A IMPORTÂNCIA DO CONHECIMENTO ACERCA DAS FORMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR NO COMBATE À VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER, PARA ALÉM DA VIOLÊNCIA FÍSICA

19/12/2022

Como é sabido, tem-se, dentro a previsão disposta na lei nº 11.340/2006 – Lei Maria da Penha, as formas de violência, quais seja, física, psicológica, moral, sexual e patrimonial, se fazendo necessário e prudente analisar como o conhecimento acerca dessas formas de violência podem auxiliar no combate à violência doméstica contra a mulher, para além da violência física.

Des modo, inicialmente para melhor compreensão da problemática a ser abordada, cumpre destacar que a violência doméstica ocorre de forma cíclica, ou seja, “as agressões cometidas em um contexto conjugal ocorrem dentro de um ciclo que é constantemente repetido”[1], sendo que esse ciclo da violência doméstica estruturado em três fases, são elas: a fase da tensão, a fase da violência e a fase do arrependimento. 

[...]

Foram identificados comportamentos habituais que ocorrem na violência doméstica, entre ofensor e vítima. Tais comportamentos fazem parte do ciclo da violência, composto de três fases, e ajudam na percepção da dinâmica das relações violentas e da dificuldade da mulher de sair da situação.1ª fase: Ato de tensão – em um primeiro momento, o ofensor se utiliza de insultos, ameaças, xingamentos, raiva e ódio. Tais comportamentos fazem com que a vítima se sinta culpada, com medo, humilhada e ansiosa. A tendência é que o comportamento passe para a fase 2.2ª fase: Ato de violência – nessa fase, as agressões tomam uma maior proporção, levando a vítima a se esconder na casa de familiares, buscar ajuda, denunciar, pedir a separação ou, até mesmo entrar em um estado de paralisia impedindo qualquer tipo de reação.3ª fase: Ato de arrependimento e tratamento carinhoso, conhecido também como “Lua de mel’’ – o ofensor se acalma, pede perdão, tenta apaziguar a situação afirmando que nunca mais vai repetir tais atos de violência. Isso faz com que a vítima lhe dê “mais uma chance’’, inclusive por fatores externos como o bem-estar dos filhos e da família. Por fim, quando essa fase se encerra, a 1ª fase volta a ocorrer, caracterizando o ciclo de violência. A repetição cíclica das etapas tende a ocasionar que a agressão seja cada vez mais grave e habitual. Quanto mais vezes esse ciclo se completa, menos tempo vai precisar para se completar na próxima vez. A intensidade e gravidade dos eventos aumentam com o tempo, de maneira que as fases vão gradualmente se encurtando, o que eventualmente leva a 1ª e a 3ª fase a desaparecerem com o tempo. Então, cria-se o hábito do uso da violência naquele relacionamento. A ação da vítima de questionar, argumentar ou queixar-se dá início a mais um ciclo de violência, ou incrementa o que já estava em curso[2]

A partir do conceito apresentado acima, nota-se que na fase da tensão já ocorre episódios de violência, na medida em que a vítima já é ameaçada e insultada pelo seu companheiro, ou seja, antes mesmo do denominado ato de violência, que é o ápice da violência doméstica, a vítima vem sofrendo agressões diferentes de agressão física.

Ainda, de acordo com a pesquisa A Vitimização de Mulheres no Brasil[3], realizada em 2021 pelo Fórum de Segurança Pública Brasileira, as violências sofridas pelas brasileiras de 16 anos ou mais durante a pandemia de COVID-19 foram, principalmente, as ofensas verbais como insultos e xingamentos. Acerca da referida pesquisa, é importante mencionar alguns dados apresentados:

[...]

4,3 milhões de mulheres (6,3%) foram agredidas fisicamente com tapas, socos ou chutes. Isso significa dizer que a cada minuto, 8 mulheres apanharam no Brasil durante a pandemia do novo coronavírus. O tipo de violência mais frequentemente relatado foi a ofensa verbal, como insultos e xingamentos. Cerca de 13 milhões de brasileiras (18,6%) experimentaram este tipo de violência. 5,9 milhões de mulheres (8,5%) relataram ter sofrido ameaças de violência física como tapas, empurrões ou chutes. Cerca de 3,7 milhões de brasileiras (5,4%) sofreram ofensas sexuais ou tentativas forçadas de manter relações sexuais. 2,1 milhões de mulheres (3,1%) sofreram ameaças com faca (arma branca) ou arma de fogo. 1,6 milhão de mulheres foram espancadas ou sofreram tentativa de estrangulamento (2,4%). 

No que se refere aos dados apresentados acima, observa-se que a violência verbal é a forma de violência mais relatada pelas mulheres, seja ela decorrente de insultos, xingamentos ou ameaça, demonstrando que a violência não decorre apenas da agressão física.

Em consonância com o exposto acima, é pertinente destacar o seguinte trecho oitiva da vítima extraída dos autos de Recurso de Apelação Criminal nº 0002806-98.2017.8.16.0128: 

[...]

