A IMPOSSIBILIDADE DA CONDUÇÃO COERCITIVA DE TESTEMUNHA PARA PRESTAR DECLARAÇÃO NO INQUÉRITO POLICIAL, SEM AUTORIZAÇÃO JUDICIAL

19/05/2020

De proêmio, salientamos que o tema em questão é de extrema importância para o cumprimento fiel do Estado Democrático de Direito.  Ademais, cumpre relembrar que a liberdade é um dos pressupostos para que exista Democracia em determinado Estado, ao lado da supremacia da vontade do povo e preservação da igualdade.

Nesta vereda, se observarmos brevemente a história, concluímos que o Estado Democrático moderno nasceu das lutas contra o absolutismo e autoritarismo, a fim de preservar os direitos naturais da pessoa humana.

Segundo o prisma do grande Professor Dalmo de Abreu Dallari “buscando-se a preservação da igualdade de possibilidades, com liberdade, a democracia deixa de ser um ideal utópico para se converter na expressão concreta de uma ordem social justa”.

Em consequência disso, a experiência findada ao longo dos anos é capaz de revelar que, a melhor ditadura causa mais prejuízos do que a pior democracia.

Em última análise, se faz necessário trazer esta reflexão para adentrarmos com o pensamento crítico sobre o tema proposto.

Neste passo, conseguimos vislumbrar ao longo da história inúmeras batalhas da sociedade em prol de sua liberdade. Assim, após a Revolução Francesa em 1789, a Déclaration des Droits de l'Homme et du Citoyen   preconizou os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem. Por sua vez, em seu artigo IV discorria

“A liberdade consiste em poder fazer tudo quanto não incomode o próximo; assim o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem limites senão nos que asseguram o gozo destes direitos. Estes limites não podem ser determinados senão pela lei. ”

Neste momento, adentrando no princípio da liberdade, estimulados pelos direitos de primeira geração, impõe ao Estado um dever de não fazer. Em consequência disso, é conhecido como direitos negativos, liberdades negativas, ou melhor, direitos de defesa do indivíduo frente ao Estado.

Atualmente, a liberdade está prevista em diversos artigos da nossa Constituição Federal do Brasil, dentre eles, gostaria de destacar dois incisos, ambos do artigo 5º, inciso XV “ é livre a locomoção no território nacional em tempos de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens”.

 Posteriormente, inciso LXI “ninguém será preso em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada pela autoridade judiciaria competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar definidos em lei.

Pois bem, é notável que estamos tratando de um direito de extrema importância em nosso ordenamento jurídico. Inclusive, entendemos que o princípio da liberdade está atrelado ao da dignidade da pessoa humana.

Posto isso, mostra-se desarrazoado permitir a condução coercitiva de testemunha para prestar declarações em sede policial, sem autorização judicial.

Isto porque, conduzir a testemunha coercitivamente, ainda que por pouco tempo, viola garantias previstas na Constituição Federal, dentre elas; restrição de liberdade de locomoção, a dignidade da pessoa humana e nos casos mais acentuados podemos acrescentar a violação de domicilio.

Entretanto, nem todos os direitos fundamentais se revestem de caráter absoluto, uma vez que, razões de interesse público legitimam os órgãos estatais limitar o direito de liberdade do indivíduo, a fim de proteger outros valores constitucionais. 

Em consequência disso, como se nota, o papel da testemunha tanto no inquérito policial, quanto no processo penal revela-se altamente importante.

Neste sentido, para Renato Brasileiro “A testemunha é a pessoa desinteressada e capaz de depor que, perante a autoridade judiciaria, declara o que sabe acerca de fatos percebidos por seus sentidos que interessam à decisão de conhecimento”.

Outrossim, o Código de Processo Penal, a partir do artigo 203, prevê que a testemunha tem o dever de falar a verdade, bem como não poderá se eximir da obrigação de testemunhar, salvo em casos específicos determinados por lei. Assim, se intimada e não comparecer pode ser conduzida coercivamente pela autoridade judiciaria, podendo ser aplicada multa, sem prejuízo do processo penal por crime de desobediência.

 A par disso, via de regra, a testemunha carrega um bom arcabouço probatório que pode ser utilizado em favor do réu, ou em prol da acusação. Por consequência, não há como revestir aos direitos fundamentais um caráter absoluto, pois na maioria das vezes se faz necessário a mitigação desses direitos em favor do interesse público.

Contudo, muita cautela neste momento, pois devemos evitar a banalização dos direitos fundamentais.

Segundo os Professores Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo

Seria absurdo que a lei pudesse restringir ilimitadamente os direitos fundamentais, afetando seu núcleo essencial. Extirpando o conteúdo essencial da norma constitucional, suprimindo o cerne da garantia originariamente outorgada pela Constituição.

Por isso posto, é de extrema importância para o andamento do inquérito policial que a testemunha compareça para prestar declarações, contribua e apresente a sua versão sobre os fatos, a fim de elucida-los.

Porém, caso a testemunha seja intimada e não compareça. Sob a luz da reforma realizada no Código de Processo Penal, em virtude da lei nº 13.964/2019. A autoridade policial deverá requerer a condução coercitiva da testemunha ao juiz competente, ou melhor, futuramente, ao juiz das garantias, o qual, após manifestação do Ministério Público, decidirá sobre o deferimento ou indeferimento da diligência.

Em verdade, nos artigos 13, inciso III, 13-B, 13 § 2º, e 13 § 4, do Código de Processo Penal, os quais não foram reformados pela lei nº 13.964/2019, já faziam previsão do controle de legalidade do inquérito policial, isto é, a condução coercitiva de testemunha sem autorização judicial, já se considerava totalmente ilegal, analisando a Constituição Federal e o Código de Processo Penal.

