A (In)compatibilidade das Medidas Cautelares de Ofício no Projeto do Novo Código de Processo Penal Frente ao Estado Democrático de Direito

14/06/2016

Por Isaías Henrique Silva - 14/06/2016

1 . INTRODUÇÃO 

Tramita no Congresso Nacional a Proposta de Lei do Senado Federal - PLS - n. 156/09, de autoria do Senador José Sarney – PMDB/AP. Esta proposta possui o escopo de reformar o Código de Processo Penal a qual doravante foi convertida em Projeto de Lei – PL – 8045/2010, posto que o PLS nº. 156/09 foi aprovado pelo Senado Federal e, na presente data - 07/10/2015 - encontra-se na Câmara dos Deputados aguardando apreciação da Constituição de Comissão Temporária pela Mesa.

Ocorre que o projeto de lei em comento já é alvo de severas críticas doutrinárias, com as quais em geral concordamos, no sentido de que vários dispositivos do PL 8045/2010 permanecem nos ditames do sistema processual inquisitivo e que foram utilizados pelo Decreto-Lei nº 3.689 de 1941 (atual Código de Processo Penal). Igualmente, o PL 8045/2010 também é criticado por utilizar em vários artigos teorias de paradigmas anacrônicos, não respeitando, evidentemente, o paradigma do Estado Democrático de Direito.

Dentre os vários aspectos polêmicos contidos no indicado PL, escolhemos falar acerca da possibilidade do juiz impor medidas cautelares de ofício no sentido onerar o acusado. Tal prática está expressamente prevista no artigo 525 caput do PL 8045/2010, assim descrita:

Art. 525. No curso do processo penal, as medidas cautelares serão decretadas pelo juiz, de ofício ou a requerimento das partes, observados os princípios do Código e as disposições deste Livro - Grifo nosso. (BRASIL, 2010, s/p).

Dessa forma, o projeto de reforma do CPP manteve a disposição prevista no § 2º do art. 282 do atual Código de Processo Penal, a saber:

§ 2o As medidas cautelares serão decretadas pelo juiz, de ofício ou a requerimento das partes ou, quando no curso da investigação criminal, por representação da autoridade policial ou mediante requerimento do Ministério Público - Grifo nosso. (BRASIL, 1941, s/p).           

Diante do exposto, analisaremos neste artigo se a possibilidade do juiz impor medidas cautelares  de ofício é compatível com o paradigma do Estado Democrático de Direito. Para tanto, aduziremos sobre o conceito de paradigma jurídico, falaremos sobre os paradigmas jurídicos vigentes no Estado Liberal de Direito, Estado Social de Direito e do paradigma do Estado Democrático de Direito.

É sabido que este tema é deveras polêmico e atual. Nota-se que em alguns momentos, em vários setores da sociedade, mormente no Congresso Nacional, a intolerância e o ódio atrapalham o debate e a evolução legislativa. Sim! Ainda estamos muito longe de utilizarmos o diálogo pela busca do consenso, conforme proposto por Jürgen Habermas (1999), citado por Vinícius Thibau (2011), em sua teoria discursiva. Para aqueles que insistem em utilizar o ódio e a falácia da autoridade em seus discursos, deixamos a mensagem escrita por Luís Greco: “quem se ofende por ser destinatário de crítica científica, desqualificando-a como denúncia invejosa, confessa implicitamente que se considera fonte de autoridade e não porta-voz de razões” (2014, p.11). 

CAPÍTULO 01 

OS PARADIGMAS JURÍDICOS 

2.1 O Conceito de Paradigma Jurídico 

É fundamental, antes de investigar se dispositivo presente no § 2º do art. 282 do atual CPP e no artigo 525 caput do PL 8045/2010, o qual permite ao juiz impor medidas cautelares de ofício ao acusado é compatível com o paradigma do Estado Democrático de Direito, estabelecer o conceito do vocábulo paradigma. Tal conceituação variou de acordo com o momento histórico, conforme já esclareceu Nicola Abbagnano (2000), citado por Thibau (2011), ao se reportar aos diferentes signos que o substantivo paradigma teve desde as obras de Platão e Aristóteles, os quais, respectivamente, conceituaram paradigma como modelo e exemplo.

Posteriormente, a acepção contemporânea da palavra paradigma foi introduzida por Thomas S. Kuhn, mencionado por Thibau, na qual os paradigmas tiveram a seguinte conceituação: “as realizações científicas reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência” (2003, p. 13 apud Thibau, 2011, p. 06). Entretanto, com o passar do tempo, Thomas S. Kuhn, indicado por Thibau, explicou que o substantivo paradigma assumiu o significado de matriz disciplinar, in verbis:

Para os nossos propósitos atuais, sugiro “matriz disciplinar”: “ disciplinar” porque se refere a uma posse comum aos praticantes de uma disciplina particular; “matriz” porque é composta de elementos ordenados de várias espécies, cada um deles exigindo uma determinação mais pormenorizada. Todos ou quase todos os objetos de compromisso grupal que meu texto original designa como paradigmas, partes de paradigmas ou paradigmáticos, constituem essa matriz disciplinar e como tais formam um todo, funcionando em conjunto. (KUHN, 2003, p. 226 apud THIBAU, 2011, p. 07).

Na seara das Ciências Sociais aplicadas destacam-se o alemães Klaus Günter e  Jürgen Habermas como sendo os maiores expoentes dos estudos dos paradigmas. Para Günter, citado por Bahia, paradigma é o resultado de uma “interprétation globale cohérente des normes et des interprétations normatives relatives a certaines descriptions généralisées de situation” (1992, p. 294 apud Bahia, 2004, p. 20).

