Os debates acerca do Direito de Família têm sido cada vez mais acalorados. Tais embates são motivados pelas alterações na definição do próprio termo “família”, pelos desdobramentos dessa mudança de paradigma na sociedade e na busca de direitos pelos grupos familiares de estrutura não tradicional. Nesse contexto, a união poliafetiva tem ganhado as ruas e a mídia a partir de decisões judiciais, ora confirmando, ora negando o reconhecimento desse tipo de união.
Objetiva-se com este trabalho, analisar a temática à luz da doutrina, da jurisprudência existente e do registro da norma, buscando construir um posicionamento acerca da questão que responda a seguinte indagação: “Ao reconhecer a união poliafetiva, a justiça valida o crime de bigamia?”.
Faz-se mister uma inicial explanação dos conceitos de família, bem como do instituto do casamento, da união estável e, finalmente, uma reflexão sobre a união poliafetiva. Buscar-se-á separar o discurso da moralidade e o técnico-jurídico, intentando uma abordagem racional da temática e em respeito aos direitos e garantias fundamentais de um Estado Democrático de Direito.
Em seguida, serão tratadas as decisões recentes sobre a união poliafetiva no Brasil, a exemplo da decisão do Conselho Nacional de Justiça acerca impossibilidade de registro em cartório dessas uniões e as implicações de tal decisão. O estudo dos princípios constitucionais e dos códigos infraconstitucionais são de suma importância para se determinar os limites da legalidade dessa união.
E finalmente, será exposto o posicionamento dos autores a respeito da temática que ainda será apreciada pelo STF. Sem nenhuma pretensão de encerrar a discussão, o intuito é o de firmar tese para fomentar debates no âmbito jurídico fundamentados na lei e no respeito aos direitos fundamentais.
METODOLOGIA
Optou-se por uma pesquisa qualitativa e teórica, dedicada a (re)construir conceitos acerca do assunto em análise, possibilitando também o aprimoramento dos fundamentos teóricos. Este estudo não tenta controlar o contexto da pesquisa, mas sim captar o contexto em sua forma ampla e, apesar de não objetivar uma direta intervenção na realidade, crê-se na possibilidade de contribuir para debates que impliquem em tal intervenção.
Quanto aos objetivos, caracteriza-se como exploratória e descritiva. Segundo Gil (2008), a pesquisa exploratória apresenta como objetivo a construção de uma visão geral, de tipo aproximativo, acerca de determinado fato. Sendo muito comum a sua utilização em investigações cujo o tema ainda foi pouco explorado e, por isso, de difícil formulação de hipóteses precisas. Não tenta controlar o contexto da pesquisa, e, sim, captar o contexto na totalidade
Optou-se por ir além neste trabalho, no sentido de buscar uma nova visão do problema, assim como afirma Gil (2008):
Algumas pesquisas descritivas vão além da simples identificação da existência de relações entre variáveis, pretendendo determinar a natureza dessa relação. Neste caso, tem-se uma pesquisa descritiva que se aproxima da explicativa. Por outro lado, há pesquisas que, embora definidas como descritivas a partir de seus objetivos, acabam servindo mais para proporcionar uma nova visão do problema, o que as aproxima das pesquisas exploratórias.
Em relação aos procedimentos, adotou-se a pesquisa bibliográfica e documental. O aspecto bibliográfico reside na análise de livros e artigos científicos de pesquisadores da temática ora problematizada, trazendo dentre outras vantagens, a cobertura de uma gama de fenômenos muito mais ampla do que aquela que poderia pesquisar diretamente. Tendo-se o cuidado, como destaca Gil (2008), com as condições em que os dados foram obtidos, realizando uma análise minuciosa das informações dirimindo o risco de possíveis incoerências ou contradições.
A pesquisa bibliográfica é feita a partir do levantamento de referências teóricas já analisadas, e publicadas por meios escritos e eletrônicos, como livros, artigos científicos, páginas de web sites. Qualquer trabalho científico inicia-se com uma pesquisa bibliográfica, que permite ao pesquisador conhecer o que já se estudou sobre o assunto.(FONSECA, 2002, p. 32).
Por sua vez, a pesquisa documental difere da pesquisa bibliográfica dada a natureza das fontes. Sendo esta fundamentalmente embasada nas contribuições dos diversos autores sobre determinado assunto, aquela utiliza materiais que não receberam ainda um tratamento analítico.
A pesquisa documental recorre a fontes mais diversificadas e dispersas, sem tratamento analítico, tais como: tabelas estatísticas, jornais, revistas, relatórios, documentos oficiais, cartas, filmes, fotografias, pinturas, tapeçarias, relatórios de empresas, vídeos de programas de televisão, etc. (FONSECA, 2002, p. 32).
RESULTADOS E DISCUSSÃO
De início é preciso deixar clara o entendimento da lei a respeito de “família”. Na Constituição Federal de 1988, em seu Art. 226, define-se família como sendo a base da sociedade. Mesmo o texto constitucional não trazendo expresso como é constituída a família, quem são os sujeitos e em que condições, o entendimento de boa parte da sociedade era o aspecto biológico para a definição de uma família.
Para Maria Helena Diniz (2008, p.9), pode-se considerar o sentido de família em: sentido amplíssimo, aquela em que indivíduos estão ligados pelo vínculo da consanguinidade ou da afinidade; sentido lato sensu, aquela formada além dos cônjuges ou companheiros, seus filhos, os parentes da linha reta ou colateral e os afins, sentido (os parentes do outro cônjuge ou companheiro), e sentido restrito, comunidade formada pelos pais (matrimônio ou união estável) e a da filiação. (DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil brasileiro: Direito de Família. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. v. 5. p. 9)
Importante contribuição sobre o caráter jurídico da família, é dada por Paulo Lôbo:
“Sob o ponto de vista do direito, a família é feita de duas estruturas associadas: os vínculos e os grupos. Há três sortes de vínculos, que podem coexistir ou existir separadamente: vínculos de sangue, vínculos de direito e vínculos de afetividade. A partir dos vínculos de família é que se compõem os diversos grupos que a integram: grupo conjugal, grupo parental (pais e filhos), grupos secundários (outros parentes e afins). (LÔBO, Paulo. Direito Civil: família. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 2.)
Já em relação à união estável, adota-se o conceito de uma relação de convivência homem e mulher, que é duradoura e com objetivo de constituir família, sem prazo mínimo de estabelecimento e sem a necessidade de morarem juntos, sendo necessária a existência de elementos que a comprovem, como por exemplo, os filhos. A união estável foi equiparada à família e resguardada no. Art. 226 da Constituição Federal, em seu §3º: “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”. (BRASIl, Art. 226, §3, 1988).
Em 2011, o conceito constitucional de família sofreu mutação mediante a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132/RJ, pugnando pela equiparação da união homoafetiva como união estável para os servidores públicos estaduais, e a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277/DF, solicitando o reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar, ambas ações ajuizadas perante o Supremo Tribunal Federal e relatadas pelo Ministro Ayres Brito. Por meio de evidente processo de mutação constitucional, o STF equiparou as uniões homoafetivas às uniões estáveis, enquanto entidades familiares juridicamente tuteladas. Contudo, ressalta-se que não se teve o julgamento, ou homologação, do casamento civil homoafetivo, e isso é de suma importância para a linha argumentativa a ser apresentada aqui.
Já o Código Civil brasileiro expressa claramente que o casamento, comunhão plena de vidas, só se realiza mediante manifestação de vontades das partes, perante autoridade competente, sendo os manifestantes um homem e uma mulher. Não há choque com o texto constitucional e nem com a mutação constitucional acerca da união homoafetiva, pois, como dito anteriormente, a decisão do STF sobre a matéria não teve como objeto o casamento civil homoafetivo.
CAPÍTULO I
Disposições Gerais
Art. 1.511. O casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges.
(...)
Art. 1.514. O casamento se realiza no momento em que o homem e a mulher manifestam, perante o juiz, a sua vontade de estabelecer vínculo conjugal, e o juiz os declara casados. (BRASIL, 2002)
Faz-se mister um breve esclarecimento acerca do crime de bigamia, para também apreciar o entendimento da esfera penal no que trate da temática em estudo. Tanto no Código Civil, Art 1.522, Inciso VI, onde esculpe-se que não podem casar “as pessoas casadas”, como na seara penal, no Art. 235, do Código Penal, Título VII dos Crimes Contra a Família, Capítulo dos Crimes Contra o Casamento, é vedado o casamento múltiplo, ou seja, quem contraiu matrimônio não pode contrair outro a menos nos termos permitidos pela lei, posto que, do contrário, configura-se o crime de bigamia.
Art. 235 - Contrair alguém, sendo casado, novo casamento:
Pena - reclusão, de dois a seis anos.
1º - Aquele que, não sendo casado, contrai casamento com pessoa casada, conhecendo essa circunstância, é punido com reclusão ou detenção, de um a três anos.
2º - Anulado por qualquer motivo o primeiro casamento, ou o outro por motivo que não a bigamia, considera-se inexistente o crime.
No Brasil, tivemos uniões poliafetivas reconhecidas em 2012, no município de Tupã - SP, onde um homem e duas mulheres conseguiram a lavratura de escritura pública; e o outro em 2015, do 15o. Ofício de Notas do Rio de Janeiro – RJ, na Barra da Tijuca, envolvendo três mulheres (“união homopoliafetiva”). Desde 2012, cerca de trinta uniões estáveis com mais de duas pessoas foram registrados e obtiveram reconhecimento oficial, de acordo com o Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).
Diante do aumento de uniões poliafetivas, a Associação de Direito das Famílias e das Sucessões (ADFAS) entrou no ano de 2016 com o pedido para que o Conselho Nacional de Justiça impeça o registro de uniões entre mais de duas pessoas. Sendo acatado pela ministra Nancy Andrighi que concedeu uma liminar com a recomendação aos tabeliães de notas do país que aguardassem o julgamento do caso.
No dia 26 de junho deste ano, o Plenário do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) decidiu pela proibição aos cartórios brasileiros para realizarem o registro de uniões poliafetivas, formadas por três ou mais pessoas, em escrituras públicas. Para o relator do processo, min. João Otávio de Noronha, as competências do CNJ se limitam ao controle administrativo, não jurisdicional, conforme estabelecidas na Constituição Federal. Com a decisão, as uniões poliafetivas já registradas, perderam a validade.
Cabe ressaltar que a decisão do CNJ não impacta na legalidade ou ilegalidade da união afetiva entre mais de duas pessoas, mas sim sobre a competência dos cartórios em reconhecer tal situação. Além disso, não cabe ao CNJ decidir sobre questões que envolvem direitos de matéria constitucional. Por essa razão o caso foi encaminhado ao STF para decidir definitivamente sobre a legalidade ou ilegalidade da união poliafetiva.
Tendo sido expostos esses conceitos e esclarecimentos, defende-se que a união poliafetiva pode ser moralmente questionável, para boa parte da sociedade, no entanto, não fere nenhum ordenamento jurídico nem na esfera civil e nem na penal. Para Tartuce (2018), “esses atos notariais não padecem de nulidade por ‘ilicitude do objeto’, nos termos do artigo 166, II, do Código Civil, conforme alegado por outros juristas”. Uma vez que a “fidelidade’, ou melhor, uma relação monogâmica é princípio do casamento civil e não da união estável.
Não cabe falar em bigamia na união poliafetiva, nem infringe norma civil e nem penal, tendo em vista que não se trata de um novo casamento civil. ou seja, não há lei que defina como crime e nem civil que impossibilite o seu reconhecimento tal qual se reconheceu a união homoafetiva, tendo em vista os princípios constitucionais e o valor da afetividade para o direito moderno, não há fundamento jurídico que justifique a criminalização da união poliafetiva.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A provocação que objetivamos com este artigo é a de um discurso que respeite o ordenamento jurídico e que garanta o respeito à diversidade existente em nossa sociedade. Em um Estado Democrático de Direito é preciso fortalecer sempre a busca pelo bem comum e que as atitudes e condutas pessoais, desde que não ofendam a esse postulado, possam ser resguardadas quando justificadas em sua razão de existir. Por esse motivo, acredita-se na evolução das estruturas familiares desde que não causem dano a nenhum bem jurídico tutelado, seja na esfera civil ou na esfera legal.
Somos cientes do quão delicado é abordar essa temática que ainda não foi pacificado e que, com certeza, será alvo de muitos embates jurídicos. E, apesar de adotar uma postura favorável à união poliafetiva, há que se verificar as demais variáveis e sujeitos envolvidos na questão, tais como: os filhos, o direito de guarda em caso de separação, a responsabilidade financeira, o cuidado com o impacto na construção identitária da criança; o patrimônio, divisão dos bens e sucessão; entre outras questões. Somente a partir da reflexão pautada na ciência do Direito e nos princípios e garantias fundamentais, poder-se-á chegar a um entendimento justo e digno para todos.
Notas e Referências
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>.
_______. Código Civil, Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>.
_______. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.132/RJ. Relator: BRITO, Ayres. Publicado no DJe de 14-10-2011. Disponível em <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628633>.
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil brasileiro: Direito de Família. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. v. 5. p. 9)
FONSECA, J. J. S. Metodologia da pesquisa científica. Fortaleza: UECE, 2002. Apostila.
GIL, A. C. Como elaborar projetos de pesquisa. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2007.
_____. Métodos e técnicas de pesquisa social. 6ª ed. São Paulo : Atlas, 2008.
LIMA, Luís. CNJ julga legalidade de união poliafetiva. 15 de maio de 2018. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/sociedade/cnj-julga-legalidade-de-uniao-poliafetiva-22682855#ixzz5R0XjUnGb>.
TARTUCE, Flávio. Da escritura pública de união poliafetiva - Breves considerações. 26 de abril de 2017. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/FamiliaeSucessoes/104,MI25781 5,31047-Da+escritura+publica+de+uniao+poliafetiva+Breves+consideracoes>.
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