Por Marcio Guedes Berti - 06/03/2016
1. Introdução
Como se sabe, o imperativo categórico é o principal conceito ético do filósofo alemão Immanuel Kant (1724 – 1804), que consiste no dever de agir de modo que a ação de um indivíduo possa ser traduzida como uma lei universal.
Kant dividiu o imperativo categórico em três vertentes, sendo elas: (i) lei universal: "Age como se a máxima de tua ação devesse tornar-se, através da tua vontade, uma lei universal"; (ii) fim em si mesmo: "Age de tal forma que uses a humanidade, tanto na tua pessoa, como na pessoa de qualquer outro, sempre e ao mesmo tempo como fim e nunca simplesmente como meio"; (iii) legislador universal (ou da autonomia): "Age de tal maneira que tua vontade possa encarar a si mesma, ao mesmo tempo, como um legislador universal através de suas máximas."
O imperativo categórico, para Kant, é a lei suprema da moralidade, pois se trata da máxima do agir individual que pode ser elevado a uma lei universal de comportamento, ou seja, a exigência desta máxima torna boa a ação individual, pois é a garantia da imparcialidade e da independência do indivíduo em relação aos seus interesses particulares.
Hodiernamente ganha destaque, nos noticiários e no mundo jurídico, o instituto da delação/colaboração premiada, previsto na Lei 12.850/13, tido por muitos como importante instrumento de combate à criminalidade organizada.
Machado (2014, p. 536), conceituando o instituto da colaboração premiada, ensina que:
“Por meio desse instituto, o réu que colaborar com a investigação, apontando os demais coautores ou partícipes do crime, poderá obter redução da pena imposta em caso de condenação, ou até mesmo o perdão judicial e a total isenção de pena. Além desses benefícios, o acusado será ainda beneficiado pelas medidas previstas para a proteção assegurada às vítimas e testemunhas (Lei 9.807/99).”[1]
O que se pretende através deste artigo é demonstrar que, diante do imperativo categórico kantiano, a delação/colaboração premiada não se trata de um instituto jurídico dotado de moralidade, posto que não pode ser alçado à máxima de uma lei universal, na medida em que a sua aceitação, pelo delator/traidor, pressupõe uma vantagem pessoal processual, ou seja, existe(m) condicionante(s), de modo que jamais, sob a perspectiva da moralidade kantiana, poderia ser considerado um instituto moral.
2. Da delação/colaboração premiada: ética, moral e direito – análise filosófica da delação/colaboração premiada dentro do sistema processual penal sob a perspectiva do imperativo categórico de Kant
A incursão no tema demanda análise sobre Direito e Moral. E, sobre a relação entre Direito e Moral, o professor Paulo Nader (2008, p. 35), aborda a questão no seguinte aspecto:
“A análise comparativa entre a ordem moral e a jurídica é importante não apenas quando indica os pontos de distinção, mas também quando destaca os focos de convergência. A compreensão cabal do Direito não pode prescindir do exame dos intricados problemas que esta matéria apresenta. Apesar de antigo, o tema oferece aspectos que se renovam e que despertam o interesse científico dos estudiosos. (...) Direito e Moral são instrumentos de controle social que não se excluem, antes, se completam e mutuamente se influenciam. Não obstante cada qual tenha seu objetivo próprio, é indispensável que a análise cuidadosa do assunto mostre a ação conjunta desses processos, evitando-se colocar um abismo entre o Direito e a Moral. Seria um grave erro, portanto, pretender-se a separação ou o isolamento de ambos, como se fossem sistemas absolutamente autônomos, sem qualquer comunicação, estranhos entre si. O Direito, malgrado distinguir-se cientificamente da Moral, é grandemente influenciado por esta, de quem recebe valiosa substância.”[2]
Destarte, é possível afirmar que os preceitos legais e morais, conjuntamente, possuem como objetivo regular a vida em sociedade.
Aqui, é bom que se diga que tanto o Direito como a Moral são passíveis de sanção, só que no Direito a sanção é externa e, na Moral, interna.