Para Habermas, citado por Thibau, o qual segue a mesma linha teórica de Günter, o paradigma precisa estar em condições de assumir a forma de uma teoria, a qual deve apresentar “caráter de injunção, pois ele determinaria de que modo a lei é entendida e interpretada, e estabeleceria o local, a direção e a abrangência na qual o direito, fixado na forma de leis, pode ser completado e modificado” (2003, p. 130, apud Thibau, 2011, p. 07).

Por derradeiro, o substantivo paradigma será utilizando neste artigo com o significado de “uma teoria quem uma vez institucionalizada e enquanto vigente, apresenta-se como reguladora de outras teorias que lhe guardam correspondência e afinidade científica” (Thibau, 2011, p. 08).

Para a doutrina amplamente majoritária, o Constitucionalismo inicia-se com o advento do Estado Liberal, o qual começou a viger logo após os chamados Estados Absolutistas. Dessa feita, para melhor compreensão do Estado Liberal, primeiramente estudaremos seu antecedente, a saber, os Estado Absolutista. Logo após este feito, analisaremos o paradigma jurídico do Estado Liberal, do paradigma do Estado Social e, por fim, do Estado Democrático de Direito.

2.2 Os Estados Absolutistas 

Iniciado após o Feudalismo, o Estado Absolutista, também chamado pelos historiadores de “Antigo Regime”, predominou na Europa entre os séculos XVI e XVIII. A aludida forma de Estado, em apertada síntese, é o resultado de uma união entre reis e burguesas a fim de superar o sistema feudal.

O Rei absolutista tinha o poder soberano de julgar, proferir normas e de governar a seu bel prazer. Em virtude de o Rei possuir poderes absolutos, essa forma de Estado foi denominada de Estado Absolutista.  Foi em tal período histórico que o Rei Francês Luís XIV proferiu a célebre frase: “O Estado sou eu”.

Os principais teóricos absolutistas foram Nicolau Maquiavel, Thomas Hobbes e Jacques Bossuet.

O italiano Maquiavel (1469 – 1527), o qual é uns dos filósofos mais estudados no mundo ocidental, escreveu o conhecido livro “O Príncipe”, no qual, em suma, defendia que o Estado poderia fazer qualquer coisa para atingir seus fins, ou seja, para Maquiavel “os fins justificam os meios”.

Hobbes (1558 – 1679), autor do livro “O Leviatã” dizia, em resumo, que os homens eram maus por natureza, tendo defendido a ideia de que “o homem era lobo do próprio homem”. Essa ideia de Hobbes o levou a propor o conhecido pacto político no qual as pessoas, para viverem em harmonia, precisariam transferir os seus direitos naturais para o Rei Soberano, o qual teria o propósito de conter o homem selvagem em seu estado de natureza.

Bossuet, (1627 – 1704), a seu turno, escreveu o livro “Política Tirada da Sagrada Escritura”. Em síntese, tal teórico aduzia que o poder real era oriundo de Deus, motivo pelo qual o rei jamais erraria.

2.3 O Estado Liberal de Direito 

O Estado liberal foi aquele que sucedeu o Estado Absolutista, tendo surgido no século XIX. As várias transformações socioeconômicas, causadas principalmente pela Revolução Industrial do século XVIII e pelos grandes avanços científicos ocasionaram mudanças no pensamento dos europeus.

A Revolução Inglesa de XVII também influenciou para essa nova forma de pensar e de agir do homem europeu, sendo considerada um marco importante para o surgimento do Estado Liberal.

A crise do Estado Absolutista foi acompanhada do Iluminismo. Os iluministas defendiam a liberdade de pensamento e igualdade de todos os homens perante as leis. Defendiam a não intervenção do Estado na economia, liberdade de culto, a tripartição dos poderes e a democracia.

Para os iluministas a razão era o ponto de partida para todas as mudanças, pois somente mediante a razão seria possível compreender os fenômenos naturais e sociais.

Os mais conhecidos teóricos iluministas são John Locke, Charles Secondat (mais conhecido como Barão de Montesquieu), François-Marie Arouet (mais conhecido como “Voltaire”) e Jean-Jacques Rousseau.

O inglês John Locke (1632 – 1704) foi o autor da obra “Dois Tratados sobre o Governo”. Em resumo, Locke defendeu a propriedade privada, o livre mercado, a igualdade de todos perante a lei, ou seja, a igualdade dos governantes e dos governados diante da lei, bem como dizia que o homem possui, além da propriedade privada, a vida e a liberdade como direitos naturais.

Em relação ao homem, é interessante salientar o pensamento de Locke no sentido de que, para ele, o homem nasce como uma “folha em branco”.

O francês Charles Secondat (1698 – 1755), mais conhecido como Barão de Montesquieu, se preocupou principalmente em limitar os poderes dos governantes. Dessa forma, redigiu o livro “Do Espírito das Leis” no qual prega a conhecida teoria da “tripartição dos poderes estatais”, a saber, Executivo, Legislativo e Judiciário.

O também francês François-Marie Arouet – Voltaire (1694 – 1778) escreveu a importante obra “Dicionário Filosófico”. Ele defendia a separação entre religião e política, bem como a liberdade de expressão. Foi Voltaire quem criou a conhecida frase: “Posso não concordar com uma palavra que dizes, mas defendo até a morte o teu direito de dizê-las”.

Por fim, para o suíço Jean-Jacques Rousseau (1712 – 1778), autor do livro “Do Contrato Social”, o homem nasce bom, mas a sociedade é capaz de corrompê-lo. Rousseau foi um grande expoente da democracia direta.

