A horizontalidade e a reserva de funções dos contratos empresariais - Por Eduardo Silva Bitti

24/10/2017

É necessário ratificar-se o primeiro elemento diferenciador dos contratos mercantis como sendo o dever de conhecimento do risco de mercado na concepção de relações jurídicas horizontais e verticais. E, aqui, pondera-se a diferenciação entre as áreas diante de três óticas, mormente, a dos contratos horizontais superiores, a dos horizontais inferiores e a dos verticais.

Paula Andrea Forgioni[1] recorda a obra de Herbert Simon[2], para quem, se fosse representar cada agente como um quadrado e cada relação como uma linha, existiriam inúmeros quadrados e estes seriam interligados por proporcional número de traços.

Aqui, riscando-se uma seta verticalmente apontada para cima, com identificação dos graus mínimo e máximo quanto ao ônus do sujeito em relação ao conhecimento de riscos de mercado, talvez, finalmente, fosse possível entender as diferenças internas do direito privado brasileiro atual. Passar-se-ia a ser mais compreensível, por exemplo, a noção de que os contratos de natureza civil possuiriam sentido horizontal inferior, pois eles são, por natureza, aqueles nos quais os contratantes não dependem profissionalmente da prática consubstanciada no ato econômico desenvolvido.

Afinal, os negócios jurídicos desse nível são realizados de maneira eventual e os envolvidos não têm o ônus de conhecimento de riscos, apesar destes, às vezes, serem conhecidos. Como explica Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa[3], os contratos civis se caracterizam como “aqueles nos quais as duas partes não são empresários nem prestadores profissionais de serviços”, nos quais estando em situação de igualdade econômica e jurídica, ao menos em tese.

Nessa esteira, grosso modo, a relação civil pode ser visualizada com dois sujeitos que, em lados opostos, seriam “vulneráveis” entre si e, por isso, haveria um equilíbrio entre eles, razão pela qual o traço seria horizontal. Não existiria domínio por qualquer dos polos e a localização estaria em um patamar inferior, próximo ao marco zero, ou, se preferir, ao início da seta desenhada.

O contrário ocorreria com os contratos de consumo, ou mesmo com os de trabalho. Neles, se verifica o fato de que uma das partes não possui, em razão de condição de sujeito subordinado, o referido dever de conhecimento do empreendimento.

Não se atribui, por exemplo, ao consumidor, o papel de protagonista no negócio, tamanha a sua condição de vulnerável, termo que adiante será mais bem explicado. Ele é apenas alguém que adere a um negócio individual que é reprodução de cenários estipulados pelo fornecedor, apesar de se saber que o simples fato de ser contrato de adesão não revela uma relação de consumo.

Em termos gráficos, o traço de tal relação jurídica é vertical, pois o consumidor estaria próximo ao marco zero da escala, ou seja, em ponto inferior na comparação ao fornecedor, tanto que aqui entra a expressão “hipossuficiente” como adjeta ao primeiro. O dever de conhecimento de mercado, assim, pertenceria exclusivamente ao que fornece produtos ou serviços, o que afasta a importância do poderio financeiro de uma das partes a atender o conceito de hipossuficiência.

E que se grife o dever e não o conhecimento, eis que o fato de conhecer a cadeia produtiva não retira o caráter de inferioridade na relação.

Sobre o termo fornecedor, aliás, recomenda-se cautela. Ao se fazer a interpretação do artigo 3o do Código de Defesa do Consumidor, é necessário verificar a semelhança para com os empresários descritos no, ainda em vigor, artigo 966 do Código Civil. Naquele, informa-se que fornecedor, para fins consumeristas, seria “toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados”, que desenvolveriam atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, além, é claro, de importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.

Ao se tomar por base novamente as palavras de Verçosa[4], vê-se a explicação de que os contratos submetidos ao Código de Defesa do Consumidor são retratados como aqueles nos quais tanto faz se o fornecedor é empresário ou não, considerando que o conceito de fornecedor é de alcance mais amplo.

A observação é realizada porque o referido autor finalmente chama de contratos mercantis “aqueles nos quais uma das partes é um empresário (ou sociedade empresaria) no exercício de sua atividade” em conformidade com os artigos 966 e 982 do Código Civil, “e a outra parte também é empresário ou pessoa não caracterizada como consumidor”. Logo, as características diferenciadoras dos contratos mercantis para os não mercantis, no Brasil, seriam a impessoalidade, a padronização e a mercadorização.

