A política de dados abertos no Brasil foi consagrada pela Constituição Federal de 1988, especialmente nos artigos 5º, inciso XXXIII, 37, §3º, inciso II e 216, §2º. A Magna Carta brasileira prescreve, em três passagens, a importância da transparência e do controle das atividades do Estado por parte da população. Infelizmente, a Lei que viria a regular esses artigos da Constituição demorou mais de 20 (vinte) anos para ser sancionada, o que veio a ocorrer apenas em 2011 (Lei nº 12.527/2011), conhecida como Lei de Acesso à Informação (LAI).
A LAI surgiu para permitir o acesso à informação à população em geral, principalmente para “assegurar o direito fundamental de acesso à informação” (art. 3º, caput).
É um inegável marco no avanço da política de dados abertos e da transparência dos entes federativos e órgãos da administração pública direta e indireta. A Lei não apenas regulamenta o dever de informação passivo (quando o cidadão solicita formalmente a informação), mas também o dever de informação ativo, pontuando que “é dever dos órgãos e entidades públicas promover, independentemente de requerimentos, a divulgação em local de fácil acesso, no âmbito de suas competências, de informação de interesse coletivo ou geral por eles produzidas ou custodiadas” (art. 8º, caput, LAI).
Vale ressaltar que antes mesmo da LAI, surgiram (2004) os chamados “portais da transparência” federal, estadual e municipal, a fim de prestar contas a sociedade sobre a utilização dos recursos públicos. Era a consagração deste dever de informação ativo por parte dos órgãos da administração pública direta e indireta.
A criação destes “portais da transparência” teve como causa a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101/2000) e a criação da Controladoria Geral da União em 2003, a quem compete gerir – e exigir – transparência das gestões públicas.
No mesmo ano da LAI (2011), foi sancionado o Plano de Ação Nacional sobre Governo Aberto, atualmente revogado, como detalhado na sequência.
Pouco tempo após a LAI, veio a ser criada a Política de Dados Abertos do Poder Executivo Federal, cujo principal marco regulatório é o Decreto nº 8777/2016. A Política de Dados Abertos tem como objetivos (art. 1º) promover a publicação da base de dados dos órgãos da administração pública direta e indireta em formato aberto, de forma a aprimorar a cultura da transparência no setor público e, principalmente, com a abertura das bases de dados, permitir o desenvolvimento de novas tecnologias e de inovação nos setores público e privado, fomentando, desta forma, novos modelos de negócio que auxiliem no desenvolvimento social e econômico do país.
A publicização da base de dados públicos de forma aberta e transparente permite que qualquer cidadão possa utilizar estes dados, o que vem a ser extremamente importante para o surgimento de tecnologias ligadas às chamadas cidades inteligentes como será desenvolvido em capítulo próprio.
Ainda em termos de regulação, vale citar que compete à Controladoria-Geral da União (CGU) coordenar toda a política de dados abertos do país, o que será feito por intermédio da INDA (Infraestrutura Nacional de Dados Abertos), ex vi art. 5º.
Em decorrência da Política de Dados Abertos do Poder Executivo, foi criado o Portal Brasileiro de Dados Abertos (www.dados.gov.br), gerido pela INDA, que serve como ponto centralizador das diferentes bases de dados dos órgãos da administração pública direta e indireta.
O Sistema Nacional para a Transformação Digital (Decreto nº 9.319/2018) desenvolvido e sancionado em 2018, consolidou a tentativa de inserção do Governo no mundo digital, inclusive pela concessão de amplo acesso à informação e aos dados abertos governamentais, a fim de permitir o exercício da cidadania e a inovação em tecnologias digitais.
O ano de 2019 marcou, com algum atraso, a criação da Política Nacional de Governo Aberto, com a criação do Comitê Interministerial de Governo Aberto, por meio do Decreto nº 10.160/2019.
Por fim, foi instituída a Estratégia de Governo Digital para o período de 2020 a 2022, por meio do Decreto n° 10.332/2020.