Fortemente influenciado pelas ideias de liberdade dos iluministas, o Estado Liberal, também chamado de Estado mínimo, ou de Estado de Intervenção Mínima, era responsável apenas por garantir a justiça e a segurança dos homens. Podemos notar a drástica mudança em relação ao Estado Absolutista, pois este era o “Super-Estado”, responsável por regular todas as relações humanas, bem como suas ideologias.  Cansados dessas influências estatais na vida privada das pessoas, os europeus criaram o “Estado Mínimo”, o qual apenas cuidaria, conforma já dito, da segurança e justiça.

Foi no contexto Liberal que surgiu o Estado de Direito. Nesse sentido, Alexandre de Moraes aduz:

O Estado de Direito é consagrado com o constitucionalismo liberal do século XIX, se destacando a Constituição de Cádis, de 19 de março de 1812, a 1ª Constituição Portuguesa, de 23 de setembro de 1822, a 1ª Constituição Brasileira, de 25 de março de 1824, e a Constituição Belga, de 7 de fevereiro de 1831. (MORAES, 2010, p. 03).

É importante frisar que a expressão “Estado de Direito”, no contexto na qual foi criada, significa que todas as pessoas são submetidas à égide da Lei, incluindo, evidentemente, os governantes.

Agora, com o advento do constitucionalismo liberal, pode-se falar em paradigma jurídico, a saber, o paradigma jurídico do Estado Liberal de Direito.

Diante do exposto, nota-se que o Liberalismo acarretou inúmeras alterações sociais, econômicas e políticas. Nesse sentido, Thibau (2011) aduz que o indivíduo, o qual até então apenas se curvava diante das vontades do Rei, representante da soberania estatal, se viu transformado em cidadão, o qual, norteado pela razão, abandona as tradições e crenças imemoriais a fim de obter autonomia individual para conduzir seus interesses privados.

Com maestria, Thibau explica:

A nova condição assumida pelos indivíduos não determinou apenas uma complexidade social e política – intensificada pela participação por meio do sufrágio universal -, como também econômica, a qual culminou na substituição do método de produção, até então preponderantemente manual. Paradoxalmente, contudo, acenada complexificação motivou, igualmente, a crise do paradigma jurídico – constitucional do Estado Liberal, uma vez que a concepção individualista do exercício dos direitos fundamentais da liberdade, da igualmente e da propriedade foi determinante para a geração de dificuldades que se mostravam incontornáveis, caso inexistente a intervenção estatal. (THIBAU, 2011, p. 13).

Também se pode dizer que o Liberalismo, influenciado principalmente pela Revolução Industrial, deu início à classe social chamada de proletariado.

Considerando que o paradigma jurídico do Estado Liberal de Direito, inspirado nos ideais de liberdade, permitia a todos contratarem da forma que queriam, a autonomia privada era plena, não existindo qualquer forma de dirigismo estatal em contratos de quaisquer espécies, tampouco nos contratos laborais.

Dessa forma, não restava outra escolha para as pessoas que eram afortunadas financeiramente a não ser laborar nas indústrias a bel prazer de seus patrões, pois inexistiam direitos trabalhistas.

Diante disso, vários trabalhadores se revoltaram e iniciaram a quebrar as máquinas (meios de produção), movimento este conhecido como Ludismo.  Posteriormente, esses trabalhadores começaram a se organizar politicamente em sindicatos, dando início ao movimento chamado de “Cartismo”. Nesse prisma, Alexandre de Moraes, com precisão, aduz:

[...] no século XIX, o manifesto comunista de Karl Marx passou a embasar teoricamente o movimento dos trabalhadores, e, juntamente, com os reflexos do cartismo na Inglaterra e à Comuna de 1871, na França, passam a minar as até então sólidas bases do Estado Liberal. (MORAES, 2010, p. 04).

Inspirados nos ideais de Estado-Mínimo, no contexto do paradigma jurídico do Estado Liberal o juiz restringia-se a aplicar a legislação em seu sentido literal, gramatical. Não havia espaço para outras formas de interpretações. Os liberais estavam cansados do Estado Absolutista, do grande “Leviatã”. Far-se-ia necessário que o Poder Judiciário fosse previsível e tivesse o mínimo possível de poder, a fim de se evitar abusos e decisionismos.  Nos dizeres de Montesquieu, o juiz era a “boca da lei”.

O juiz era um aplicador mecânico da lei, um formalista. Não se falava em igualdade material. Parte da doutrina aduz que o juiz liberal era um mero usuário de carimbos, um “carimbador” que tinha a função de averiguar a legalidade formal das demandas a ele submetidas. Dessa forma, no âmbito processual penal, o juiz liberal considerava acusado e acusador em igualdade forma de condições. Nesse sentido, podemos observar os ensinamentos de Fábio Presoti Barros, inspirado em Dierle José Coelho Nunes:

O liberalismo processual idealizou uma forma de igualdade que baseava-se na suposição de que não havia desigualdade entre os indivíduos, acarretando a impossibilidade do processo compensar as desigualdades sociais e econômicas pela atividade jurisdicional e consequentemente reduzindo o contraditório à mera bilateridade de audiência. (BARROS, 2013 p. 03). 

E complementa:

O princípio dispositivo estava ligado à existência de um monopólio das partes em deduzir em juízo. O juiz era impossibilitado de manifestar-se de ofício, tornando-se dependente da vontade das partes, ficando perceptível na concepção liberal que o processo era mera coisa das partes. Com base no princípio dispositivo, o liberalismo processual idealizou a concepção de protagonismo das partes, de tal modo que todo o processo dependia da atuação das partes. O juiz cumpria a função de expectador, passivo e imparcial ao debate ali ocorrido, não podendo causar qualquer embaraço à demanda que as partes discutiam, facilitando a esperteza da parte mais hábil, tendo em vista ter o processo características de um jogo ou uma guerra entre as partes. (BARROS, 2013 p. 04).

