Atriz global, jovem de 21 anos, engravida após estupro e decide realizar a entrega legal do bebê; criança capixaba de 10 anos engravidou em decorrência de abuso sexual intrafamiliar e foi encaminhada para realização do aborto legal; criança de 11 anos é estuprada e engravida pela segunda vez em Teresina no Piauí. Esses são casos que comovem a mídia e população brasileira, mas na essência, a violência sexual se manifesta com dados ainda mais alarmantes. Conhecida como um fenômeno universal e histórico que pode atingir qualquer sujeito, sem restrições de raça, cor, cultura, geração, etnia, ou classe socioeconômica, a violência sexual é complexa e revela-se na sociedade desde as mais antigas formações sociais.
Estima-se que 12 milhões de pessoas no mundo são atingidas pela violência sexual, sendo as mulheres as principais destinatárias, com destaque para faixa etária entre 0 a 19 anos, segundo a Organização Mundial de Saúde - OMS(KRUG et al, 2002). Considerada uma das violências mais perversas que afeta os direitos das pessoas do sexo feminino, a violência sexual incide sobre a vida psíquica, física, sexual e reprodutiva das vítimas, e apresenta consequências nefastas (BRASIL,2018). Dentre elas, podem ser enumeradas afetações psicológicas, que englobam Transtorno de Estresse Pós-Traumático até tentativas de suicídio; lesões nos órgãos genitais; Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST); e também, a gravidez indesejada (PLATT;BACK;HAUSCHILD;GUEDERT,2018).
Segundo informações divulgadas na Nota Técnica do Ministério da Saúde (BRASIL, 2012), a taxa de probabilidade para gravidez como consequência do estupro varia entre 0,5% e 5%, sendo crianças e adolescentes as protagonistas nesses índices devido à frequência dos abusos sexuais em que essas são destinatárias.
A gravidez decorrente do abuso sexual está imbricada com as questões sociais, subjetivas e históricas que perpassam as realidades das mulheres, assim, pode ter dois desfechos: a continuidade[1] ou a interrupção[2] legal. Estudos realizados sinalizam sobre a percepção e sentimento das mulheres a cerca desses defeixos, e identificaram que dar continuidade a gestação é protelar as marcas da violência; nesses casos, as condições compulsórias resultam em repulsa ainda maior, e pode prejudicar a relação mãe-bebê (NUNES; MORAIS, 2016). As mulheres que garantem o direito ao aborto nessa temática apresentam, assim, resultados mais satisfatórios emocionais frente as que necessitam ou escolhem dar continuidade (MACHADO et al., 2015).
Nos casos divulgados pela mídia citados neste artigo tem-se o corpo feminino violado pela relação de dominação do poderio masculino e subalternizado diante de uma sociedade patriarcal opressora que incide o discurso julgador e de ódio diante dos encaminhamentos realizados pelas destinatárias da violência. Embora haja respaldo jurídico, respaldo médico e outros fatores que influenciam de maneira concreta para a tomada de decisões, a visão da família sacralizada sempre vem à tona como forma de responsabilidade da mulher perpetuar tal falácia.
É dever da mulher dar seguimento ao nascimento e até mesmo criação de uma criança fruto de uma relação de violência? Sendo assim, qaul o lugar de direito da mulher? A isenção do homem dificilmente é questionada, enquanto a resposabilização da mulher é assunto sempre em voga. A gravidez em idade prematura é considerada de risco, e essa é uma da principais características nos casos de gestação em decorrência do abuso sexual. Nesse sentido, por vezes, a equipe de saúde indica que respaldado nos direitos consentidos no código penal, bem como primando pela saúde e vida da mulher (na maioria dos casos crianças ou adolescentes) o aborto seguro é uma importante via de escolha para dirimir os riscos existentes. Entretanto, a sociedade insiste em comungar com a via inversa, como no caso de Tresina, no qual os pais da criança culpabilizaram-na pela violência e decidiram, em nome da criança, pelo não aborto.