De bom alvitre destacar, também, a diferença entre agir em conformidade com o Direito e em conformidade com a Moral, pois esta é incondicionada, ou seja, se o sujeito age de acordo com o direito com receio de sofrer a sanção legal, seu comportamento não é moral, pois está condicionado. O agir moral não está sujeito a condicionantes, vale dizer, o sujeito age de tal modo por agir, e não porque uma norma legal o obriga. O Direito se ocupa com o Dever-Ser, e não com o Ser. Para o Direito basta que o sujeito cumpra a lei, ao passo que a Moral exige mais; exige um agir incondicionado, qual seja, o respeito à própria lei moral e não os fins ou consequências do próprio ato. Exemplo: uma coisa é o sujeito não roubar com medo de sofrer a sanção prevista pela lei (sua ação aqui é legal), pois respeitou o Direito (Dever-Ser); contudo, ela não é moral, pois o sujeito apenas não roubou com medo de sofrer a sanção imposta pela lei. Agora se o sujeito não rouba simplesmente porque não rouba, sem qualquer condicionante, sua ação é mais que legal, é moral (Ser).
Na Metafísica dos Costumes, Kant ensina no § 13º, da Parte I (Dos deveres consigo mesmo em geral), que:
“Todo ser humano tem uma consciência e se vê observado, ameaçado e, em geral, conservado no assombro [respeito associado ao medo] por um juiz íntimo, e esta autoridade, vigilante da lei dentro dele, não é algo que ele próprio [voluntariamente] produz, mas algo incorporado em seu ser. Acompanha-o como sua sombra quando ele planeja escapar. Ele pode, realmente, atordoar-se ou reduzir-se ao sono por força de prazeres e distrações, mas não consegue voltar a si ou despertar de tempos a tempos; quando o faz, ouve imediatamente aquela voz terrível. Ele pode, no máximo, na extrema abjeção, conseguir não dar mais atenção a ela, mas não pode ainda deixar de ouvi-la. Ora, esta predisposição original intelectual e [uma vez que é o pensamento do dever] moral chamada consciência é peculiar no fato de que, embora seu negócio seja um negócio de um ser humano consigo mesmo, alguém constrangido por sua razão vê a si mesmo constrangido a levá-la à frente pela intimidação de uma outra pessoa, pois o negócio aqui é aquele de levar um processo [causa] ao tribunal. Mas pensar num ser humano que é acusado por sua consciência como uma e a mesma pessoa que o juiz é uma forma absurda de representar uma corte de justiça, pois neste caso aquele que instaura o processo perderia sempre. Para todos os deveres a consciência de um ser humano, consequentemente, terá que cogitar de alguém que não seja ele próprio [isto é, distinto do ser humano em geral] como juiz de suas ações, caso contrário a consciência terá que ser uma contradição consigo mesma. Este outro pode ser uma pessoa real ou uma pessoa meramente ideal que a razão cria por si mesma”.
Pois bem.
A delação/colaboração premiada nada mais é do que uma traição, pois uma pessoa, para “aliviar” sua situação perante a justiça e obter determinada vantagem pessoal no âmbito do processo, decide “colaborar” com esta e, desta maneira, delata seus “comparsas”. Se o que o delator vai dizer é verdade, ou não, ninguém sabe, apenas ele. Contudo, esta traição é admitida pelo Direito e, atualmente, é a máxima utilizada pelos órgãos encarregados da persecução criminal como forma de “combate ao crime organizado”.
Vale dizer que se o Estado precisa se valer da delação de um acusado para alcançar a justiça, é porque as instituições estatais estão falidas. Em um país como o Brasil, onde existem inúmeros órgãos estatais encarregados de analisar práticas criminosas, esse quadro falimentar se mostra ainda mais flagrante.
A título de ilustração, temos no Brasil, atualmente, diversos órgãos de controle e de investigação, a saber: Polícia Judiciária Estadual e Federal, Ministério Público Estadual e Federal, Controladoria-Geral da União, Tribunais de Contas (Municipais[3], Estaduais e da União), Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF, Receita Federal, Receita Estadual e, mesmo assim, a justiça precisa se valer do instituto da delação/colaboração premiada.