O presente fundamento, tem seu respaldo acentuado com o novo artigo 3-B, do Código de Processo Penal, atualmente suspenso por decisão do Supremo Tribunal Federal, com a seguinte redação

O juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário”.

Ora, a testemunha possui o direito de liberdade de locomoção, bem como a dignidade da pessoa humana, são direitos fundamentais do ser humano. Sendo assim, possuem reserva de jurisdição. Não se pode permitir a condução coercitiva de testemunha sem autorização judicial, sob pena de violação da Constituição Federal, inclusive ao próprio Código de Processo Penal.

Neste sentido, dispõe o artigo 218, do Código de Processo Penal:

Se, regularmente intimada, a testemunha deixar de comparecer sem motivo justificado, o juiz poderá requisitar à autoridade policial a sua apresentação ou determinar seja conduzida por oficial de justiça, que poderá solicitar o auxílio da força pública.

Percebe-se aqui, que a lei reserva a jurisdição ao juiz para autorizar a condução coercitiva de testemunha na fase judicial, por qual motivo não deveria ser aplicado a fase do inquérito policial.

Como se nota, a reserva de jurisdição atribuída ao juiz pelo legislador, possui a finalidade de resguardar os direitos fundamentais dos indivíduos.

O Professor Aury Lopes Junior   nos ensina que:

A legitimidade democrática do juiz deriva do caráter democrático da Constituição, e não da vontade da maioria. O juiz tem uma nova posição dentro do Estado de Direito, e a legitimidade de sua atuação não é política, mas constitucional, e seu fundamento é unicamente a intangibilidade dos direitos fundamentais. É uma legitimidade democrática, fundada na garantia dos direitos fundamentais e baseada na democracia substancial.

Inobstante a isso, em que pese a atuação da autoridade policial seja de suma importância para a persecução penal, alguns limites devem ser preservados.

De igual forma, se manifestou o Ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello, no julgamento da ADPF 395 e 444, vejamos:

O que se revela importante registrar, neste ponto, é uma simples, porém necessária, observação: a função estatal de investigar não pode resumir-se a uma sucessão de abusos nem deve reduzir-se a atos que importem em violação de direitos ou que impliquem desrespeito a garantias estabelecidas na Constituição e nas leis da República. O procedimento estatal – seja ele judicial, policial, parlamentar ou administrativo – não pode transformar-se em instrumento de prepotência nem converter- se em meio de transgressão ao regime da lei.

Os fins não justificam os meios. Há parâmetros ético-jurídicos que não podem e não devem ser transpostos pelos órgãos, pelos agentes ou pelas instituições do Estado. Os órgãos do Poder Público, quando investigam, processam ou julgam, não estão exonerados do dever de respeitar os estritos limites da lei e da Constituição, por mais graves que sejam os fatos cuja prática tenha motivado a instauração do procedimento estatal. (grifo nosso)

Ademais, no dia 14 de julho de 2018, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela vedação da condução coercitiva do réu para o interrogatório, por ser incompatível com a Constituição Federal, na ADPF 395 e 444:

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Sessão Plenária, sob a presidência da Senhora Ministra Cármen Lúcia, na conformidade da ata de julgamento e das notas taquigráficas, por maioria e nos termos do voto do Relator, julgar procedente a arguição de descumprimento de preceito fundamental, para pronunciar a não recepção da expressão “para o interrogatório”, constante do art. 260 do CPP, e declarar a incompatibilidade com a Constituição Federal da condução coercitiva de investigados ou de réus para interrogatório, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de ilicitude das provas obtidas, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado. Destacam, ainda, que esta decisão não desconstitui interrogatórios realizados até a data do presente julgamento, mesmo que os interrogados tenham sido coercitivamente conduzidos para tal ato. (grifo nosso)

Além do mais, cumpre ressaltar que no referido acordão por se tratar de direitos fundamentais inerentes ao réu, fora analisado o princípio da presunção de inocência, da não culpabilidade, da dignidade da pessoa humana, por fim, da liberdade de locomoção.

Ora, o direito da dignidade da pessoa humana e da liberdade de locomoção, também se estendem as testemunhas, são direito assegurados a qualquer ser humano.

Por tais razões, de fato, a testemunha não pode se eximir das obrigações de depor e falar a verdade. Entretanto, os respectivos deveres não possuem condão de legitimar a violação do direito de liberdade de locomoção, como também o direito da dignidade da pessoa humana.

Sendo assim, é inconcebível legitimar a autoridade policial para conduzir coercitivamente testemunha para prestar declaração no inquérito policial, sem autorização judicial. A presente ilegalidade deve ser combatida de forma voraz.  Isto porque, como bem fundamentado pelo decano Celso de Mello “os fins não justificam os meios”.

 

Notas e Referências

1.Alexandrino, Marcelo, Paulo, Vicentino. Direito Constitucional Descomplicado, Rio de Janeiro, 18º edição, Forense; São Paulo, Método, 2019.p. 107

2.Brasileiro, Renato, Manual de Processo Penal, Salvador, 5º edição, Juspodivm, 2017. p. 694.

3.DALARRI, Dalmo de Abreu, Elementos de Teoria Geral do Estado, São Paulo, 3º edição, Saraiva. 1976, p. 268

4.Lopes, Aury Jr., Direito Processual Penal, São Paulo, 13º edição, Saraiva, 2016, p. 235

5- ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL Nº 395 e 444. Acesso em:  www.stf.jus.br

6- DECRETO-LEI Nº 3.689, DE 3 DE OUTUBRO DE 1941. Acesso em: www.planalto.gov.br.

7- CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988. Acesso em www.planalto.gov.br

 

 

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