Em juízo relatou que (mov. 63.3): “[...] Eu e o Luiz Carlos estávamos casados há 20 (vinte) anos. Não estávamos casados no papel, apenas morávamos juntos. Nesse dia fomos até o pesqueiro do meu tio, ao retornar estávamos nos preparando para dormir, ele estava bêbado. Eu confesso que eu também tinha bebido nesse dia. A gente foi dormir. Nessa noite ele quis ter relação sexual comigo, mas eu não quis. Começou o xingamento por conta disso. Ele estava totalmente bêbado. Nisso começou a agressão e os xingamentos. Eu disse que queria me separar dele. Tudo era motivo dele falar assim: “nada que duas balas não resolvam”. Teve mais discussões e ele acabou me agredindo. Ele tentou trancar a porta, foi nessa oportunidade que meu filho entrou no quarto. Foi aquele ‘tropé’ dentro de casa. Ele me segurou pelos braços, deixando marcas. Ele me segurou na hora em que eu queria sair de dentro de casa. Eu não bati dele. Não foi a primeira vez que isso aconteceu, pois já tinha acontecido outras vezes. Eu nunca tive coragem de denuncia-lo. Ele sempre me agredia verbalmente, essa foi a primeira vez que ele me agrediu fisicamente. Eu não agredi ele fisicamente, nós nos agredimos verbalmente. Eu acho que ele tinha intenção de me agredir fisicamente. Após os fatos acabamos voltando, pois ele me prometeu que iria mudar. Só que após que ele voltou a beber, começou a me xingar novamente, razão pela qual eu saí de casa e nós não voltamos mais.” (depoimento transcrito da sentença)[4]

A partir do disposto citado acima, é possível observar as três fases do ciclo da violência: em um primeiro momento a vítima contraria a vontade do agressor e ele a xinga (ato de tensão); posteriormente, os xingamentos se intensificam, as ameaças se iniciam e acabam cominando na violência física (ato de violência); por fim, o agressor promete mudar (fase da lua de mel), contudo, a suposta mudança não ocorre e a violência se reinicia.

Analisando a jurisprudência dos tribunais brasileiros, é possível observar que, relatos como o apresentado acima, são recorrentes nos processos decorrentes de violência doméstica, ou seja, as vítimas sofrem reiteradas vezes agressões verbais, todavia só denunciam quando a são agredidas fisicamente e nem sempre denunciam[5].

Ainda, frases como “eu nunca bati nela” também são ouvidas nas audiências de violência doméstica e em grupos de apoio de agressores de violência doméstica. Nesse sentido, é importante destacar depoimento de réu de violência doméstica extraído do artigo “Judiciarização dos Conflitos de Gênero Heteroafetivos: dando voz aos homens autores de violência conjugal”[6]

“Eu estou chateado, Doutor, de estar aqui. Eu sei que ela falou essas coisas aí, e acho que naquele dia eu briguei muito com ela sim. Mas, não bati nela, como ela tá falando aí. Eu posso falar? Olha só, quando a gente se conheceu, a coitada não tinha aonde cair morta. Dei tudo pra ela. Achei que a gente fosse formar uma família, sabe? Eu queria ter filhos. Eu sou mais que ela. No início foi muito bom. Depois ela começou a mudar. Só reclamava. Eu trabalho de sol a sol na oficina, e ela já cansou de ir lá e xingar, gritar. Na frente de clientes e tal. Ela não sabe a hora de parar. Eu sei que eu errei, mas não sou assim, Doutor.” 

No depoimento citado acima, “percebe-se que o homem procura atribuir a responsabilização pela violência cometida à provocação da mulher”[7], bem como é perceptível que, mesmo diante do juiz, o réu se coloca em um patamar de superioridade e tenta diminuir a vítima.

Por fim, importa observar que a violência doméstica não é só violência física, inclusive, a violência verbal é tão comum quando a violência física[8] e, portanto, é importante se atentar a alguns sinais podem indicar que, futuramente, sua relação possa se tornar violenta.

De acordo com a Cartilha Enfrentando a Violência contra a Mulher da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres[9], são indicativos de que a relação possa se tornar violenta: o comportamento controlador, hipersensibilidade, rápido envolvimento amoroso, expectativas irrealistas com relação à parceira, crueldade com animais e criança e o abuso verbal.

À vista do exposto, nota-se que é importante que as mulheres conheçam as formas de violência doméstica e familiar, bem como avaliem determinados comportamentos do seu parceiro que possa indicar que ele venha a ser violento, uma vez que, em muitos casos, antes da violência física, a mulher sofre com pequenos episódios de violência (insultos e ameaças).

À vista do exposto, Sales e Cogo[10] ensinam: 

[...]