A propósito, Cezar Roberto Bitencourt, em artigo denominado “Delação premiada na “lava-jato” está eivada de inconstitucionalidades”, publicado no sítio da Consultor Jurídico em data de 04 de dezembro de 2014[4], averbou que:
“Chega a ser paradoxal que se insista numa propalada sofisticação da delinquência; num país onde impera a improvisação e tudo é desorganizado, como se pode aceitar que só o crime seja organizado? Quem sabe o Poder Público, num exemplo de funcionalidade, comece combatendo o crime desorganizado, já que capitulou ante o que resolveu tachar de crime organizado; pelo menos combateria a criminalidade de massa, a criminalidade violenta, devolvendo a segurança à coletividade brasileira, que tem dificuldade até mesmo de transitar pelas ruas das capitais. Está-se tornando intolerável a inoperância do Estado no combate à criminalidade, seja ela massificada, organizada ou desorganizada, conforme nos têm demonstrado as alarmantes estatísticas diariamente”.
Pelo instituto da delação/colaboração premiada, é possível a concessão do perdão judicial ao colaborador/delator/traidor, observada a relevância da colaboração, conforme art. 4º, da Lei 12.850/13[5]. Referido instituto foi importado ao ordenamento jurídico brasileiro, sobretudo dos Direitos Norte Americano (Plea Bargain[6]) e Italiano (Pentitismo[7]).
Sob o ponto de vista do positivismo jurídico, não há o que se discutir sobre a delação/colaboração premiada, pois o positivista, como se sabe, mostra-se ametafísico, na medida em que rejeita todos os elementos de abstração na área do Direito, existindo uma única ordem jurídica, qual seja, aquela comandada pelo Estado e que é soberana.
Como bem ensina Nader (2008, p. 386), “O positivismo jurídico é uma doutrina que não satisfaz às exigências sociais de justiça. Se, de um lado favorece o valor segurança, por outro, ao defender a filiação do Direito a determinações do Estado, mostra-se alheio à sorte dos homens”.[8]
Etimologicamente delatar significa denunciar o autor do crime, trair. De Plácido e Silva, em sua obra Vocábulo Jurídico (1982, p. 23), ao definir delação consigna que: “originado de delatio, de deferre (na sua acepção de denunciar, delatar, acusar, deferir), é aplicado na linguagem forense mais propriamente para designar a denúncia de um delito (...)”.[9]
Destarte, delatar é trair, daí porque a mudança (proposital) do termo delação por colaboração. A mudança é meramente gramatical; semanticamente, não houve qualquer alteração. O instituto continua a ser de delação. Poder-se-ia, da mesma forma, alterar sua nomenclatura para traição judicial ou, quem sabe, traição institucional, enfim, o fato é que se trata de uma traição. E a traição, desde sempre, foi repugnada pela sociedade.
Ora, se não é (e não foi) assim, porque queimaram Judas Iscariotes se não para punir a delação e castigar a traição! Está no texto bíblico (Mateus, Capítulo XXVI, versículos 14, 15 e 16[10]).
É evidente que o instituto da delação/colaboração premiada é desprovido de qualquer conteúdo ético e moral sob a perspectiva de Kant. Concede-se um prêmio àquele que decide “colaborar” com a justiça, traindo e delatando pessoas, sem que se dê importância às motivações subjetivas da delação.
Como bem explicitado por Cezar Roberto Bittencourt[11]:
“(...) para efeito da delação premiada, não se questiona a motivação do delator, sendo irrelevante que tenha sido por arrependimento, vingança, ódio, infidelidade ou apenas por uma avaliação calculista, antiética e infiel do traidor-delator. Venia concessa, será legítimo o Estado lançar mão de meios antiéticos e imorais, como estimular a deslealdade e traição entre parceiros, apostando em comportamentos dessa natureza para atingir resultados que sua incompetência não lhe permite através de meios mais ortodoxos? Certamente não é nada edificante estimular seus súditos a mentir, trair, delatar ou dedurar um companheiro movido exclusivamente pela ânsia de obter alguma vantagem pessoal, seja de que natureza for.”
Em verdade, o Estado pouco se importa com as motivações que originam a delação, pois muitas vezes o Estado a estimula e, assim o fazendo, institucionaliza a deslealdade, a imoralidade e a traição.