Em decorrência de todo o exposto neste tópico, vários europeus perceberam que o Estado Liberal de Direito impossibilitava a busca pela felicidade de todos os cidadãos. Essa conduta omissiva do Estado, na verdade, atendia apenas a burguesia, logo, se fez necessária a criação de um novo modelo de paradigma jurídico. Esse modelo foi criado e chamado de “Estado Social de Direito” e será visto no próximo tópico.

2.4 Estado Social de Direto 

Em resposta aos mencionadas problemas socioeconômicos ocasionados pelo Estado Liberal de Direito, surge o Estado Social, também chamado de Estado de Bem-Estar Social ou de Welfare State, o qual surgiu no início do século XIX.

Igualmente, pode-se afirmar que as graves consequências políticas e econômicas causadas pela 1ª Grande Guerra extinguiram de vez o Estado Liberal e fez surgir a nova fase do constitucionalismo, a saber, o Estado Social. Nesse sentido, Bahia explica com brilhantismo:

As consequências políticas e econômicas da 1ª Guerra Mundial cuidam de sepultar definitivamente o Estado Liberal e fazer surgir uma nova fase do constitucionalismo, a do Estado Social, que implicou numa releitura do que até então se entendia por “liberdade, igualdade e propriedade”, e fez nascer o que tradicionalmente se denominam “direitos sociais”. As Constituições desse período são documentos extensos, “programáticos” e elaboradas por sujeitos que possuíam consciência de que o mero elenco de direitos não possui o condão de fazer com que os mesmos fossem observados. – Grifo nosso. (BAHIA, 2004, p. 05).

Dessa forma, o Estado, antes entendido numa acepção negativa de não intervenção, agora, nesse novo paradigma, é visto sob um prima positivo de agir. O Estado Social não cuida somente da segurança e da justiça, mas também é responsável por garantir direitos trabalhistas e previdenciários, regular a economia, prover educação saúde, entre outros direitos.

Os marcos jurídicos mais relevantes do Estado Social de Direito são as Constituições Mexicana - 1917 - e Alemã (Weimar) – 1919.  A Constituição Mexicana de 1917 possui os principais destaques: quebra do poderio da Igreja Católica, reforma agrária, proteção do trabalho assalariado, atribuição aos direitos trabalhistas a qualidade de direitos fundamentais. A Constituição de Weimar, por sua vez, instituiu a primeira república alemã, a igualdade jurídica entre marido e mulher, equiparou os filhos “ilegítimos” aos “legítimos” com relação à política social do Estado, protegeu à família e à juventude, bem como tutelou direitos trabalhistas e previdenciários.

É muito comum as pessoas confundirem “Estado Social” com “Estado Socialista”, bem como utilizar as duas expressões como sinônimas. Igualmente, como bem salienta Paulo Bonavides (2007), também é usual alguns confundirem com “uma socialização necessariamente esquerdista, da qual venha a ser o prenúncio, o momento preparatório, à transição iminente. Nada disto”.

Diferença marcante entre esses dois modelos estatais consiste na dicotomia capitalismo x socialismo. O Estado Social conserva o capitalismo, ao passo que o Estado Socialista, como o próprio nome sugere, adota o modelo socioeconômico Socialista.

Nesse diapasão, explica Paulo Bonavides:

O Estado social representa efetivamente uma transformação superestrutural por que passou o antigo Estado liberal. Seus matizes são riquíssimos e diversos. Mas algo, no Ocidente, o distingue, desde as bases, do Estado proletário, que o socialismo marxista intenta implantar: é que ele conserva sua adesão à ordem capitalista, princípio cardeal a que não renuncia.

Daí compadecer-se o Estado social no capitalismo com os mais variados sistemas de organização política, cujo programa não importe modificações fundamentais de certos postulados econômicos e sociais. (BONAVIDES, 2007, p. 184).

Ademais, Bonavides explica que a “Alemanha Nazista, a Itália fascista, a Espanha franquista, o Portugal salazarista foram Estados Sociais. Da mesma forma, Estado Social foi a Inglaterra de Churchill e Attle” (2007, p. 184). Ainda de acordo com o consagrado autor, a França, principalmente com a Quarta República e o Brasil, a partir da revolução de 1930 e a República Federal Alemã, antes de sua unificação, são exemplos de Estados Sociais.

 Diante o exposto, a conclusão não poderia ser outra senão o que foi mencionado por Bonavides, a saber: “Ora, evidencia tudo isso que o Estado social se compadece com regimes políticos antagônicos, como sejam a democracia, o fascismo e o nacional-socialismo. E até mesmo, sob certo aspecto, fora da ordem capitalista, com o bolchevismo” (2007, p. 184).

No que tange à função do Poder Judiciário, podemos notar grande diferença em relação ao Judiciário no paradigma do Estado Liberal. Em apertada síntese, o Juiz do Estado Social não era restrito ao mero formalismo legal. Ao invés de ser a “Boca da Lei”, o Juiz no paradigma do Estado Social de Direito, buscar a justiça no caso concreto. O Juiz, nesta acepção, possui amplos poderes.