A   violência   doméstica   se   tornou   um   fenômeno   social,   atingindo   a   população   tanto privada quanto a pública, assim resultando a necessidade de estabelecer mecanismos de prevenção à violência,   pensando   nisso,   o   presente   projeto   possui   como   foco   principal,   informar   a   sociedade sobre a Lei 11.340 de 2006 conhecida como Lei Maria da Penha, pois trata-se um dos principais instrumentos legal para coibir e punir a violência doméstica, muito popular, porém desconhecida por muitos em seus aspectos formais, pois a violência não se limita somente na física, mas também psicológica, moral, sexual e patrimonial. É preciso alterar essa forma de racionalizar a violência doméstica, em suas modalidades básicas (lesão e ameaça), pois, a partir delas, surgem formas mais graves de criminalidade, como o homicídio e o estupro. A educação é um meio fundamental para este conhecimento, que resultará prevenção e erradicação da violência doméstica. 

Por fim, cumpre destacar que, a violência contra a mulher deve ser combatida em todas as suas formas.

Ademais, quando vítima de violência, é importante que a mulher busque ajuda. Atualmente, há uma ampla rede de proteção e enfrentamento à violência contra a mulher[11] como, por exemplo, as Delegacias das Mulher, a Casa da Mulher Brasileira e a Central de Atendimento à Mulher (Ligue 180), bem como e emergência, vítima poderá ligar para a Central 190 da Polícia Militar e solicitar apoio policial.

 

Notas e referências

[1] QUEM é Maria da Penha. Instituto Maria da Penha, 2018.

[2] BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Ciclo da Violência. Disponível em: https://www.tjpr.jus.br/web/cevid/ciclo-violencia. Acesso em: 22 nov. 2022.

[3] FÓRUM Brasileiro de Segurança Pública. Visível e invisível: A Vitimização de mulheres no Brasil. 3 ed., 2021. Disponível em: <https://assets-dossies-ipg-v2.nyc3.digitaloceanspaces.com/sites/3/2021/06/relatorio-visivel-e-invisivel-3ed-2021-v3.pdf>. Acesso em: 22 nov. 2022.

[4] BRASIL.  Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Recurso de Apelação Criminal nº 0002806-98.2017.8.16.0128. Apelante: Luiz Carlos Mendes Da Silva. Apelado: Ministério Público do Estado do Paraná. Relator: Desembargador Paulo Edison de Macedo Pacheco. Julgamento em 09/12/2021. Lex: jurisprudência do TJPR publicado no E-DJ 13/07/2022. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/tj-pr/1246708602/inteiro-teor-1246708612. Acesso em: 24 nov. 2022.

[5] De acordo com a pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Visível e invisível: A Vitimização de mulheres no Brasil (2021), cerca de 17 milhões de mulheres sofreram violência física, psicológica ou sexual no último ano e, destas vítimas, 44,9% das mulheres não fizeram nada em relação à agressão mais grave sofrida.

[6] GROSSI, Patrícia Krieger. SANTOS, Shirlei Schwartzhaupt dos. JUDICIARIZAÇÃO DOS CONFLITOS DE GÊNERO HETEROAFETIVOS: dando voz aos homens autores de violência conjugal. Anais do II SERPINF - Seminário Regional de Políticas Públicas, Intersetorialidade e Família: formação e intervenção profissional, 2014, Brasil. Disponível em: https://repositorio.pucrs.br/dspace/bitstream/10923/9459/2/JUDICIARIZACAO_DOS_CONFLITOS_DE_GENERO_HETEROAFETIVOS_dando_voz_aos_homens_autores_de_violencia_conjugal.pdf. Acesso em: 26 nov. 2022.

[7] GROSSI, Patrícia Krieger. SANTOS, Shirlei Schwartzhaupt dos. JUDICIARIZAÇÃO DOS CONFLITOS DE GÊNERO HETEROAFETIVOS: dando voz aos homens autores de violência conjugal.

[8] Destaca-se que muitas são as formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, são elas: a violência física, a violência psicológica, a violência sexual, a violência patrimonial e a violência moral. Ademais, de acordo com a pesquisa A Vitimização de Mulheres no Brasil, as violências sofridas pelas brasileiras de 16 anos ou mais durante a pandemia de COVID-19 foram, principalmente, as ofensas verbais como insultos e xingamentos.

[9] BRASIL. Presidência da República. Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. Enfrentando a Violência contra a Mulher – Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2005. 64p. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/entenda-a-violencia/pdfs/enfrentando-a-violencia-contra-a-mulher-orientacoes-praticas-para-profissionais-e-voluntarios. Acesso em: 21 nov. 2022.

[10] SALES, Marina Ferreira Martins. COGO, Rodrigo. (2020). VIOLÊNCIA DOMÉSTICA – CONSCIENTIZAÇÃO DA LEI 11.340 DE 2006. ANAIS DO SEMEX, (12). Disponível em: https://anaisonline.uems.br/index.php/semex/article/view/6662/6521. Acesso em: 27 de novembro de 2022.

[11] BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Ciclo da Violência. Disponível em: https://www.tjpr.jus.br/web/cevid/quero-denunciar. Acesso em: 22 nov. 2022.

 

 

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