E vale ressaltar que o Estado, muitas vezes, é antiético com o próprio delator, pois se utiliza de medidas cautelares, sobretudo da prisão preventiva, para obter o consentimento com a delação. Como observa Alexandre Morais da Rosa, “a partir da teoria dosa jogos as medidas cautelares podem se configurar como mecanismos de pressão cooperativa e/ou táticas de aniquilamento (simbólico e real, dada as condições em que são executadas)”.[12]
Eis a razão pela qual Luigi Ferrajoli (apud SILVA, 1999, p. 05)[13] questiona a moralidade da colaboração premiada, percebendo o perigo dos agentes estatais utilizarem os benefícios para pressionar o réu/colaborador/delator, influenciando seu livre arbítrio, de modo a transformar as delações na linha mestra dos processos, passando-se a negligenciar as demais modalidades probatórias.
Sendo, portanto, uma traição, sob o ponto de vista ético-filosófico kantiano a delação/colaboração premiada não se sustenta, sobretudo sob a perspectiva do imperativo categórico, pois não se pode alçar a uma máxima universal que todos os indivíduos sejam traidores.
Pode até ser que o delator esteja sendo condenado por sua própria consciência, porém, ainda assim a traição não se justifica. Caso o delator tenha sido condenado pela sua consciência, deve aceitar, também, sua condenação pela justiça. Pode até confessar a prática criminosa; contudo, jamais deve ser um traidor.
Outro problema que se apresenta reside no fato de saber se o delator está, ou não, dizendo a verdade. Tendo em vista que, a priori, a delação só faz sentido se houver reciprocidade por parte do Estado, de modo a favorecer o traidor, quem garante que aquilo que é delatado é verdade? E se não for?
Kant, no Capítulo II (O dever de um ser humano consigo mesmo meramente como ser moral) da Metafísica dos Costumes, diz no § 9º que:
“A maior violação do dever de um ser humano consigo mesmo, considerado meramente como um ser moral (a humanidade em sua própria pessoa), é o contrário da verdade, a mentira (alliud língua promptum, alliud pectore inclusum genere). Na doutrina do direito, uma inverdade intencional é chamada de mentira somente se violar o direito de outrem; mas na ética, onde nenhuma autorização é derivada da inocuidade, fica claro de per si que nenhuma verdade intencional naq manifestação dos pensamentos de alguém pode eximir-se dessa áspera denominação, pois a desonra (sendo um objeto de desprezo moral) que acompanha uma mentira também acompanha um mentiroso, como sua sombra. A mentira pode ser externa (mendacium externum) ou, inclusive, interna. Através de uma mentira externa um ser humano faz de si mesmo um objeto de desprezo aos olhos dos outros; através de uma mentira interna, ele realiza o que é ainda pior: torna a si mesmo um objeto de desprezível aos seus próprios olhos e viola a dignidade da humanidade em sua própria pessoa. E, assim, uma vez que o dano que pode atingir outros a partir da mentira não é o que distingue esse vício (pois se fosse, o vício consistiria apenas em violar o dever de cada um para com os outros), este dano não é considerado aqui. Tampouco é o dano que o mentiroso causa a sim mesmo, pois então uma mentira, como mero erro em matéria de prudência, entraria em conflito com a máxima pragmática, não com a máxima moral, e não poderia ser considerada de modo algum uma violação do dever. Pela mentira um ser humano descarta e, por assim dizer, aniquila sua dignidade como ser humano. Um ser humano que não crê ele próprio no que diz a outro (mesmo que o outro seja uma pessoa simplesmente ideal) tem mesmo menos valor do que se fosse uma mera coisa; pois uma coisa, por ser algo real e dado, possui a propriedade de ser útil, de maneira que o outro pode destiná-la a algum uso. (...) A veracidade nas nossas declarações é também chamada de honestidade e, se as declarações constituem promessas, sinceridade; mas, mais geralmente, a veracidade é chamada de retidão. A mentira (no sentido ético da palavra), a inverdade intencional em geral, não necessita ser prejudicial aos outros para ser repudiada, pois seria então a violação dos direitos dos outros. É possível que seja praticada meramente por frivolidade ou mesmo bondade; aquele que fala pode, até mesmo, pretender atingir um fim realmente benéfico por meio dela. Mas esta maneira de perseguir este fim é, por sua simples forma, um crime de um ser humano contra sua própria pessoa e uma indignidade que deve torná-lo desprezível aos seus próprios olhos”.
