A (há) vinculação do Júri ao pedido absolutório formulado pelo Ministério Público em Plenário

09/11/2018

Muito se discute acerca da possibilidade de atuação de um magistrado criminal diante de um pedido absolutório formulado pelo Ministério Público quando este não entende que a pretensão acusatória deduzida na denúncia se sustente, por qualquer que seja o motivo.

Em uma primeira análise, a literalidade do artigo 385 poderia se apresentar como satisfatória, eis que confere ao magistrado uma liberdade para sentenciar, inclusive contrariamente ao pedido ministerial quando este manifesta-se pela absolvição do acusado.

Dispõe tal artigo:

 

Art. 385.  Nos crimes de ação pública, o juiz poderá proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição, bem como reconhecer agravantes, embora nenhuma tenha sido alegada.

 

Ocorre que tal texto não pode ser lido dissociado do que consta na Constituição da República, que estabelece para o processo penal um sistema acusatório, ao separar as funções de acusar e julgar e deslocar para as partes a gestão da prova, que não pode, mais, ser protagonizada pelo juiz.

A Constituição de 1988 estabelece, quando trata das funções institucionais do Ministério Público, que a este compete, privativamente, promover a ação penal pública, na forma da lei[1].

O Ministério Público, então, exerce a função de parte, devendo provocar o Poder Judiciário, ao que se contraporá uma defesa, que deverá ser ampla (e não meramente formal). A partir daí, poderá o Judiciário emanar um provimento jurisdicional, que deve se dar em consonância com aquilo que foi produzido pelas partes.

E aí, claramente, se não há pretensão condenatória pelas partes, não pode o juiz se imiscuir no papel de parte – nesse caso, de acusador. Agir desta forma, além de demonstrar a atuação do Judiciário sem a devida provocação, ofende, claramente o contraditório, vez que o juiz estaria decidindo contrariamente ao que foi produzido pelas partes.

Assim, se após a produção probatória pelas partes, o órgão ministerial não se mostra convencido da necessidade de condenação do acusado e manifesta-se pela absolvição deste, ao magistrado é vedada a produção de qualquer provimento que não o absolutório.

Isso porque, se o Ministério Público não vislumbra mais como sustentar sua pretensão condenatória anteriormente deduzida, na denúncia, tal corresponde à retirada da acusação. Logo, inexiste a provocação do Poder Judiciário pela prolação de uma decisão de condenação.

Sobre o tema, as sempre pertinentes palavras do Professor Aury Lopes Jr.:       

"O Ministério Público é o titular da pretensão acusatória, e sem o seu pleno exercício, não abre-se a possibilidade de o Estado exercer o poder de punir, visto que se trata de um poder condicionado. O poder punitivo estatal está condicionado à invocação feita pelo MP através do exercício da pretensão acusatória. Logo, o pedido de absolvição equivale ao não exercício da pretensão acusatória, isto é, o acusador está abrindo mão de proceder contra alguém.           
Como conseqüência, não pode o juiz condenar, sob pena de exercer o poder punitivo sem a necessária invocação, no mais claro retrocesso ao modelo inquisitivo.
(...)
Portanto, viola o sistema acusatório constitucional a absurda regra prevista no art. 385 do CPP, que prevê a possibilidade de o Juiz condenar ainda que o Ministério Público peça a absolvição. Também representa uma clara violação do Princípio da Necessidade do Processo Penal, fazendo com que a punição não esteja legitimada pela prévia e integral acusação, ou melhor ainda, pleno exercício da pretensão acusatória." (LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional, Volume II. Rio de Janeiro, RJ: Lumen Iuris, 2009, p. 343).         

 

Pertinente mencionar, ainda, as palavras do Professor José de Assis Santiago Neto, para quem:

 

Merece destaque ainda a possibilidade atribuída pelo art. 385 do CPP de que, nos processos de ação penal pública, o juiz possa proferir sentença penal condenatória mesmo que o órgão da acusação tenha requerido a absolvição do acusado, assim como permite que o julgador reconheça, sem nenhum pedido das partes, agravantes. Verifica-se, nesse sentido que o CPP atribui ao juiz a postura ativa de condenar e ou agravar a pena do acusado, agindo como ator, acusador, em detrimento da parte constitucionalmente criada para atuar nesse papel, fazendo tabula rasa do contraditório e da ampla defesa para acender (ou manter acesa) a fogueira inquisitória na qual o acusado está fadado a arder ao final do processo. Nesse sentido, vale lembrar Geraldo Prado:

Assim, quando em alegações finais o Ministério Público opina pela absolvição do acusado o que ocorre em concreto, no processo, é que o acusador subtrai do debate contraditório a matéria referente à análise das provas que foram produzidas na etapa anterior e que possam ser consideradas desfavoráveis ao réu. Como a defesa poderá reagira argumentos que não lhe foram apresentados? {PRADO, 2006, p. 116)

(...)

Verifica-se, portanto, que o Código de Processo Penal coloca o juiz no centro do palco processual, configurando-se como um diploma inquisitorial e afastado dos ditames processuais democráticos. Assim, podemos afirmar que não temos um "código de processo penal" mas apenas e tão somente um "código de procedimentos penais". (SANTIAGO NETO, José de Assis. Estado Democrático de direito e processo penal acusatório: a participação dos sujeitos no centro do palco processual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015. p. 164/165).