Oliveira, citado por Thibau, com mestria aduz:

Ao Poder Judiciário, seus Tribunais e juízes, cabe, no exercício da função jurisdicional, aplicar o direito material aos casos concretos submetidos à sua apreciação, de modo construtivo, buscando o sentido teleológico de um imenso ordenamento jurídico. Não se prendendo à literalidade da lei e à de uma enormidade de regulamentos administrativos ou a uma possível intenção do legislador, deve enfrentar os desafios de um Direito lacunoso, cheio de antinomias. E será exercida tal função através de procedimentos que muitas vezes fogem ao ordinário, nos quais deve ser levada mais em conta a eficácia da prestação ou tutela do que propriamente a certeza jurídico-processual-formal: no Estado Social, cabe ao juiz, enfim, no exercício da função jurisdicional, uma tarefa densificadora e concretizadora do Direito, a fim de se garantir, sob o princípio da igualdade materializada, a “Justiça no caso concreto”. (OLIVEIRA, 1998, p. 42, apud THIBAU, 2011, p. 17).

 Assim, percebe-se que o juiz inserido no contexto do Estado Social tinha amplos poderes. O juiz, “homem bom” saberia o que seria “melhor” para as partes e o para o processo, ele teria um suposto privilégio cognitivo. Nesse contexto que foi criada as expressões “poder-dever” do magistrado e “Estado-Juiz”. No âmbito processual vigorava a teoria do processo criada por Oskar Von Bülow, na qual processo era visto como relação jurídica pública entre autor, réu e juiz. Ademais, o direito processual era visto apenas como um instrumento a serviço do direito material, conforme podemos observar nos dizeres de Ada Pellegrini Grinover e outros autores:

O direito processual é, assim, do ponto-de-vista de sua função jurídica, um instrumento a serviço do direito material: todos os seus institutos básicos (jurisdição, ação, exceção, processo) são concebidos e justificam-se no quadro das instituições do Estado pela necessidade de garantir a autoridade do ordenamento jurídico. O objeto do direito processual reside precisamente nesses institutos e eles concorrem decisivamente para dar-lhe sua própria individualidade e distingui-lo do direito material. (GRINOVER, et al., 2009, p. 46).

Em virtude da suposta “supremacia intelectual” que o juiz possuía nesse contexto social, amparada pela teoria de processo como relação jurídica de Bülow e por autores como Grinover e Cândido Dinamarco, surgiu a possibilidade do juiz agir de ofício, tendo o juiz amplas possibilidades de assim agir, em mitigação ao princípio do dispositivo.

A exemplo do que ocorreu com o Estado Liberal, o paradigma do Estado Social de Direito também entrou em crise e foi superado por outro paradigma.

Conforme já demonstrado, o Estado de Bem Estar Social se viabilizou em processos de democráticos e também em experiências totalitárias, como foi o caso do nazismo e fascismo. Dessa forma, o preço foi extremamente alto: holocausto, assassinatos e repressão a adversários políticos, a Segunda Grande Guerra, entre outros.

Nota-se que o Welfare State colocou a autonomia privada das pessoas em um patamar abaixo da autonomia pública. Nesse contexto foi criado um dos princípios basilares do Direito Administrativo, a saber, o princípio da “supremacia do interesse público sobre o interesse privado”, o qual, infelizmente, mesmo sendo anacrônico, ainda é utilizado pela doutrina e jurisprudência majoritárias em nosso país.

Com bem observou Thibau, o paradigma jurídico-constitucional do Estado Social de Direito:

Acabou sufocando aqueles que buscavam respeito a uma multiculturalidade que estava a requerer, também, institucionalização, com o afastamento imediato da vigorante e inquestionada pressuposição estatal de um padrão homogêneo de vida, baseado numa ética supostamente compartilhada por uma comunidade historicamente situada. (THIBAU, 2011, p. 18).

Em virtude dessa falta de respeito à multiculturalidade dos cidadãos, da falta de respeito às minorias e dos grupos vulneráveis, bem como pelas atrocidades cometidas pelo Estado do Bem-Estar Social, o paradigma jurídico-constitucional do Estado Social de Direito não atendia aos anseios de uma sociedade plural, impedindo a sua autodeterminação. Diante disso, foi criado, ainda no século XX, o paradigma jurídico do Estado Democrático de Direito, do qual será falado no tópico subsequente.

2.5 O Paradigma do Estado Democrático de Direito 

Após vários questionamentos ao Estado Social de Direito, surge o Paradigma do Estado Democrático de Direito. Flaviane de Magalhães Pellegrini, parafraseando José Alfredo de O. Baracho Júnior, explica a superação do Estado de Bem-Estar Social:

Este paradigma foi superado em razão da incapacidade de ver o caráter privado essencial à própria dimensão pública, enquanto locus privilegiado da construção e reconstrução das estruturas de personalidade, das identidades sociais e das formas de vida.

É precisamente esse aspecto da dimensão pública que deve agasalhar necessariamente o pluralismo social e político, constituindo-se em condição sine qua non de uma cidadania ativa e efetiva, que se reconstrói quotidianamente na ampliação dos direitos fundamentais à luz da Constituição, vista como um processo permanente.  Exatamente a redução do público ao estatal conduziu aos excessos perpetrados pelo Estado Social e sua doutrina.  (BARACHO JÚNIOR, 2000, p. 167, apud PELLEGRINI, 2004 p. 07).

Como bem afirma Magalhães Pellegrini, “o estado passa a ser questionado e fiscalizado a partir da organização da sociedade civil, que exige sua constante participação no debate tanto das coisas públicas como de seus interesses fundamentais” (2004, p. 07).

Ademais, complementa Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira, citado por Thibau:

No esteio de novos movimentos sociais, tais como o estudantil de 1968, o pacifista, o ecologista, e os de luta pelos direitos das minorias, além dos movimentos contra-culturais, que passam a eclodir a partir da segunda medade da década de 60, a “nova esquerda”, a chama esquerda não estalinista, a partir de duras críticas tanto ao Estado de Bem-Estar – denunciando os limites e o alcance das políticas públicas, as contradições entre capitalismo e democracia -, quanto ao Estado de socialismo real – a formação de uma burocracia autoritária, desligada das aspirações populares -. Cunha a expressão “Estado Democrático de Direito. O Estado Democrático de Direito passar a configurar uma alternativa de superação tanto do estado de Bem-Estar quanto do socialismo real. (OLIVEIRA, 1998, p. 43, apud THIBAU, 2011, p. 19).