Inquestionável, pois, que sob a óptica filosófica de Kant, a moralidade da delação/colaboração premiada não se sustenta. Não é por outro motivo que Cezar Roberto Bitencourt alerta para o fato de que:
“(...) ainda que seja possível afirmar ser mais positivo moralmente estar ao lado da apuração do delito do que de seu acobertamento, é, no mínimo arriscado apostar em que tais informações, que são oriundas de uma traição, não possam ser elas mesmas traiçoeiras em seu conteúdo. Certamente aquele que é capaz de trair, delatar ou dedurar um companheiro movido exclusivamente pela ânsia de obter alguma vantagem pessoal, não terá escrúpulos em igualmente mentir, inventar, tergiversar e manipular as informações que oferece para merecer o que deseja. Com essa postura antiética, não se pode esperar que o delator adote, de sua parte, um comportamento ético e limite-se a falar a verdade às autoridades repressoras; logicamente, o beneficiário da delação dirá qualquer coisa que interesse às autoridades na tentativa de beneficiar-se. Essa circunstância retira eventual idoneidade que sua delação possa ter, se é que alguma delação pode ser considerada idônea em algum lugar.”
Em artigo publicado no jornal Gazeta do Povo do dia 03 de fevereiro de 2016[14], o Procurador da República Bruno Calabrich, defendeu o instituto da delação premiada dizendo que “O erro fundamental é ignorar que a colaboração premiada não é somente uma técnica de investigação: ela é, antes de tudo, um direito do investigado”. Trata-se, claramente, de um argumento positivista e simplório, que não enfrenta profundamente as nuances por trás da delação/colaboração premiada.
Obviamente que os membros do Ministério Público são vozes unânimes na defesa do instituto, para os quais é um efetivo instrumento de combate à criminalidade e à corrupção que assolam a sociedade.
Trata-se, todavia, de um argumento utilitarista. Apoiados no clamor social de combate à corrupção, os agentes do Estado defendem a delação/colaboração premiada com unhas e dentes, de modo que, por trazer uma resposta à sociedade e, de certo modo, combater a corrupção, seria um instituto plenamente moral, pois de encontro com o interesse público. Repita-se: o argumento é utilitarista.
Como se sabe, Jeremy Bentham (1748-1832), filósofo moral e estudioso das leis, criou a filosofia utilitarista, fulcrada na idéia central de que o objetivo da moral é maximizar a felicidade, assegurando a hegemonia do prazer sobre a dor. De acordo com Bentham, a coisa certa a fazer é aquela que maximizará a utilidade, entendida esta como qualquer coisa que produza prazer ou felicidade e que evite dor ou sofrimento.
Singelamente, o utilitarismo tem como traço primordial considerar bom o que é útil. Destarte, perfeitamente possível defender a moralidade da delação/colaboração premiada sob o viés do utilitarismo, o que não se sustenta para Kant, para quem é moralmente correta à ação que está de acordo com determinadas regras do que é certo, independentemente da felicidade resultante a um ou a todos.
O imperativo categórico kantiano é uma regra de averiguação, onde não basta que a ação seja realizada apenas em conformidade externa com a lei moral, mas não se sujeite a interesses egoístas ou a motivações empíricas. A ação não deve ser realizada apenas conforme o dever, mas também por dever.
