A (in)constitucionalidade do artigo 17 - D da Lei de Lavagem de Dinheiro

11/01/2016

Por Carlos Augusto Ribeiro - 11/01/2016

Introdução 

Em virtude do crescimento global da criminalidade organizada e principalmente da utilização de braços do Estado para a consecução de vantagens ilícitas, a Lei n. 9.613, de 3 de março de 1998 (Lei de Lavagem de Capitais), além de trazer em seu bojo dispositivos compatíveis com o combate internacional do crime de lavagem de dinheiro, trouxe diversos mecanismos investigativos para uma eficaz repressão.

Entretanto, apesar dos mecanismos investigativos originalmente previstos, foi acrescida à Lei de Lavagem de Capitais, por meio da lei 12. 683, de 9 de julho de 2012, o artigo 17-D, cujo intuito foi tornar a persecução penal no crime de lavagem de dinheiro mais eficiente, dispondo o seguinte: “Em caso de indiciamento de servidor público, este será afastado, sem prejuízo da remuneração e demais direitos previstos em lei, até que o juiz competente autorize em decisão fundamentada, o seu retorno”.

Desse modo, diante do significativo acréscimo, faz-se necessária a reflexão do dispositivo legal, visando a averiguação de compatibilidade entre as consequências impostas pelo indiciamento do servidor público no crime de lavagem de dinheiro e a Constituição Federal.

A violação do sistema acusatório 

Não se olvida, no que toca aos sistemas processuais penais, que há certa celeuma na doutrina sobre a classificação do processo penal brasileiro que ora filiam-no ao sistema acusatório, ora ao sistema misto. Isso ocorre porque o processo penal pátrio constitui-se de uma fase naturalmente inquisitiva, realizada no âmbito do inquérito policial, e uma fase, ainda que deficitária, acusatória, na qual se deflagram procedimentos sob a óptica do contraditório e da ampla defesa.

Não obstante, em que pese a existência dos laivos inquisitivos no sistema processual penal brasileiro, é fato insofismável que a Constituição Federal consagrou o princípio acusatório[1] e, por consequência, instituiu o sistema acusatório, o qual, é um conjunto de normas e princípios, leis e procedimentos concatenados para a realização de um julgamento efetivamente justo, informado pelo princípio acusatório, cujo resultado é um processo de partes, caracterizado pela rígida separação das funções de investigar, acusar, defender e julgar, configurando, destarte, verdadeira oposição ao desvalor do processo inquisitivo[2].

Nesse plano, o sistema constitucional de persecução penal confere ao Ministério Público a competência privativa de promoção da ação penal pública, nos termos do artigo 129, inciso I, da Constituição Federal, ao passo que, no artigo 144, é delimitada a competência da polícia judiciária, dispondo que a ela é incumbida a missão de investigar as infrações penais, mas sem exclusividade para esse ofício, porquanto ao Ministério Público também é facultada essa competência.

Em apertada síntese, a sistemática da persecutio criminis estabelecida pela Constituição Federal, afigura-se desse modo: a) à polícia judiciária é dada a função de investigar, embora não exclusiva; b) ao Ministério Público, de modo privativo, o exercício da ação penal pública; e c) ao Judiciário, a função de julgar a acusação.

Assim, transplantando as noções do sistema acusatório, constitucionalmente traçado, ao artigo 17-D da Lei de Lavagem de Capitais, nota-se uma verdadeira degeneração do sistema, na medida em que impõe, como consequência do indiciamento, o afastamento automático do servidor público de suas funções, antes mesmo do Ministério Público ter formado a sua opinio delicti, de sorte que além de patente afronta ao sistema acusatório, a mencionada consequência do indiciamento criminal é deveras danosa, haja vista que poderá o afastamento do servidor público ocorrer sem que ele guarde qualquer vínculo com  o conteúdo de eventual ação penal promovida pelo Ministério Público, o qual não participa da elaboração do indiciamento.