 

O sistema acusatório impõe ao Poder Judiciário a vinculação ao pedido realizado pelo parquet em alegações finais. Caso contrário, estar-se-ia diante da figura de um juiz inquisidor, que não se contenta com a sua função de julgar, mas, mais, subroga-se no lugar de parte para garantir que o resultado não destoe daquele por ele já mentalmente produzido, havendo ou não prova, havendo ou pretensão condenatória ministerial para tanto.

Para concluir, o sempre preciso o Professor Geraldo Prado:           

"Como o contraditório é imperativo para validade da sentença que o juiz venha a proferir, ou, dito de outra maneira, como o juiz não pode fundamentar sua decisão condenatória em provas ou argumentar que não tenham sido objeto de contraditório" (PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório, p. 117)[2].           

Em se tratando do procedimento comum, o enfrentamento do artigo 385 do Código de Processo Penal é estreme de dúvidas: não há como uma condenação se sustentar sem que haja uma pretensão do titular da ação penal nesse sentido.

Mas, e no júri? Como fica a atuação do conselho de sentença, a cujo julgamento a Constituição da República atribuiu soberania, diante de um pedido absolutório formulado pelo Ministério Público?

Causa um certo desconforto falar em vinculação dos jurados ao pedido absolutório ministerial, pois a Constituição é clara ao trazer que a decisão dos jurados é soberana. Tanto o é, que não pode ser reformada em caso de recurso, mas, cassada para que outra seja proferida em seu lugar em casos muito específicos.

Ocorre que, ao contrário do que possa parecer, em um primeiro momento, mostra-se perfeitamente possível compatibilizar a soberania dos vereditos com o sistema acusatório.

Para que os jurados atuem, é necessário que haja mais de uma tese produzida pelas partes em plenário, ocasião em que optarão por uma delas, conforme a sua íntima convicção.

No entanto, se o Ministério Público adere à tese defensiva, tal corresponde a uma retirada de acusação. Não há mais um caso penal com uma pretensão acusatória regularmente deduzida pelo titular da ação penal para que o júri decida soberanamente, “pois quando pugnou, em Plenário, pela absolvição, ele  [o MP] abdicou do exercício da pretensão acusatória, não desistindo, mas agindo, pois se debruçou sobre a prova dos autos e entendeu ser esta inidônea para condenar.[3]

Como proceder, então, diante de um pedido absolutório ministerial em plenário?

O júri é o juiz natural para julgamento de crimes dolosos contra a vida, quando há uma válida pretensão ministerial nesse sentido. Vale dizer: se não há pretensão acusatória para a condenação pela prática de crime doloso contra a vida para que os jurados julguem, compete ao juiz presidente da sessão dissolver o Conselho de Sentença e, ele mesmo, sentenciar, absolvendo o acusado, pois está vinculado à pretensão ministerial.

E se, todavia, o magistrado de primeiro grau não procede desta forma e o júri condena o acusado, mesmo diante de um pedido absolutório ministerial? Como proceder o Judiciário, em segunda instância, diante de um recurso defensivo?

A questão é complexa. Porque, se o Poder Judiciário cassa a decisão - porque manifestamente contrária à prova dos autos (o que a decisão, de fato, é) - como proceder à nova quesitação, já que os jurados somente podem absolver? Se o MP anui com o pedido absolutório da defesa, no primeiro julgamento, e dele não recorre, cassar a decisão em segunda instância e submeter o acusado novamente ao júri é dar a possibilidade de este novamente condená-lo, incorrendo, portanto, em reformatio in pejus.

Diante desse quadro complexo e raro, ao que tudo indica, a melhor solução passível de ser adotada pelo Tribunal, em segunda instância, seria absolver o acusado, então recorrente, de plano.

Neste caso,

 

o Tribunal estará diante de hipótese sui generis. A decisão é contrária à prova dos autos em razão de ausência de acusação (ultimada pelo pedido de absolvição). O Júri não escolheu uma entre duas teses. Não havia outra tese a escolher que não a absolutória.

O Júri não pode ser uma garantia e ao mesmo tempo uma instituição fora do controle do Estado Constitucional, razão pela qual os jurados não podem decidir arbitrariamente, sem pedido de condenação. O Júri não pode ser uma espécie de juízo ou tribunal de exceção[4].

 

Assim sendo, como já dito, não há mais de uma pretensão deduzida em juízo para que o júri decida entra uma ou outra(s). Só existe a pretensão absolutória, e, em sendo o único provimento possível de ser prolatado pelo Poder Judiciário (aqui, representado pelo júri), perfeitamente possível e desejável que seja adotado em segunda instância.

Diante disso, conclui-se que a soberania do júri não vai de encontro ao sistema acusatório adotado pela Constituição da República, podendo com ele ser compatibilizado, por todo o exposto acima.

 

 

Notas e Referênciasnções institucionais do Ministério Público:

I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei; (...)

[2] PRADO, Geraldo Luiz Mascarenhas. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016.

[3] Disponível em https://www.ibccrim.org.br/boletim_artigo/5746-Pedido-de-absolvicao-pelo-membro-do-Ministerio-Publico-em-Plenario-do-Juri-e-impossibilidade-de-submissao-do-feito-a-votacao-pelos-jurados-O-sistema-acusatorio-em-debate . Acesso em 11 de novembro de 2018.

[4] Disponível em https://www.ibccrim.org.br/boletim_artigo/5746-Pedido-de-absolvicao-pelo-membro-do-Ministerio-Publico-em-Plenario-do-Juri-e-impossibilidade-de-submissao-do-feito-a-votacao-pelos-jurados-O-sistema-acusatorio-em-debate . Acesso em 11 de novembro de 2018.

 

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