Sobre o utilitarismo, o professor José Renato Nalini (2014, p. 67/68) ensina que:
“Em termos éticos, significa que a conduta ética desejável é a conduta útil. Isso satisfaria as exigências de uma explicação racional para a necessidade do comportamento ético? Adota-se uma postura ética apenas porque isso se mostra de alguma utilidade? Não se mostra suficiente a resposta dos utilitaristas, pois a utilidade é mero atributo de um instrumento. Uma faca é útil se efetivamente corta, um revólver útil se dispara. Com um ou outro se pode praticar o mal. Todavia, a faca em si não tem destinação nociva. Serve para descascar laranjas. Já o revólver, difícil sustentar a dignidade de sua vocação. Invocar o instituto da legítima defesa expõe uma exceção, não a regra. Revolver exista para matar. Essa a destinação ínsita da arma. Basta essa constatação para se concluir que o útil não se confunde com o bom”.[15]
O professor americano Michael J. Sandel, em sua célebre obra Justiça: O que é fazer a coisa certa (2015, p. 137, 138, 139) explica que:
“(...) a fundamentação de Kant foi uma crítica arrasadora ao utilitarismo. Kant argumenta que a moral não diz respeito ao aumento da felicidade ou a qualquer outra finalidade. Ele afirma o contrário, que ela está fundamentada no respeito às pessoas como fins em si mesmas. (...) A importância atribuída por Kant à dignidade humana define nossas concepções atuais dos direito humanos universais. Ademais, seu conceito de liberdade figura em muitos dos nossos debates contemporâneos sobre justiça. (...) Kant repudia o utilitarismo. Ao basear direitos em um cálculo sobre o que produzirá maior a maior felicidade, argumenta ele, o utilitarismo deixa esses direitos vulneráveis. Existe ainda um problema mais grave: tentar tomar como base para princípios morais os desejos que porventura tivermos, é uma maneira errada de abordar a moral. Só porque uma coisa proporciona prazer a muitas pessoas, isso não significa que possa ser considerada correta. O simples fato de a maioria, por maior que seja, concordar com uma determinada lei, ainda que com convicção, não faz com que ela seja uma lei justa. Kant afirma que a moralidade não deve ser baseada apenas em considerações empíricas, como interesses, vontades, desejos e preferências que as pessoas possam ter em um determinado momento”.[16]
3. Conclusão
Como se observa, sob o ponto de vista da moral kantiana, o instituto da delação/colaboração premiada é absolutamente imoral, pois como se nota, o que motiva o delator/colaborador em delatar/trair seus comparsas é um interesse exclusivamente pessoal, consistente na obtenção de uma vantagem processual, que pode, inclusive, significar o perdão judicial, de modo que há uma condicionante que origina a delação. Para Kant, repise-se, a moral é incondicionada.
Ainda, sob o ponto de vista do imperativo categórico, não se pode admitir que a prática da traição seja elevada à máxima de uma lei universal. Seria a consagração do absurdo admitir-se que, em nome de um “suposto bem comum”, as pessoas pudessem ser traidoras/delatoras. Se assim fosse, as pessoas poderiam trair seus esposos e esposas, seus sócios, seus amigos, seus parentes, enfim, quando verificado que a traição não pode ser elevada à máxima universal, constata-se, desde logo, sua imoralidade, pois não é a coisa certa a ser feita, na medida em que a traição torna o delator desprezível e afeta sobremaneira a pessoa delatada.
Até porque esse “suposto bem comum” traduz-se em mero utilitarismo, doutrina moral rechaçada por Kant em sua fundamentação da metafísica dos costumes. Aqui é bom pontuar que a fundamentação da metafísica dos costumes, o primeiro de vários trabalhos sobre filosofia moral de Kant, foi publicado cinco anos após a publicação dos princípios da moral e da legislação de Jeremy Bentham, ou seja, tratou-se de uma crítica veemente ao utilitarismo.
Não é por outro motivo, portanto, que Kant, na Metafísica dos Costumes, no § 43 da parte II (Dos Deveres de Virtude com os Outros), expõe que:
“A propagação (propalatio) intencional de alguma coisa que prejudica a honra alheia reduz o respeito pela humanidade em geral, de sorte a finalmente arrojar uma sombra de indignidade objetiva sobre nossa própria raça, tornando a misantropia (a fuga da convivência com seres humanos) ou o desprezo a disposição da alma predominante, ou embotar o sentimento moral de cada um, nos expondo reiteradamente à visão de tais coisas e nos acostumando com ela. É, portanto, um dever de virtude não extrair um prazer malicioso na exposição das faltas alheias, de maneira que alguém venha a ser considerado tão bom quanto ou, ao menos, não pior do que os outros, mas sim lançar o véu do amor aos seres humanos sobre suas faltas, não meramente abrandando nossos julgamentos, como também mantendo estes julgamentos para nós mesmos, pois os exemplos de respeito que damos aos outros podem estimular o seu empenho para merecê-lo”.