Como se vê, o dispositivo legal atribui ao delegado de polícia um poder descomunal, pois usurpa ele duas competências ao mesmo tempo: (I) a do juiz, que poderia determinar medidas cautelares, logo necessárias, adequadas e proporcionais, dentre elas o próprio afastamento do servidor público de suas funções (artigo 319, inciso VI, do CPP) e (II) a do Ministério Público, porquanto, como explicado, a Constituição Federal não outorga competência à polícia judiciária para a formação da opinio deliciti, mas sim ao Ministério Público, de forma privativa, nas ações penais públicas, como é o caso da lavagem de dinheiro.

Desse modo, de plano, o artigo 17-D viola as bases fundantes do sistema acusatório, principalmente porque subverte as funções persecutórias constitucionalmente traçadas, afigurando-se, portanto, inconstitucional.  

A violação da presunção de inocência           

É sabido que, de fato, a operacionalização da presunção de inocência se relaciona, de forma indissociável, ao devido processo legal, pois é corolário deste último, de maneira que, sem a observância de um deles, aquele que figura um processo penal está sujeito a inescrupulosas arbitrariedades estatais. A presunção de inocência, dentro do processo penal pátrio, constitui-se, apesar da resistência inquisitorial, de efetiva garantia de liberdade, mesmo que essa venha a ser restringida, dado que a observância do princípio garante ao famigerado indicado/acusado um processo penal justo.

Nessa órbita, diante da pedra angular de todo um processo penal democrático que é a presunção de inocência, não é demais trazer à colação as lições de Francisco Bissoli Filho, o qual preleciona que “somente a sentença penal condenatória transitada em julgado pode modificar a situação jurídica do imputado ou do acusado, passando este do estado de inocência para o estado de culpado, impõem-se aos agentes do sistema penal cuidados nas esferas legislativa e processual para não afrontar, na realização desses atos, o princípio do estado de inocência[3].

Nesse cenário, o artigo 17-D viola nitidamente a regra de tratamento que deriva do princípio da presunção de inocência, porquanto estabelece o afastamento do funcionário público de suas funções como efeito automático do indiciamento, equiparando aquele que está sendo meramente indiciado, sem sequer existir a formação de um processo penal, ao condenado por sentença transitada em julgado.

Não se pode admitir que, diante da presunção de inocência, o servidor público seja punido simplesmente por ser indiciado, sem que haja, ao menos, a formulação de uma acusação pelo Ministério Público. Ademais, a violação da presunção de inocência fica patente quando analisamos a questão sob o prisma da pena antecipada[4], tendo em vista que a regra especial da Lei de Lavagem de Capitais estabelece, como efeito da condenação, “ a interdição do exercício de cargo ou função pública..., pelo dobro do tempo da pena privativa de liberdade aplicada” (art. 7º, inciso II).

Avulta, no artigo 17-D, nítida punição antecipada, dado o automatismo do afastamento, em claro contraste com a garantia constitucional da presunção de inocência.           

Violação do devido processo legal, ampla defesa e contraditório 

Sob outro aspecto, é consabido que o inquérito policial é um procedimento administrativo, inquisitório e unilateral, no qual, por força constitucional, deveria ser potencializado o contraditório e a ampla defesa, mas, por um reducionismo teórico, propala-se que nesse procedimento não há direito de defesa e contraditório.

Todavia, partindo-se da concepção de que o exercício do cargo público é um bem jurídico titularizado pelo servidor, faz-se necessário que tenha existido um procedimento administrativo ou judicial no qual tenha-se assegurado um mínimo de contraditório e ampla defesa, princípios constitucionais que, por uma resistência inquisitória e praticidade, não se fazem presentes no inquérito policial.

Dessarte, se a Constituição Federal assegura o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa, como garantias fundamentais, essas restam inobservadas quando confrontadas com o mencionado artigo 17-D, haja vista o automatismo do afastamento do servidor público quando indiciado sem o exercício do direito de manifestar-se sobre os motivos pelos quais se encontra sob investigação. Em outros termos: o funcionário público é afastado sem contraditório e ampla defesa.

