A generalização da barbárie: a proposta de extinção do FNCA

24/11/2020

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Vivian Degann

Encontra-se em tramitação no Senado Federal e pronto para deliberação pelos senadores a Proposta de Emenda Constitucional 187/2019, apresentada pelo governo ao senado federal em 05 de novembro de 2019, por intermédio do Senador Fernando Bezerra Coelho (MDB/PE), que tem por finalidade extinguir, dentre outros, o Fundo Nacional para Criança e do Adolescente (FNCA).

Citamos alguns exemplos de fundos ameaçados de extinção pela PEC 187: Fundo de Assistência a Maternidade (proteção à maternidade e à infância), Fundo de Investimento Social (direitos sociais), Fundo Especial de Alimentação Escolar (direito a educação e alimentação), Fundo Nacional de Assistência Social (direito a assistência social), Fundo Nacional do Idoso (proteção ao idoso), o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), entre tantos outros.

O Governo não estabeleceu nenhum parâmetro de aperfeiçoamento e não elaborou estudo pormenorizado sobre a eficiência e/ou conveniência dos fundos atualmente existentes, ficando para os parlamentares a atribuição de “julgar, sem o necessário embasamento técnico, uma PEC que muda de forma radical e profunda a institucionalidade da gestão orçamentária e financeira do Estado Brasileiro”[1], chegando a justificar que o montante que deixar de ser vinculado aos fundos poderá ser usado para a erradicação da pobreza, todavia, essa finalidade já é objeto de um fundo constitucional, conforme previsto nos artigos 79 a 83, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

Essa breve introdução tem o intuito de situar o leitor e relatar que, lamentavelmente, nos deparamos com mais uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que interfere diretamente e de maneira prejudicial na vida de crianças e adolescentes, especialmente naquelas que se encontram em situação de vulnerabilidade, em total desrespeito à Doutrina da Proteção Integral e ao princípio da prioridade absoluta, extraídos da Constituição Federal e do Estatuto da Criança e do Adolescente.

A Lei nº 8.242 de 1991 criou o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) e instituiu o Fundo Nacional para a Criança e o Adolescente (FNCA), competindo aos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente sua manutenção, seja na seara nacional, distrital, estadual ou municipal, conforme previsto no artigo 88, IV, do Estatuto da Criança e do Adolescente, sendo que, o objetivo do referido Fundo é financiar, prioritariamente, programas específicos destinados a crianças e adolescentes cujos direitos estejam ameaçados ou violados.

A Constituição Federal estabelece em seu artigo 227 ser “dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”[2] (grifamos). 

Por seu turno, o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 1º, destaca a proteção integral de crianças e adolescentes, regulamentando no seu artigo 4º o princípio da primazia absoluta disposto no artigo 227 da nossa Constituição de 1988, conforme apontado no parágrafo acima.

Diante disso, a aprovação da PEC 187/2019 constitui-se numa afronta a direitos já consagrados, uma vez que a extinção do Fundo traz como reflexo imediato a retirada de verbas destinadas aos programas e projetos de garantia dos direitos das crianças e dos adolescentes em situação de vulnerabilidade social e familiar, os quais criados e executados seguindo os preceitos constitucionais e regras estabelecidas na Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente).

O Fundo da Infância e Adolescência “consiste em uma receita especial originada de fontes, com a finalidade de aplicação específica na área da infância e da juventude”[3], e sua gestão cabe ao Conselho de Direitos, que “possui como principais atribuições deliberar e controlar tanto as políticas públicas básicas, quanto os serviços especializados, incluídos nas ações governamentais ou não governamentais que tenham por objetivo atender crianças e adolescentes”[4], que deve exercer um controle para que não ocorra desvio de objetivo,  que é o de financiar projetos que atuem na garantia da promoção, proteção e defesa dos direitos da criança e do adolescente.

Portanto, a deliberação sobre a destinação das receitas advindas do Fundo da Infância e Adolescência é exclusiva dos Conselhos de Direitos, observados os planos de aplicação desses recursos, os quais se buscam, prioritariamente, “ao diagnóstico, ao planejamento, ao monitoramento, à avaliação das políticas públicas e à capacitação dos operadores do sistema de garantias de direitos”[5].

