafo único, da lei 4.506/1964, não foi recepcionado pela Constituição Federal, pois dispõe que “serão também classificados como rendimentos de trabalho assalariado os juros de mora e quaisquer outras indenizações pelo atraso no pagamento das remunerações previstas neste artigo”. O mencionado dispositivo legal também aponta que a tributação deveria incidir sobre outras verbas situadas hoje inegavelmente fora da incidência tributária, tais como diárias, ajuda de custo, etc. Isto é, trata-se de legislação revogada, ainda que apenas tacitamente.

A despeito da clareza solar do tema, de que não deve incidir imposto de renda sobre os tais juros de mora, as Cortes Pátrias não chegaram a um consenso.

O Tribunal Regional Federal da 4ª Região, desde 2013, por arguição de inconstitucionalidade, definiu que os juros de mora estão fora da incidência tributária, pouco importando a natureza da verba principal (ARGINC 5020732-11.2013.404.0000).

O Superior Tribunal de Justiça, no entanto, tem o entendimento de que os juros de mora, em abreviadas palavras, só não são tributáveis se a verba principal também não o for, ou seja, a natureza do acessório segue a do principal (AREsp 381.577/RS).

E, hodiernamente, aguardamos que o Supremo Tribunal Federal dê a última palavra sobre a matéria, quando decidir o tema 808 da repercussão-geral. Afinal de contas, a lei é o que a Suprema Corte diz que é[8]. Se julgar de forma técnica, consoante explanado acima, deve afastar por completo a tributação sobre juros de mora, independentemente da natureza da verba principal, e no mesmo sentido do que pretende o legislador: tramita no Congresso Nacional um projeto de lei (639/2011)[9], pendente de análise pela Câmara (desde 2013), cuja única disposição acaba com toda esta celeuma, ao determinar que qualquer juro de mora recebido é verba indenizatória, fora, portanto, do campo da incidência do tributo.


Notas e Referências:

[1] Renda in DICIONÁRIO Michaelis. Disponível em: < http://michaelis.uol.com.br/>. Acesso em: 10 de janeiro de 2015.

[2] CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário, linguagem e método, 2ª ed. São Paulo : Noeses, 2008,

p.680.

[3] MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário, 19ª ed., Malheiros, 2001. p. 263

[4] Indenização in DICIONÁRIO Michaelis. Disponível em: < http://michaelis.uol.com.br/>. Acesso em: 10 de janeiro de 2015.

[5] CARRAZA, Roque Antônio. Imposto sobre a Renda (perfil constitucional e temas específicos). São Paulo: Malheiros, 2006. p. 184.

[6] SILVA, de Plácido e. Vocabulário Jurídico. 15. ed. Rio de Janeiro : Forense, 1999. p. 469

[7] DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Volume II. 23ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 396.

[8] "A supreme tribunal has the last word in saying what the law is and, when it has said it, the statement that the court was wrong has no consequences within the system: no one's rights or duties are thereby altered. This leads to another from of the denial that courts in deciding are ever bound by rules: The law (or the constitution) is what the court say it is." (HART, Herbert L.A. The Concept of Law. london: Oxford, 1961, p. 138).

[9] De iniciativa do Senador VALDIR RAUPP, já aprovado pelo Senado.


 

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