Pode-se dizer que Jürgen Habermas é o principal teórico do novo paradigma, que o denomina procedimental, o que significa entender este paradigma a partir da Teoria do Discurso proposta pelo autor em comento.

A teoria habermasiana do Discurso e da Democracia, também conhecida como  Teoria Procedimental da Democracia, segundo Thibau, possui o objetivo de: 

(...) suprir as insuficiências apresentadas nas concepções liberal e republicana de Democracia, aproveitando-se, entretanto dos aspectos positivos de ambas a fim de proporcionar aos cidadãos de uma sociedade multiculturizadada o exercício dos direitos de participação e de fiscalização na produção do Direito.  (THIBAU, 2011, p. 23). 

Assim sendo, Jürgen Habermas explica:

A teoria do discurso, que obriga ao processo democrático com conotações mais fortemente normativas de que o modelo liberal, mas menos fortemente normativas de que o modelo republicano, assume por sua vez elementos de ambas as partes e os combina de uma maneira nova. Em consonância com o republicanismo, ele reserva uma posição central para o processo político de formação de opinião e da vontade, sem no entanto entender a constituição jurídico-estatal como algo secundário; mais que isso, a teoria do discurso concebe os direitos fundamentais e princípios do Estado de direito como uma resposta consequente à pergunta sobre como institucionalizar as exigentes condições de comunicação do procedimento democrático. A teoria do discurso não torna a efetivação de uma política deliberativa dependente de um conjunto de cidadãos coletivamente capazes de agir, mas sim da institucionalização dos procedimentos que lhe digam respeito. Ela não opera por muito tempo com o conceito de um todo social centrado no Estado e que se imagina em linhas gerais como um sujeito acional orientado por seu objetivo. Tampouco situa o todo em um sistema de normas constitucionais que inconscientemente regram o equilíbrio do poder e de interesses diversos de acordo com o modelo de funcionamento do mercado. Ela se despede de todas as figuras de pensamento que sugiram atribuir a práxis de autodeterminação dos cidadãos a um sujeito social totalizante, ou que sugiram referir o domínio anônimo das leis a sujeitos individuais concorrentes entre si” (HABERMAS, 2002, p. 288).

E complementa:

(...) a teoria do discurso conta com a intersubjetividade mais avançada presente em processos de entendimento mútuo que se cumprem, por um lado, na forma institucionalizada de aconselhamentos em corporações parlamentares, bem como, por outro lado, na rede de comunicação formada pela opinião pública de cunho político. (HABERMAS, 2002, p. 289).

Dessa forma, pode-se concluir que o paradigma do Estado Democrático de Direito é criado a partir do aproveitamento dos aspectos positivos do Estado Liberal e do Estado de Bem-Estar Social.

O Estado, no contexto democrático de direito, ao contrário do Estado Social, possui a obrigação de garantir a autodeterminação de todos, sem fazer a qualquer espécie de distinção, seja cor, credo, convicção política, sexo, gênero, condição econômica, etc.

Como bem sintetizam Thibau e outros autores, é necessário que os destinatários das normas se vejam coautores destas. Assim sendo:

Os direitos de participação e de fiscalização apresentam-se como condições para uma almejada coautoria na produção normativa decorrente da observância das autonomias pública e privada, que não se excluem, como se dá nos paradigmas do Estado Liberal e do Estado Social. (THIBAU, et. alii., 2009, p. 08).

Também é importante salientar que no paradigma do Estado Democrático de Direito o Estado o Cidadão (aqui utilizado o termo cidadão em sentido amplo), estão no mesmo plano, não havendo hierarquia entre administradores públicos e administrados. Dessa forma, expressões como “Estado-Juiz”, “Poder-Dever” e “Supremacia do Interesse Público Sobre o Privado” se tornaram anacrônicas. Nesse sentido, Rosemiro Pereira Leal aduz:

O Estado (Status da processualidade) e o Cidadão já deveriam estar em nível de igualdade institucional pela regência de uma instituição maior, que é hoje a jurisdição constitucional pelo processo, não sendo mais possível, no pós-modernismo, sustentar a existência hierárquica de instituições jurídicas ou a prevalência de uma sobre as outras no bojo constitucional, como se fossem caixas de ferramentas jurídicas à escolha e a serviço do Estado Absoluto. A juridificação constitucional das inúmeras instituições, entre as quais o Estado, se dá atualmente por uma articulação normativa horizontalizadora, num plano “poliárquico”, não autárquico-estatal, hierárquico ou autocrático em que se conceberia a primazia de instituições sobre outras ou umas abrangendo outras - Grifos no original. (LEAL, 2014, p. 31). 

No âmbito processual, destaca-se a teoria de Neo-Institucionalista do processo do professor Rosemiro Pereira Leal, a saber:

Não há Processo, nos procedimentos, quando o processo não estiver, antes, institucionalmente definido e constitucionalizado pelos fundamentos normativos do contraditório, ampla defesa, direito ao advogado, e isonomia, ainda que o procedimento se faça em contraditório, porque o contraditório há de ser princípio regente (direito-garantia constitucionalizado) do procedimento, e não atributo consentido por leis ordinárias processuais (codificadas ou não) ou dosado pela atuação jurisdicional em conceitos e juízos personalistas de senso comum, de conveniência ou de discricionariedade do julgador. Na teoria jurídica da democracia, o procedimento só é legítimo quando garantido pela instituição do devido processo constitucional que assegure a todos indistintamente uma estrutura espácio-temporal (devido processo legal e devido processo legislativo) na atuação (exercício), aquisição, fruição, correição e aplicação de direitos - Grifos no original. (LEAL, 2014, p. 32).