Com a Estratégia de Governo Digital, o Governo objetiva, dentre tantos pontos, centralizar em um único portal os quase 1500 (um mil e quinhentas) domínios titularizados pelo Governo Federal, implantar mecanismo de personalização da oferta de serviços públicos digitais, baseados no perfil do usuário, até 2022, implementar a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais no âmbito do Governo Federal, a criação da identidade digital ao cidadão e, no ponto que mais interessa ao presente estudo, a reformulação dos canais de transparência e dados abertos (Objetivo 13) e a participação do cidadão na elaboração de políticas públicas (Objetivo 14).
Sobre a reformulação dos diferentes canais de transparência e dados abertos, o Governo pretende integrá-los ao portal único “gov.br” ainda em 2020, além de ampliar a quantidade de bases de dados abertos até o patamar mínimo de 0.68 no critério de disponibilidade e 0,69 no critério de acessibilidade de dados do índice organizado pela OCDE até 2022.
Este é, atualmente, o cenário jurídico-regulatório dos Dados Abertos no país. Para iniciativas estaduais ou municipais, vale a consulta ao “Wiki” da INDA, acessível por meio do sítio eletrônico http://www.dados.gov.br/pagina/outras-iniciativas.
Mas o que são, efetivamente, dados abertos e como elas podem auxiliar a construção de cidades inteligentes? A “Open Knowledge Foundation”[1] é uma organização global que vem propondo e monitorando a adoção de plataformas de dados abertos em boa parte do mundo. O mais utilizado conceito de dados abertos foi por eles definido como sendo “qualquer conteúdo, informação ou dado que as pessoas possam livremente usar, reutilizar e distribuir, sem qualquer restrição legal, tecnológica ou social”[2].
Assim, o chamado “conhecimento aberto” é obtido quando os dados abertos se tornam úteis, utilizáveis e usados[3]. Ademais, são essenciais para um sistema de conhecimento aberto a acessibilidade dos dados, de participação universal e a possibilidade de uso e reuso dos dados, como pontua a “Open Knowledge Foundation”[4].
Ainda nesta linha, as bases de dados abertas são imensas, podendo englobar dados de cultura, ciência, finanças, estatísticas (censo e indicadores socioeconômicos), clima, meio-ambiente, trânsito, segurança pública, sanitários, dentre outras inúmeras possibilidades.
Os dados abertos podem, ainda, ser sintetizados em 3 (três) leis desenvolvidas por David Eaves, ativista de dados abertos e palestrante na temática de políticas públicas na Escola de Governo de Harvard Kennedy. Assim, pode-se afirmar que “se o dado não pode ser encontrado e indexado na web, então ele não existe; se não estiver aberto e disponível em formato compreensível por máquina, ele não pode ser reaproveitado e se algum dispositivo legal não permitir sua replicação, ele não é útil”[5].
Além destas leis, também existem 8 (oito) princípios desenvolvidos pelo “Open Government Data[6]: (i) os dados devem ser completos; (ii) os dados devem ser primários; (iii) os dados devem ser atuais e atualizados; (iv) os dados devem ser acessíveis; (v) os dados devem ser processáveis por máquinas; (vi) as bases de dados devem ser acessíveis universalmente e sem discriminação; (vii) os dados devem estar em formato aberto (formatos não proprietários) e (viii) as licenças sobre as bases de dados devem ser livres, ou seja, sem restrição legal.[7]
Em síntese, “os dados abertos visam garantir e facilitar aos cidadãos, à sociedade e às esferas públicas da federação, o acesso aos dados e informações produzidas ou custodiadas pelos órgãos, sobre o dia a dia da cidade, com o intuito de promover a interlocução com o governo, para construção de uma cidade melhor para se viver, trabalhar e visitar”[8].