O caso da atriz global já difere desse. A atriz deu segmento à gestação e ao parir a criança decidiu por entregá-la à justiça por meio da entrega voluntária para adoção, o que é previsto na lei 13.509/2017. Ainda que tenha buscado pelo sigilo entorno da situação que vivenciou, os dados sobre a violência, a gravidez e sua escolha pela entrega para adoção foram divulgados na mídia, por profissionais da saúde que acompanhavam o caso, e mais uma vez foi vítima de violência psicológica, moral e instituicional por não optar em continuar com a criança. Percebe-se pois o reforço sobre a premissa do imaginário social da mulher-mãe e a manutenção da “sagrada” família.
Diante dos casos expostos é importante situar o lugar das jovens e adolescentes na sociedade ocidental. O adultocentrismo é uma perspectiva colonozidora que permeia a fase peculiar do desenvolvimento humano de maneira perjorativa. Ele atribui a essa fase uma topologia em que crianças e adolescente são desconsiderados em sua singularidade, e convocados a atender ao desejo dos adultos (CALLIGARI, 2009). Contudo, diferente da infância, a adolescência é convocada a ter maturidade em suas condutas ao mesmo tempo que é excluída da vida adulta. Trata-se, pois, da desqualificação dos adolescentes no tocante a sua capacidade de escolha, e da desconsideração quanto as suas necessidades específicas, sobretudo no que diz respeito à garantia do seu direito sexual e reprodutivo (LEAL; CASTELAR, 2019).
Às mulheres que engravidam em decorrência da violência sexual são assegurados os direitos de continuidade ou interrupção da gravidez de acordo com Decreto-Lei nº 2848, de 7 de dezembro de 1940, art. 128, inciso II, do Código Penal, sendo dispensável Boletim de Ocorência ou decisão judicial que comprove o estupro. Entretanto, para que essa escolha seja tomada, essas jovens são alvo do saber institucional também da sociedade em geral, que paradoxalmente, se posiciona a favor da maternidade compulsória nos casos da gestação resultante da violência sexual, embora critique a gravidez na adolescência.
Essa ideia é reforçada, por exemplo, pela frente política conservadora, que por meio de intervenção e controle do corpo da mulher sugere em bancada parlamentar o Projeto de Lei (PL) nº5435/2020 que dispõe sobre o Estatuto da Gestante,e defende a inviabilidade do aborto das gestações resultantes do estupro, em defesa da vida do feto que está para nascer, e preterindo os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. O projeto visa a garantia de um salário-mínimo até os 18 anos para a criança que nascerá, ou nos casos da identificação do genitor, ele será obrigado a pagar pensão alimentícia.
Portanto, as jovens adolescentes ao serem destinatárias da violência sexual com marcas da gravidez indesejada têm seu direito de escolha impactado pela subordinação constituída em dois eixos: masculino sobre o feminino; adultez sobre a infância e adolescência. Enfrentar esses obstáculos calcados no patriarcado é um desafio comum para as destinatárias de violência que se deparam com os percalços aderentes a sua geração. Ao serem delas exigido a autonomia e a busca da liberdade (CALLIGARIS, 2009), é em contrapartida ceifado sua agência de saber ao se tatar de sua maturação sexual, em especial a independência sobre seus direitos reprodutivos que pecisam ser tutelados pelos adultos.
Destarte, além das peculiriadades relativas à faixa etária, a violência sexual é tema a ser debatido nas questões de relação de gênero, por perceber a predominância da dominação masculina (agressor) sobre a feminina (sobrevivente). A norma de gênero que regula as condutas sociais tem como princípio basilar as relações de poder entrecruzadas com o patriarcado, na dominação do masculino sobre o feminino. A partir das investigações dos estudos feministas, encontram-se como teorias basilares os escritos literários de Simone de Beauvoir (2012) que influenciaram significativamente para o advento dessa pauta. Antes mesmo da nominação do termo “gênero”, Beauvoir (2012, p.7) afirmou que “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher”, logo, a autora denunciou que ser mulher implica em um processo histórico e social que rompe com o reducionismo às características anatômicas e biológicas. Assim, o termo gênero é entendido como uma forma primária de dar significado às relações de poder, o que traz à tona debates sobre a organização da sociedade em torno das diferenças sexuais (SCOTT, 1995).
Com as questões de gênero e geração imbricadas, assegurar o direito de escolha legal às jovens adolescentes que engravidaram em decorrência do abuso sexual sobre seu corpo e possíveis desdobramentos para sua trajetória de vida, é na verdade um desafio ao poder patriarcal, considerando os marcos de gênero e geração (LIMA; ALBERTO, 2016). Porém, apesar do amparo legal, as condições sociais e históricas incidem nesse processo de escolha que, embora se expresse de maneira velada, traz consequências na trajetória de vida das sobreviventes.
Não se pode admitir que o direito sexual e reprodutivo da mulher continue a ser minado constantemente pelos valores impostos na sociedade patriarcal, mas para além das questões de gênero, é importante se atentar também aos fatores correlacionados à geração. As crianças e adolescentes precisam além ter espaço de fala, serem respeitados e respeitadas enquanto sujeitos agentes de sua história. O Estatuto da Criança e do Adolescente já preconiza que esse público não é caracterizado por ser objeto de direito e sim, sujeito de direito. Portanto, face ao exposto a família, o estado e a sociedade precisam garantir que os direitos constitucinais e os demais previstos sejam garantidos para cessarem com a violências pulverizadas que atingem as crianças e adolescentes de maneira indiscriminada.
Notas e Referências
BEAUVOIR, Simone de. O Segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
BRASIL, República Federativa do. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Análise epidemiológica da violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil, 2011 a 2017 – Boletim Epidemiológico. Brasília, v.49, n.27, 2018.
CALLIGARIS, Contardo. A adolescência. São Paulo: Publifolha, 2009.
KRUG, Etienne et al. Relatório Mundial de Violência e Saúde. Genebra: Organização Mundial de Saúde, 2002.
LEAL, Maria Alice Ramos Ferreira; CASTELAR, Marilda. Abortamento na Adolescência: Atuação de Psicólogas em Hospitais-Maternidade Públicos de Salvador, Bahia. Psicol. cienc. prof., Brasília, v. 39, 2019.
LIMA, Joana Azevêdo; ALBERTO, Maria de Fátima Pereira. Urgências psicológicas no cuidado às mães em casos de abuso sexual intrafamiliar. Estud. psicol. (Natal), Natal. V. 21, n. 3, 2016, p. 337-347.
MACHADO, Carolina Leme et al. Gravidez após violência sexual: vivências de mulheres em busca da interrupção legal. Cadernos de Saúde Pública. V. 31, n. 2, 2015, p. 345-353.
NUNES, Mykaella Cristina Antunes; MORAIS, Normanda Araujo de. Violência sexual e gravidez: percepções e sentimentos das vítimas. Rev. SPAGESP, Ribeirão Preto , v. 17, n. 2, p. 21-36, 2016 . Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677-29702016000200003&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 13 ago. 2021.
PLATT, Vanessa Borges; BACK, Isabela de Carlos; HAUSCHILD, Daniela Barbieri; GUEDERT, Jucélia Maria. Violência sexual contra crianças: autores, vítimas e consequências. Ciência & Saúde Coletiva, 23(4), 2018, p. 1019-1031.
SCOTT, Joan Wallach. “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”. Educação & Realidade. Porto Alegre, vol. 20, nº 2, 1995, p. 71-99,.
[1] A continuidade da gestação pode ser escolha da sobrevivente ou ocorrer de forma compulsória, pois a interrupção gestacional precisa atender aos critérios que diz respeito a idade gestacional, que permite o abortamento só até a 22ª semana de gestação, e com o produto gestacional pesando até 500g (BRASIL, 2012).
[2]Para os casos das mulheres que engravidam em decorrência do abuso sexual é assegurado o direito à pela interrupção ou não da gestação, todavia, nos casos em que a gravidez ocorre em crianças ou adolescentes, além da sua vontade expressa, para a interrupção da gestação é necessário o consentimento de um de seus responsáveis. Em casos de conflitos de interesse, por exemplo, a adolescente optar por dar continuidade a gestação, e os pais optarem pelo aborto, o desejo da adolescente é respeitado. Enquanto que, se a adolescente opta pela interrupção e a família, desde que não seja autora da agressão, escolha pela continuidade, a decisão fica à mercê da justiça, embora ressalte-se que o direito à saúde sempre será preservado às gestantes (BRASIL, 2012).
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