O Brasil adotou o paradigma do Estado Democrático de Direito mediante a promulgação da Constituição de 1988, a qual aduz, de forma expressa, a adoção do desse paradigma em seu artigo 1º, caput: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito” - Grifo nosso (1988, s/p). Entretanto, antes de 1988 vigia o paradigma do Estado Social de Direito. Infelizmente, muitas leis, bem como parte da doutrina e jurisprudência ainda não se adaptaram ao novo paradigma.

Tal dificuldade de adaptação se deve principalmente ao fato de que o Direito não é uma Ciência Exata (para alguns, Direito não é Ciência, pois Ciência seria apenas aquilo que se pode provar empiricamente), logo, ao contrário da física, por exemplo, na qual quando alguma teoria é superada, todos os físicos passam a estudar com base nas teses novas, como foi o caso da mecânica clássica, a qual foi superada pela teoria da relatividade de Albert Einstein. No Direito, “Ciência do Dever-Ser”, tal fato é, na prática, impossível, as mudanças aos novos paradigmas ocorrem paulatinamente. Imagine se com a promulgação da CF/88 todas as normas infraconstitucionais, as quais foram criadas em sua ampla maioria no paradigma do Estado Social fossem declaradas não recepcionadas pela nova Constituição? Haveria um vácuo legislativo. Também é importante ressaltar que muitos juristas formaram-se no contexto do Estado Social e seria difícil para todos mudarem antigos posicionamentos de forma abrupta.

Após essa explanação sobre paradigmas, veremos, no próximo capítulo, se a possibilidade do Juiz impor medidas cautelares de ofício em desfavor do acusado é compatível ou não com o paradigma vigente em nosso país. Tal prática, conforme veremos, é permitida atualmente pelo atual código de processo penal, outrossim, no  Projeto de Lei número 8045/2010. 

CAPÍTULO 2 

MEDIDAS CAUTELARES DE OFÍCIO E ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO 

3.1 Aplicação de Cautelares de Ofício no atual Código de Processo Penal 

O código de processo penal vigente (Decreto-Lei nº 3.689 de 03 de outubro de 1941) admite que o juiz decrete medidas cautelares de ofício em desfavor do réu, no curso da ação da penal, conforme pode ser observado no §2º de seu artigo 282: 

§ 2o As medidas cautelares serão decretadas pelo juiz, de ofício ou a requerimento das partes ou, quando no curso da investigação criminal, por representação da autoridade policial ou mediante requerimento do Ministério Público - Grifo nosso. (BRASIL, 1941, s/p). 

O CPP, em seu artigo 319 e incisos expõe, de forma taxativa, quais são as medidas cautelares diversas da prisão, a saber:

Art. 319.  São medidas cautelares diversas da prisão:

I - comparecimento periódico em juízo, no prazo e nas condições fixadas pelo juiz, para informar e justificar atividades;

II - proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações; 

III - proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante; 

IV - proibição de ausentar-se da Comarca quando a permanência seja conveniente ou necessária para a investigação ou instrução; 

V - recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos; 

VI - suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais; 

VII - internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável (art. 26 do Código Penal) e houver risco de reiteração; 

VIII - fiança, nas infrações que a admitem, para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial. (BRASIL, 1941, s/p).

Ademais, o art. 321 do CPP complementa no sentido de que se ausentes os requisitos que autorizam a decretação da prisão preventiva, o juiz deverá conceder liberdade provisória, impondo, se for o caso, as cautelares indicadas art. 319, as quais foram retro indicadas.

3.2 Cautelares de Ofício no Projeto de Lei  8045/2010 

O Projeto de Lei número 8045/2010 manteve a possibilidade do juiz impor cautelares de ofício no curso da ação penal, a saber:

Art. 525. No curso do processo penal, as medidas cautelares serão decretadas pelo juiz, de ofício ou a requerimento das partes, observados os princípios do Código e as disposições deste Livro - Grifo nosso. (BRASIL, 2010, s/p). 

O rol de medidas cautelares no projeto do Novo Código de Processo Penal foi ampliado, a saber:

Art. 533. São medidas cautelares pessoais: I – prisão provisória; II – fiança; III – recolhimento domiciliar; IV – monitoramento eletrônico; V – suspensão do exercício de profissão, atividade econômica ou função pública; VI – suspensão das atividades de pessoa jurídica; VII – proibição de frequentar determinados lugares; VIII – suspensão da habilitação para dirigir veículo automotor, embarcação ou aeronave; IX – afastamento do lar ou outro local de convivência com a vítima; X – proibição de ausentar-se da comarca ou do País; XI – comparecimento periódico em juízo; XII – proibição de se aproximar ou manter contato com pessoa determinada; XIII – suspensão do registro de arma de fogo e da autorização para porte; XIV – suspensão do poder familiar; XV – bloqueio de endereço eletrônico na internet; XVI – liberdade provisória. (BRASIL, 2010, s/p).