Em sede de conclusão, as últimas décadas sedimentaram a mudança de paradigma da sociedade rural para a sociedade urbana, com a migração massiva das pessoas do campo para a cidade. Este fenômeno culminou no crescimento desordenado e massivo de milhares de novas cidades não só no Brasil, mas no mundo todo. Essa concentração populacional nas cidades, com hábitos de vida muito diferentes daqueles do campo, resultou no aumento do consumo de energia, na emissão de gases e na grande demanda nas cidades por serviços, tais como saúde, mobilidade, segurança, educação, dentre outros.
Diante desse cenário, o uso de dados abertos para desenvolvimento das cidades inteligentes se tornou uma realidade necessária. Isso porque a cidade inteligente implica na concepção da coleta de dados de diferentes segmentos da cidade, com seu processamento para gerar soluções práticas para problemas do cotidiano urbano, ou seja, um local onde as relações e serviços se tornam mais eficientes com a aplicação das tecnologias digitais e telecomunicações.
Para tanto, o uso dos dados abertos se torna essencial, posto que, através do uso dos dados e informações produzidas ou sob custódia dos órgãos, se torna possível desenvolver estratégias para garantir uma melhor qualidade de vida aos cidadãos e melhor relacionamento entre à sociedade e às esferas públicas da confederação, resultando na construção de uma cidade melhor.
Notas e Referências
[1] https://okfn.org/about/ - acessado em 05.03.2020.
[2] “‘Open knowledge’ is any content, information or data that people are free to use, re-use and redistribute — without any legal, technological or social restriction.” Disponível em https://okfn.org/opendata/. Acessado em 05.03.2020.
[3] “The Open Definition gives full details on the requirements for ‘open’ data and content. Open data are the building blocks of open knowledge. Open knowledge is what open data becomes when it’s useful, usable and used.” Disponível em https://okfn.org/opendata/. Acessado em 05.03 2020.
[4] “The key features of openness are:
- Availability and access: the data must be available as a whole and at no more than a reasonable reproduction cost, preferably by downloading over the internet. The data must also be available in a convenient and modifiable form.
- Reuse and redistribution: the data must be provided under terms that permit reuse and redistribution including the intermixing with other datasets. The data must be machine-readable.
- Universal participation: everyone must be able to use, reuse and redistribute — there should be no discrimination against fields of endeavour or against persons or groups. For example, ‘non-commercial’ restrictions that would prevent ‘commercial’ use, or restrictions of use for certain purposes (e.g. only in education), are not allowed.” (https://okfn.org/opendata/ - acessado em 05.03.2020).
[5] “As chamadas três “leis” dos dados abertos não são leis no sentido literal, promulgadas por algum Estado. São, em suma, um conjunto de testes para avaliar se um dado pode, de fato, ser considerado aberto. Elas foram propostas pelo especialista em políticas públicas, ativista dos dados abertos e palestrante de políticas públicas na Harvard Kennedy School of Government David Eaves. São elas:
(i) Se o dado não pode ser encontrado e indexado na Web, ele não existe;
(ii) Se não estiver aberto e disponível em formato compreensível por máquina, ele não pode ser reaproveitado; e
(iii) Se algum dispositivo legal não permitir sua replicação, ele não é útil.
As leis foram propostas para os dados abertos governamentais, mas pode-se dizer que elas se aplicam aos dados abertos de forma geral, mesmo fora de ambientes governamentais. Por exemplo, em empresas privadas, organizações da sociedade civil e organismos internacionais. O Banco Mundial, por exemplo, disponibiliza dados abertos.” (http://www.dados.gov.br/pagina/dados-abertos. Acesso em 05.03.2020).
[6] Disponível em https://opengovdata.org/. Acessado em 05.03.2020.
[7] A versão detalhada em inglês pode ser encontrada no sítio eletrônico https://opengovdata.org/. A versão traduzida em português pode ser encontrada no sítio eletrônico http://www.dados.gov.br/pagina/dados-abertos.
[8] BAUER, Izabella. BARACHO, Renata. Dados Abertos e suas aplicações em Cidades Inteligentes.
Liinc em Revista Disponível em http://revista.ibict.br/liinc/article/view/4767/4311. Acessado em 05.03.2020.
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