As palavras de Verçosa, acima apontadas, aparentam retratar um raciocínio uníssono no direito brasileiro, ou seja, de que o artigo 3o do Código de Defesa do Consumidor de 1990 foi definido sem levar em conta os dizeres do Código Comercial de 1850, ou mesmo os do Código Civil, o que leva a concluir que o empresário seria mera espécie daquilo que “fornecedor” é gênero. E o inconveniente começa pela afirmação de que profissionais intelectuais, associações e fundações poderiam ser consideradas como fornecedores, segundo os ditames de consumo, o que gera uma incoerência. Ao permitir isso, as normas consumeristas levam o pesquisador do assunto a ratificar o que já foi objeto de análise em capítulo anterior. Quando se colocam associações, fundações e profissionais intelectuais para figurarem como fornecedores, a análise sistêmica permite cravá-los como figuras similares ao empresário, mas isso rechaçaria a própria fala de Verçosa, apontada acima, quando assegura que os contratos empresariais seriam aqueles realizados apenas entre os sujeitos definidos pelo artigo 966 do Código Civil atual[5].

Feita essa observação, é importante destacar que entender o papel do fornecedor nas relações de consumo carece, assim, na prática, da mesma verificação dos desenhos horizontais e verticais. O que leva o sujeito a ficar em posição de superioridade, tanto de acordo com o Direito do Consumidor, como no caso do Direito Empresarial, é o dever de conhecer os riscos inerentes à atividade praticada. Essa consideração, de novo, viabiliza a noção de transparência das normas que regem a matéria e expõem os riscos sobre os quais os empresários têm o dever, ônus, de conhecer.

Concorda-se, porém, quando Verçosa relata que são características dos contratos empresariais, mormente, a impessoalidade empregada pelo empresário nos negócios dos quais participa, a padronização de produtos e serviços, além, é claro, de voltar, de maneira profissional e organizada, o resultado da produção a mercados, o que é, de certa forma, ratificado por Paula Andrea Forgioni[6] quando ela também indica uma série de diretrizes do Direito Comercial que são inerentes aos contratos mercantis, destacando o escopo de lucro dos contratantes, a função econômica do negócio e a escolha por situações em que os custos da transação serão mais adequados.

Forgioni, no entanto, também lembra que a essas características se empregam o oportunismo, a vinculação, a ausência de informações completas sobre a outra parte contratante e sobre o futuro, que condiz com uma racionalidade limitada e cita a existência do desvio das partes a pontos controvertidos que possam impedir a celebração do contrato, além da incompletude contratual, caracterizada pela ausência de informações. Entre outros elementos, a listagem incluiria a indicação da segurança e da previsibilidade jurídica, esta última tratada aqui como cerne da dignidade do empresário.

Por tudo, os contratos empresariais teriam para si a reserva de uma função distinta da dos contratos civis e consumeristas, naquilo que se relaciona, entre outros fatores, à própria natureza da atividade que instrumentalizam[7]. Se a função de tais contratos seria diferenciada, sua interpretação também poderia ser distinta daquela usualmente atribuída a tipos de negócio jurídico que não fossem de natureza empresarial, na qual também interfeririam aspectos como o grau de conhecimento dos contratantes, a habitualidade, a concorrência e o mercado.


[1] FORGIONI, Paula Andrea. A evolução do direito comercial brasileiro: da mercancia ao mercado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009a, p. 33.

[2] SIMON, Herbert Alexander. Organizations and markets.  Journal of Economic Perspectives, v. 5, n. 2, p. 27-28, Spring. 1991.

[3] VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Contratos mercantis e a teoria geral dos contratos: o Código Civil de 2002 e a crise do contrato. São Paulo: Quartier Latin, 2010a, p. 25.

[4] Idem.

[5] Os conceitos de fornecedor e empresário deveriam, enfim, ser aproximados de sorte a acabar com, ao menos, uma parte dos conflitos entre as disciplinas consumerista e comercial. A unificação epistemológica, ou, ao menos, a similaridade conceitual resultaria, possivelmente, em efeitos como a aplicação das normas falimentares e recuperacionais a todos os empresários, além de ser didaticamente melhor aos que dependem de compreensão das regras de mercado.

[6] FORGIONI, Paula Andrea. Teoria geral dos contratos empresariais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009b, p. 55-151.

[7] Cf. RIBEIRO, Marcia Carla Pereira; AGUSTINHO, Eduardo. Fundamentos para a interpretação dos contratos empresariais: aspectos jurídicos e econômicos. In: Revista de Direito Mercantil: industrial, econômico e financeiro, São Paulo: Malheiros, v. 48, n. 151/152, p. 67, jan.-dez. 2009.

Imagem Ilustrativa do Post: Alec Ross and Emily Banks at the AMCHAM reception in Auckland, August 31, 2012 // Foto de: US Embassy // Sem alterações

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