3.3 Medidas Cautelares de Ofício e Estado Democrático De Direito

Entendemos ser incompatível com o paradigma do Estado Democrático de Direito qualquer disposição legal que confira poderes ao Juiz, pra que, de ofício,  prejudique o réu. Tal prática é típica do paradigma Welfare State, no qual vigorava a figura do “Estado-Juiz”; Não se pode, conforme já foi dito, no paradigma do Estado Democrático de Direito, haver decisão em que não haja participação das partes. Ora! O correto, sob o prisma democrático, seria caso não houver necessidade do réu figurar preso em caso de prisão preventiva, que ele fosse liberado sem nenhum ônus ou que o Ministério Público, ou querelante, a depender do caso, pedisse ao Juiz a imposição de uma ou mais medidas cautelares. Igualmente, considerando também o direito de contraditório e fiscalização, bem como da presunção de inocência, o réu deveria ser ouvido antes de a ele ser aplicada as cautelares em comento.

Sob o prisma processual, ao admitir-se que o Juiz imponha medidas cautelares de ofício ao acusado, aplicaremos a já mencionada teoria da relação processual de Oskar Von Bülow, na qual processo era visto como relação jurídica pública entre autor, réu e juiz. Nesta perspectiva, sob suposta supremacia intelectual, o juiz poderia agir amplamente de ofício, ao contrário do que ocorre na teoria neo-institucionalista de processo cunhada por Rosemiro Pereira Leal, a qual é compatível com o Estado Democrático de Direito.

Por fim, é importante lembrar que, conforme transcorrido neste artigo, o paradigma do Estado Democrático de Direito foi concebido a fim de utilizar os pontos positivos do Estado Liberal e do Estado de Bem Estar Social e, evidentemente, excluir os aspectos negativos desses paradigmas. Destarte, sob o prisma Democrático, é aceitável que o Juiz aja de ofício no âmbito processual penal, mas desde que para beneficiar o réu, como ocorre nas hipóteses de concessão de ordem de Habeas Corpus de ofício. Isso já seria possível na concepção do Estado Social, mas jamais no Liberal, no qual o juiz era um mero formalista que se preocupava somente em garantir a igualdade formal das partes. Contudo, não podemos utilizar o aspecto negativo do Estado Social, no qual o juiz poderia agir amplamente de ofício, inclusive para prejudicar o réu. 

4CONCLUSÃO

De acordo com nosso estudo, a conclusão não poderia ser diferente de que a possibilidade do juiz impor ao réu, de ofício, e sem ouvi-lo previamente, medidas cautelares que o onerem é incompatível com o paradigma jurídico-constitucional do Estado Democrático de Direito.

Este paradigma, além de ser o adotado pela nossa Constituição, sem dúvida, o qual demorou séculos para ser construído, é o garante a uma sociedade pluralista sua autodeterminação. Urge lembrar que o paradigma liberal não atendeu as necessidades de todos, visto que defendia apenas a mera igualdade formal, seja no âmbito processual, seja nas demais relações humanas em geral.  Igualmente, o paradigma do Estado Social, conforme vimos, sob o argumento de uma suposta superioridade cognitiva do Estado gerou autoritarismo, como foi o caso da Alemanha Nazista, Itália Fascista e da ditadura militar no Brasil.

Assim, diante de oportunidade ímpar de reforma do código de processo penal pátrio, mediante o Projeto de Lei nº 8045/2015, sugerimos que seja suprimida a possibilidade o juiz impor medidas cautelares, de ofício, em desfavor do réu, posto que tal prática, a nosso ver, não se compatibiliza com as bases normativas do paradigma jurídico-constitucional do Estado Democrático de Direito, sendo, lamentavelmente, resquício do anacrônico e superado paradigma do Estado Social de Direito.


Notas e Referências:

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BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 06 jun. 2016.

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HABERMAS, Jürgen. A inclusão do Outro: estudos de Teoria Política. Tradução de George Sperber e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2002. 404p.

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria Geral do Processo: primeiros estudos. Rio de Janeiro: Forense, 2014. 317p.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional – 25. Ed. – São Paulo: Atlas, 2010. 922p.

PASSOS, Fábio Presoti. Processo Constitucional e Jurisdição no Estado Democrático de Direito. E-civitas Revista Científica do Departamento de Ciências Jurídicas, Políticas e Gerenciais do UNI-BH Belo Horizonte, vol. VI, n. 1, jul-2013.

PELLEGRINI, Flaviane de Magalhães Barros.  O paradigma do Estado Democrático de Direito e as Teorias do Processo. Revista Eletrônica da Faculdade Mineira de Direito - virtualjus, Belo Horizonte, v. 1, n. ano 3, 2004.

THIBAU, Vinícius Lott. Presunção e Prova no Direito Processual Democrático. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2011. 136p.

THIBAU, Vinícius Lott... [et alii] Breves Considerações Teóricas Sobre os Paradigmas do Estado Liberal, Do Estado Social e do Estado Democrático de Direito.  Belo Horizonte, 2009. Disponível em: < http://www.domtotal.com/direito/pagina/detalhe/23712/breves-consideracoes-teoricas-sobre-os-paradigmas-do-estado-liberal-do-estado-social-e-do-estado-democratico-de-direito>. Acesso em: 07 out. 2016.


Orientador (o presente artigo trata-se de um TCC a fim de obter o título de especialista em Ciências Criminais na PUC-MG): Adilson de Oliveira Nascimento, Doutor (2007) e mestre (2002) em Direito Processual Penal pela PUC/MG. 


Isaías Henrique Silva. Isaías Henrique Silva ocupa o cargo público de Investigador de Polícia Civil de Minas Gerais. Bacharel em Direito (ESDHC - 2014). É Especialista em Ciências Penais (PUC MINAS - 2015). Também é professor da Academia de Polícia Civil de Minas Gerais - ACADEPOL/MG.. .


Imagem Ilustrativa do Post: Behind bars :) // Foto de: DarioNC // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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