Ademais, embora exista no Código de Processo Penal diversas referências a indiciado ou indiciamento, não há regulação legal dos requisitos do indiciamento e, tampouco, exigência de fundamentação da autoridade policial, no sentido de apontar os indícios a partir dos quais formou a sua convicção pelo indiciamento, de modo que, como apontam Gustavo Badaró e Pierpaolo Bottini “ o indiciamento fica na dependência do mero juízo discricionário da autoridade policial, podendo propiciar enormes abusos e danos irreparáveis ao servidor público, se de tal ato incontrolável decorrer o efeito automático do afastamento de suas funções[6].

Dessa maneira, a olhos vistos, este ato inquisitorial e discricionário, sem a potencialização do contraditório e da ampla defesa, não pode implicar medida tão grave sem a observância das garantias fundamentais inerentes ao devido processo legal.       

Conclusão 

Como se vê, à evidência, houve excesso na atividade legiferante que, pondo a defesa social acima dos direitos individuais, editou norma com flagrante vicio de inconstitucionalidade substancial, pois o artigo 17-D subverte todo o sistema acusatório insculpido na Constituição Federal, ferindo de morte garantias constitucionais e acarretando nefastas consequências ao funcionário público indiciado pelo crime de lavagem de dinheiro.

Felizmente, a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) ajuizou no Supremo Tribunal Federal uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4911) contra o artigo 17-D da Lei de Lavagem de Capitais, a qual está sob a relatoria do Edson Fachin e se encontra pendente de julgamento, tendo a Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF) ingressado como Amicus Curiae, obviamente, sustentando a constitucionalidade da norma.


Notas e Referências:

[1] Aqui valem as lições de Geraldo Prado, o qual obtempera que “se aceitarmos que a norma constitucional que assegura ao Ministério Público a privatividade do exercício da ação penal pública, na forma da lei, a que garante a todos os acusados o devido processo legal, com ampla defesa e contraditório, além de lhes deferir, até o trânsito em julgado da sentença condenatória, a presunção da inocência, e a que, aderindo a tudo, assegura o julgamento por juiz competente e imparcial, são elementares do princípio acusatório, chegaremos à conclusão de que, embora não o diga expressamente, a Constituição da República o adotou”. PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório: a conformidade constitucional das leis penais.    3.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. P. 300 e 301.

[2] MACHADO, Antônio Alberto. Teoria Geral do Processo Penal. São Paulo: Atlas, 2009. p.10.

[3] BISSOLI FILHO, Francisco. Linguagem e criminalização: a constitutividade da sentença penal condenatória. Curitiba: Juruá, 2011. p. 404.

[4] BOTTINI, Pierpaolo Cruz; BADARÓ, Gustavo Henrique. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais: comentários à Lei 9.613/98, com alterações da Lei 12.683/2012. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p.375.

[5] BOTTINI, Pierpaolo Cruz; BADARÓ, Gustavo Henrique. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais: comentários à Lei 9.613/98, com alterações da Lei 12.683/2012. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p.374.

BOTTINI, Pierpaolo Cruz; BADARÓ, Gustavo Henrique. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais: comentários à Lei 9.613/98, com alterações da Lei 12.683/2012. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013 

BISSOLI FILHO, Francisco. Linguagem e criminalização: a constitutividade da sentença penal condenatória. Curitiba: Juruá, 2011.

MACHADO, Antônio Alberto. Teoria Geral do Processo Penal. São Paulo: Atlas, 2009. 

PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório: a conformidade constitucional das leis penais. 3.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. 


Carlos Augusto Ribeiro

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Carlos Augusto Ribeiro é Advogado Criminalista. Pós-graduando em Ciências Criminais pela Faculdade CESUSC. Membro da Associação dos Advogados Criminalistas de Santa Catarina. E-mail: crb1.adv@gmail.com. .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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