A destinação de valores oriundos do Imposto de renda para o Fundo da Infância e Adolescência traz consigo um “sentimento de pertencimento coletivo, solidariedade social, dignidade da pessoa humana, fortalecimento da sociedade civil organizada e do exercício da democracia”[6] e visam corrigir uma distorção, uma vez que, historicamente, a infância e adolescência nunca foram prioridades das políticas públicas em nosso país.

Importante se destacar que “as receitas dos Fundos não excluem a obrigação do poder público de contemplar o orçamento com verbas para a garantia dos direitos fundamentais”[7], porém gera uma responsabilidade de todos, ou seja, do Poder Público e da comunidade em geral. A do Poder Público deriva da lei e a responsabilidade da comunidade vem acompanhada da ideia de pertencimento e envolvimento desta nos Conselhos de Direitos.

Por todo o exposto, consideramos que a extinção do Fundo da Infância e Adolescência é uma violação ao artigo 227 da Constituição Federal e um desrespeito à Doutrina da Proteção Integral já incorporada ao nosso ordenamento jurídico como princípio basilar de outras normas, trazendo como consequência o aumento de desigualdade social relativa aos infantoadolescentes, especialmente para aqueles que já se encontram em situação e vulnerabilidade no país.

 

Notas e Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 23 out. 2020.

CUSTÓDIO, André Viana. Direito da Criança e do Adolescente. Criciúma: UNESC, 2009.

FERREIRA, Luiz Antônio Miguel; FERREIRA, Luiz Gustavo Fabris. O Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescentes como política pública complementar. Disponível em: http://miguelferreira.com.br/2020/11/04/o-fundo-municipal-dos-direitos-da-crianca-e-do-adolescente-como-politica-publica-complementar/. Acesso em 28 out. 2020.

LEME, Luciana Rocha; VERONESE, Josiane Rose Petry. A Política de Atendimento. In: VERONESE, Josiane Rose Petry (autora e org). Direito da Criança e do Adolescente: novo curso – novos temas. 2. ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.

OREIRO, José Luis da Costa. Caminho da barbárie: a PEC 187 e a destruição das políticas públicas. Revista Carta Capital. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/blogs/brasil-debate/caminho-da-barbarie-a-pec-187-e-a-destruicao-das-politicas-publicas/. Acesso em: 23 out. 2020.

SILVA, André Pascoal da. Conselho Municipal de Direitos. In: VERONESE, Josiane Rose Petry; SILVEIRA, Mayra; CURY, Munir. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado. 13 ed., ver. E atual. São Paulo: Malheiros, 2018.

[1]  OREIRO, José Luis da Costa. Caminho da barbárie: a PEC 187 e a destruição das políticas públicas. Revista Carta Capital. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/blogs/brasil-debate/caminho-da-barbarie-a-pec-187-e-a-destruicao-das-politicas-publicas/. Acesso em: 23 out. 2020.

[2]  BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 23 out. 2020.

[3]  SILVA, André Pascoal da. Conselho Municipal de Direitos. In: VERONESE, Josiane Rose Petry; SILVEIRA, Mayra; CURY, Munir. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado. 13 ed., ver. E atual., São Paulo: Malheiros, 2018, p. 585.

[4]  LEME, Luciana Rocha; VERONESE, Josiane Rose Petry. A Política de Atendimento. In: VERONESE, Josiane Rose Petry (autora e org). Direito da Criança e do Adolescente: novo curso – novos temas. 2. ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, p. 268.

[5] CUSTÓDIO, André Viana. Direito da Criança e do Adolescente. Criciúma: UNESC, 2009.

[6] FERREIRA, Luiz Antônio Miguel; FERREIRA, Luiz Gustavo Fabris. O Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescentes como política pública complementar. Disponível em: http://miguelferreira.com.br/2020/11/04/o-fundo-municipal-dos-direitos-da-crianca-e-do-adolescente-como-politica-publica-complementar/. Acesso em 28 out. 2020.

[7] Idem

 

Imagem Ilustrativa do Post: mãos // Foto de: jarmoluk // Sem alterações

Disponível em: https://pixabay.com/pt/photos/m%C3%A3os-amizade-amigos-crian%C3%A7as-2847508/

Licença de uso: https://pixabay.com/en/service/terms/#usage

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura