A HUMANIDADE NA CORDA BAMBA DE SUA AUTOANÁLISE

08/03/2018

Semana passada, conversava com um de meus alunos – para lhe trazer alguma espécie de conforto existencial (ou não) – porque estava se debruçando demais nas várias críticas que se realizam ao Direito Positivo. Lembrei a ele que uma boa dose de Dogmática Jurídica não faz mal a ninguém, especialmente quando o seu objetivo é de impedir abusos e arbítrios que se observa nesse país da “piada pronta” chamado Brasil, como afirmaria o José Simão.

Quando a Dogmática Jurídica espelha as preocupações e questionamentos que foram realizados na dimensão Zetética, tem-se um senso comum teórico dos juristas compatível com o que foi posto, ou seja, buscou-se compreender a profundidade e complexidade de um fenômeno exatamente como é. No entanto, se não houve sequer a possibilidade de se suspender esse fenômeno – como a epoché da Fenomenologia[1] - A Dogmática Jurídica não consegue: 1) disseminar a estabilidade científica de seus paradigmas e decidir[2] o que é necessário para se reforçar a importância da segurança jurídica; 2) verificar a efetividade das respostas elaboradas pela Dogmática Jurídica segundo a sua aproximação com a realidade vivida.

Esse pequeno exemplo sintetiza um pouco das angústias vividas pelas pessoas no momento presente devido às crises existenciais e civilizatórias espalhadas por todos os cantos do mundo. Infelizmente, a humanidade não conseguiu visualizar, de modo mais claro, o que é esse vinculo comum que habita as diferentes culturas, as diferentes regiões, os diferentes modos de vida, a complexidade e as regras das relações humanas. Todos precisam de um certo momento de estabilidade, mas, também, das críticas para que haja o nosso desenvolvimento ao longo do tempo. O excesso de ambas sinaliza o nosso grau de indiferença com os seus resultados, pois quando se verifica o excesso de estabilidade cria-se um lugar de acomodação, de ausência de movimento; quando se constata o excesso de crítica tem-se um lugar de puro frenesi, de movimentos rápidos e aleatórios, os quais não impedem qualquer meditação mais lenta, semelhante ao movimento das raízes arbóreas, cujo caminho é lento e sempre em direção aos lugares mais escuros da profundidade.

A Pós-Modernidade[3], caracterizada como esse momento de transição histórica – embora muitos neguem a sua existência na esperança de que a Modernidade cumpra as promessas das suas metanarrativas – demonstrou uma forte alteração dos modos de viver e conviver, ampliadas pela tecnologia. No entanto, esse cenário de conforto, trouxe, ainda, a dissolução das barreiras nacionais. Hoje, não se precisa de um arauto que tenha a nossa legitimidade para vigiar o que acontece no mundo. Somos os protagonistas desta – e de muitas outras – tarefa(s).

A pergunta que nasce dessa condição é a seguinte: Houve aperfeiçoamento desse nosso vinculo de humanidade compartilhado? A resposta é estrondosamente sonora: Não! A amplitude, o alcance e a rapidez assegurada pela tecnologia para se saber o que ocorre no mundo não foi capaz de nos sensibilizar perante a miséria alheia, ao contrário, a sua insistência diária – somada a milhões de outras informações - tem apenas gerado a nossa indiferença – patológica, insiste-se – e confusão. Na verdade, a dimensão tecnológica exigida como imperativo de vida na Pós-Modernidade apenas evidenciou o óbvio:  os limites psíquicos e fisiológicos de nossa condição humana.

Essa vigilância constante e global identificou, sim, diversas mazelas que impedem uma estabilidade – principalmente jurídica – tanto no espaço local quanto o transnacional. Esses são instrumentos preciosos para que não haja nenhuma violação à integralidade da vida em seus diferentes locais, formas de manifestação, articulação e comunicação. Entretanto, junto com um instrumento onipresente veio a incompatibilidade de nossa condição humana se adaptar a esses novos imperativos.

A exigência global da transparência, por exemplo, somente pode ser reivindicada como instrumento de controle organizacional. A sua aplicação nas demandas humanas cotidianas gera tão somente a própria autofagia das relações entre as pessoas. A luz da transparência não apenas cega, mas evidencia que ali nada há. Toda forma de convivência não se desenvolve simplesmente por aquilo que se manifesta, mas pelos segredos ali contidos e que não são respondidos satisfatoriamente pelas certezas habituais produzidas pelos egos.

Outro ponto que merece destaque: à medida que estamos presentes virtualmente no mundo, maior são os nossos medos, fobias e incertezas. Medo é um excelente instrumento de controle. Veja-se como a ausência de momentos para se identificar e resolver essas situações, de se ter o franco e dosado diálogo entre estabilidade e crítica são problemáticas. No mundo, amplia-se as ações de intolerância, de xenofobia, de guerra, de posturas racistas, de total incompreensão sobre o Outro. Esse é um efeito do imperativo tecnológico cujos limites de nossa humanidade não aceita: quanto mais nos tornamos globais, mais o território local se torna ameaçado. Essa situação somente marginaliza e enfraquece a articulação e força das atitudes humanas contra as suas próprias misérias.

Percebe-se que, em cada individuo, existe um momento de irredutibilidade, um núcleo no qual muito dificilmente o ego consegue diluir as suas certezas. O problema ético e civilizatório de nosso tempo não reside apenas na irredutibilidade do “Eu”, mas, ainda, de como impedir que essa cegueira conduza todos para a incompatibilidade de um projeto humano que somente se consolida pelo conviver[4].

A autocrítica surge como os limites identificados pela autoanálise. Na ausência da primeira postura, observa-se a correnteza forte e livre do ego no cotidiano sem qualquer preocupação ou apreço pelo Outro. O que se observa na vida de todos os dias é o choque das auto justificações. Quando, por exemplo, a violência se destaca de modo acentuado, aparecerão aqueles autoproclamados (e justificados) “salvadores da humanidade ou da pátria”. O pensamento de Morin, nesse caso, esclarece que a luta fundamental da autocrítica é contra a disseminação da auto justificação[5].

A autoanálise viabiliza o insight dos territórios desconhecido do ego. Consegue-se, aos poucos, esclarecer cada local desse espaço cuja totalidade será sempre desconhecida por todos. Entretanto, na medida em que se torna possível enxergar as carências e limitações da natureza humana, pode-se avançar na tentativa de ser sempre mais humano, não obstante todas as suas dificuldades, especialmente naquelas que nutrem a religação da trindade indivíduo-sociedade-espécie.

Esse é o complemento da autoanálise, perfilhado pela autocritica, qual seja, advertir “[...] das nossas alergias psíquicas, dos humores que nos surpreendem, das mil pequenas falhas de cretinismo em cada um e só pode ser reforçada pela capacidade de rir de si mesmo”[6].  O diálogo entre as mencionadas posturas revela o cultivo de uma cultura psíquica que, conforme rememora Morin, se rever-se continuamente e permanecer em estado de vigília.

A vida cotidiana é um palco. Todos nós representamos, em diferentes lugares, várias máscaras. É graças a essa condição que a socialidade permite certo grau de elasticidade, de compreensão, de estabilidade, de crítica no conviver. Em outras palavras: a vida comum é feita de representação e não uma mera exposição[7], na qual somos todos mercadorias com preço. A humanidade, precisa, urgentemente, das críticas - em dosagens homeopáticas – contra a violência de todas as forças globais e locais capazes de reduzir a nossa humanidade em terra arrasada.

Nesse caso, a autoanalise permanente conduz a territórios de estabilidade, reconhecendo, a cada tempo, a necessidade de sua reinvenção pela crítica. A humanidade está na corda bamba temporal, se houver avanços ou retrocessos depende exclusivamente das suas decisões fundadas pelas críticas que conduzem a momentos de estabilidade harmoniosos.            

 

[1] “[...] qualquer um que queira seriamente filosofar, é inevitável iniciar com uma espécie de epoché radicalmente cética, que põe em questão o universo de todas as suas convicções anteriores, interdita de antemão qualquer uso das mesmas num juízo, qualquer tomada de decisão sobre sua validade ou não validade”. HUSSERL, Edmund. A crise das ciências européias e a fenomenologia transcendental: uma introdução à filosofia fenomenológica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012, p. 61.

[2] FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. A ciência do direito. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 42/43. 

[3] “[...] Talvez, neste sentido, que corresponde a uma certa forma de pensamento débil, a pós-modernidade, atravessada por tantas teorias contraditórias, encontre um lugar na História do pensamento jurídico: não como mudança de idade, mas como catalisador para que tal venha a se produzir. [...] Fica a hipótese, submetida a quantos não entendam mais a pós-modernidade como um tempo [...], mas como um espírito”. CUNHA, Paulo Ferreira da. Desvendar o direito: iniciação ao saber jurídico. Lisboa: Quid Juris, 2014, p. 112/113.

[4] “Há em cada um de nós um núcleo egocêntrico indestrutível e, por causa disso, existe na vida moral uma parte amoral, de resto necessária ao exercício da moral, mesmo que seja por permitir a sobrevivência: uma ponta de indiferença é necessária para evitar a decomposição pela dor do mundo. não é possível viver sem estar parcialmente fechado, alheio, cego, petrificado. Mas é contra o fechamento, a cegueira, a petrificação que o espírito deve, intelectual e eticamente, resistir”. MORIN, Edgar. O método 6: ética. Tradução de Juremir Machado da Silva. Porto Alegre: Sulina, 2005, p. 96.

[5] MORIN, Edgar. O método 6: ética. p. 96.

[6] MORIN, Edgar. O método 6: ética. p. 96.

[7] “[...] Quando o próprio mundo se transforma em espaço de exposição, já não é possível o habitar, que cede lugar à propaganda, propaganda, com o objetivo de incrementar o capital da atenção do público. [...] A permanente coação por exposição e por desempenho ameaça a paz, [...]. Ela não é passível de exposição, pois está plena de valor cultual”. HAN, Byung-Chul. Sociedade da transparência. [Edição Kindle].  Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis, (RJ): Vozes, 2017, pos. 259-264.

 

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