1 Garantia constitucional da soberania dos veredictos
A Carta Magna de 1988 além de reconhecer a instituição do Tribunal do Júri passou assegurar como direito fundamental a soberania dos veredictos, segundo o qual a decisão do Conselho de Sentença não pode sofrer interferência alguma pelo órgão jurisdicional justamente por se tratar de ordem suprema (FELBERG, 2013).
O princípio da soberania dos veredictos constitui garantia individual do acusado, que não pode ceder senão diante de outros princípios inerentes ao direito de defesa e que venham justamente a militar em favor da própria liberdade (GRINOVER, 1988).
A participação do povo no Poder Judiciário deve ser enaltecida como mecanismo de exercício da cidadania em uma Democracia, de sorte que se deve respeitar a decisão popular em homenagem à garantia constitucional da soberania dos veredictos (ALMEIDA, 2005, p. 57).
Embora seja uma questão simples – porque soberano remete à ideia de supremacia, ao qual cabe a última palavra – o veredicto dos jurados não é absoluto, pois pode ser anulado pelo Tribunal Togado que, nesta hipótese, deve determinar a reanálise do caso pelo Tribunal Popular, único competente para decidir sobre o mérito (FELBERG, 2013).
2 Duplo grau de jurisdição e a possibilidade de recurso de apelação criminal contra decisão proferida pelo Tribunal do Júri
O duplo grau de jurisdição e a soberania dos veredictos são princípios constitucionais que devem coexistir harmoniosamente, ao passo que o primeiro representa a segurança de que as decisões não sejam únicas, enquanto o último representa a vontade do povo e máxima expressão do julgamento (NUCCI, 2014, p. 42).
Em razão da possibilidade de falha dos jurados quanto à apreciação da prova constante dos autos ou, ainda, da possibilidade de falha do juiz togado no quesito técnico-jurídico do processo e na aplicação da pena ao caso concreto, admite-se a interposição de recurso em face da decisão emanada do Tribunal Popular sem que tal configure afronta à garantia da soberania dos veredictos, especialmente porque eventual reexame de mérito será feito em novo julgamento pelo Tribunal do Júri NUCCI, 2014, p. 427).
A propósito, a Suprema Corte Brasileira já se manifestou sobre este assunto (STF, HC 105.005/MG, Rel. Min. Ayres Brito, Segunda Turma, julgado em 26.10.2010):
A pretensão revisional das decisões do Tribunal do Júri não conflita com a regra da soberania dos veredictos populares (CF, art. 5.º, XXXVIII, c). Regra compatível com a garantia constitucional do processo que atende pelo nome de duplo grau de jurisdição. Garantia que tem a sua primeira manifestação no inciso LV do art. 5.º da CF, a saber: ‘Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditória e ampla defesa, com os meios de recurso a ela inerentes’. Precedente: HC 94.567, de minha relatoria”.
O ponto nevrálgico, todavia, reside na (in)constitucionalidade do recurso de apelação interposto pelo Ministério Público em face da decisão absolutória emanada do Tribunal do Júri com fundamento na alínea “d” do inciso III do art. 593 do Código de Processo Penal, visto que a garantia da soberania dos veredictos é inerente à própria liberdade e não pode militar contra o acusado.
Ou seja, não se trata da possibilidade, ou não, da interposição do recurso propriamente dito, pois o duplo grau de jurisdição é um princípio inerente ao devido processo legal e deve existir em harmonia com a soberania dos veredictos, mas sim da possibilidade (in)constitucional da acusação interpor recurso contra decisão absolutória valendo-se do fundamento da “decisão manifestamente contrária à prova dos autos”.
3 A (in)constitucionalidade da apelação criminal interposta pelo Ministério Público com fundamento no art. 593, III, d, do Código de Processo Penal contra veredicto absolutório
Há quem defenda que o recurso com fundamento na alínea “d” teria cabimento somente se a insurgência partisse da defesa, pois, como visto, a soberania dos veredictos se encontra inserta no rol dos direitos e garantias individuais, não podendo, assim, militar contra o acusado (FELBERG, 2013).