Destarte, no que diz respeito à delação/colaboração premiada, pode-se dizer (metaforicamente) que são morais aqueles acusados que não se valem de referido instituto para obter qualquer vantagem processual.
Registre-se, por fim, que o fato de um delator supostamente colaborar com a justiça aceitando delatar seus comparsas, traindo-os, não o torna uma pessoa digna de moral, e, tampouco dota de moralidade referido instituto, pelo contrário, aliás, diante de tudo o que argumentado neste artigo, eis que, para Kant, se o agente atuou com vistas à obtenção de alguma recompensa ou vantagem, como na delação/colaboração premiada, sua ação não pode ser reputada como moral; consequentemente, o próprio instituto, nessa perspectiva, não pode ser reputado como moral.
Notas e Referências:
[1] Antonio Alberto Machado. Curso de Processo Penal. 6a Ed. São Paulo: Atlas 2014.
[2] NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito / Paulo Nader – Rio de janeiro: forense, 2008.
[3] Alguns Municípios possuem Tribunal de Contas para fiscalização dos recursos municipais, a exemplo de São Paulo, Rio de Janeiro dentre outros.
[4]http://www.conjur.com.br/2014-dez-04/cezar-bitencourt-nulidades-delacao-premiada-lava-jato. Acesso em 09.02.2016.
[5] O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados: (...).
[6] Instituto de origem na common law e consiste numa negociação feita entre o representante do Ministério Público e o acusado: o acusado apresenta importantes informações e o Ministério Público pode até deixar de acusá-lo formalmente.
[7] O arrependimento é uma tendência comportamental humana em que um membro individual de uma organização criminosa decide liberar confissões e declarações às autoridades de investigação.
[8] Op. Cit. p. 386.
[9] Vocabulário jurídico conciso. Forense, 1.982.
[10] Mateus, capítulo 26: 1. Quando acabou de dizer essas coisas, Jesus disse aos seus discípulos: (…) 14. Então, um dos Doze, chamado Judas Iscariotes, dirigiu-se aos chefes dos sacerdotes 15 e lhes perguntou: O que me darão se eu o entregar a vocês? E lhe fixaram o preço: trinta moedas de prata. 16 Desse momento em diante Judas passou a procurar uma oportunidade para entregá-lo.
[11]http://www.conjur.com.br/2014-dez-04/cezar-bitencourt-nulidades-delacao-premiada-lava-jato. Acesso em 09.02.16.
[12] Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos. 2ª edição – revista e ampliada. Lumens, Rio de Janeiro, 2014, p. 157.
[13] SILVA, Eduardo Araújo. Da moralidade da proteção aos réus colaboradores. São Paulo. In: Boletim IBCCrim nº 85, dezembro de 1999.
[14]http://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/artigos/as-contradicoes-dos-que-criticam-a-colaboracao-premiada-adozrmi9ja3wuachz4nigvunk. Acesso em 09.02.2016.
[15] NALINI, José Renato. Ética geral e profissional / José Renato Nalini – 11. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais.
[16] SANDEL, Michael J. Justiça – o que pe fazer a coisa certa / Michael J. Sandel; [tradução 19ª ed. de Heloisa Matias e Maria Alice Máximo} 19ª edição – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
.
Marcio Guedes Berti é Professor de Ética Geral e Profissional na Univel – União Educacional de Cascavel, e de Direito Civil III e Direito Tributário da Unipar – Universidade Paranaense, Campus de Cascavel. Advogado. Especialista em Direito Civil e Processual Civil e Mestrando em Filosofia pela Unioeste – Universidade do Oeste do Paraná, Campus de Toledo.
.
Imagem Ilustrativa do Post: IMG_2780.jpg // Foto de: Andrew Malone // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/andrewmalone/122933797
Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode
O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.