No mesmo sentido, diz-se que: “[...] a soberania dos veredictos é instituída como uma das garantias individuais, em benefício do réu, não podendo ser atingida enquanto preceito para garantir a sua liberdade.” Ou seja, não pode ser invocado em prol da condenação (MIRABETE, 1997, p. 351).
E ainda, defende-se que os juízes de fato somente estão atrelados às provas do caderno processual quando decidirem pela condenação, ao passo que a absolvição não necessariamente precisa ser justificada em provas, documentos, testemunhas, podendo, inclusive, partir da própria consciência do jurado (MOREIRA, 2016).
A Suprema Corte Brasileira, entretanto, aponta em sentido oposto, admitindo que a anulação de decisão absolutória do tribunal do júri, por manifestamente contrária à prova dos autos, não viola a regra constitucional que assegura a soberania dos veredictos do júri (STF AgIn 728023/RS, Rel. Min. Joaquim Barbosa, Segunda Turma, julgado em 08.02.2011).
Por outro viés, existem tribunais estaduais que comungam da ideia de que a absolvição do acusado pelos jurados deve prevalecer independentemente do substrato probatório constante dos autos ou de a conduta estar abarcada por qualquer excludente de ilicitude ou culpabilidade justamente em razão da garantia da soberania dos veredictos (TJRS, Apelação Criminal 70043033789, Rel. Des. Marco Antônio Ribeiro de Oliveira, julgado em 21.03.2012).
Denota-se, pois, que a doutrina e a jurisprudência pátria são pacíficas no sentido de que a garantia da soberania dos veredictos deve coexistir em harmonia com o princípio do duplo grau de jurisdição, sendo cabível apelação no âmbito da competência do Tribunal do Júri desde que o Tribunal Togado não reexamine o mérito.
Verifica-se também que existe corrente doutrinária que defende o não cabimento da apelação criminal pela acusação em face de veredicto absolutório com fundamento no art. 593, inciso III, alínea “d” do Código de Processo Penal por conta da garantia constitucional da soberania dos veredictos, inexorável senão em prol da própria liberdade.
A jurisprudência da Suprema Corte, no entanto, inclina-se em sentido oposto, defendendo a possibilidade de anulação da decisão absolutória emanada do Tribunal Popular quando o veredicto for manifestamente contrário às provas dos autos, cabendo a determinação de novo julgamento.
4 Considerações finais
Entende-se que a possibilidade de apelação criminal pelo Ministério Público em face da decisão emanada do Tribunal do Júri deve se limitar às questões técnicas-processuais previstas nas alíneas “a” a “c” do inciso III do art. 593 do Código de Processo Penal, enquanto a insurgência por decisão manifestamente contrária às provas dos autos – alínea “d” do mesmo dispositivo legal – deve ser instrumento exclusivo da defesa em caso de condenação indevida, sob pena de afronta à garantia constitucional da soberania dos veredictos e à própria liberdade do indivíduo.
Notas e Referências
ALMEIDA, Ricardo Vital de. O júri no Brasil – Aspectos constitucionais – Soberania e democracia social. Leme: Edijur, 2005.
GRINOVER, Ada Pellegrini. A democratização dos tribunais penais: participação popular. Revista de Processo, São Paulo, RT, n. 52, 1988.
FELBERG, Rodrigo; FELBERG, Lia. A soberania dos vereditos e a inconstitucionalidade da apelação pelo Ministério Público com fundamento no art. 593, III, d, do Código de Processo Penal. Tribuna Virtual IBCCRIM, São Paulo, ed. 4, p. 8, maio de 2013.
MIRABETE, Julio Fabbrini. Código de Processo Penal interpretado. São Paulo: Atlas, 1997.
MOREIRA, Rômulo de Andrade. Tribunal do Júri – Absolvição fundada no quesito genérico: ausência de vinculação à prova dos autos e irrecorribilidade. Disponível em: < http://romulomoreira.jusbrasil.com.br/artigos/163670878/tribunal-do-juri-absolvicao-fundada-no-quesito-generico-ausencia-de-vinculacao-a-prova-dos-autos-e-irrecorribilidade>. Acesso em: 09.10.2016.
NUCCI, Guilherme de Souza. Tribunal do júri. 5. ed. rev., atual e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2014.
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