A garantia do contraditório e a interpretação do art. 10 do CPC-15 realizada pelo Superior Tribunal de Justiça: a legitimidade da fundamentação da decisão judicial – Por Denarcy Souza e Silva Júnior

10/07/2017

Recentemente foi noticiado pelo Superior Tribunal de Justiça, embora a decisão mesma ainda não esteja disponível para consulta pública, que aquela Corte Superior, interpretando o art. 10 do CPC-15, entendeu que o dever de consulta, inerente ao modelo comparticipativo de processo e alicerçado no denominado princípio da cooperação, só teria lugar no que dissesse respeito às questões de fato, sendo inerente à atividade jurisdicional a aplicação do direito ao caso concreto, forte na premissa do iura novit curia e do império da lei.

“Os fatos da causa devem ser submetidos ao contraditório, não o ordenamento jurídico, o qual é de conhecimento presumido não só do juiz (iura novit curia), mas de todos os sujeitos ao império da lei, conforme presunção jure et de jure (artigo 3º da LINDB).”

O entendimento da ministra Isabel Gallotti foi acompanhado de forma unânime pela Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no julgamento de embargos de declaração[1] em que se alegava ofensa ao princípio da não surpresa, em razão de a decisão ter adotado fundamentação legal diferente daquelas apresentadas pelas partes.

O caso, continua a notícia veiculada, envolveu a fixação de prazo prescricional em ação que discutia ilícito contratual. No julgamento da causa, foi aplicado o artigo 205 (prescrição decenal), em vez do artigo 206, parágrafo 3º, V (prescrição trienal), ambos do Código Civil.

Como as partes não discutiam que a prescrição era trienal, divergindo apenas em relação ao termo inicial da contagem do triênio, a embargante entendeu que, “ao adotar fundamento jamais cogitado por todos aqueles que, até então, haviam-se debruçado sobre a controvérsia (partes e juízes), sem que sobre ele previamente fossem ouvidas as partes, o colegiado desconsiderou o princípio da não surpresa (corolário do primado constitucional do contraditório – CF, artigo 5º, LV), positivado no artigo 10 do CPC de 2015”.

A relatora, ministra Isabel Gallotti, considerou equivocada a interpretação da embargante. Para a magistrada, o "fundamento" ao qual se refere o artigo 10 é “o fundamento jurídico – causa de pedir, circunstância de fato qualificada pelo direito, em que se baseia a pretensão ou a defesa, ou que possa ter influência no julgamento da causa, mesmo que superveniente ao ajuizamento da ação, não se confundindo com o fundamento legal (dispositivo de lei regente da matéria)”.

No entendimento da ministra, acolher o argumento da embargante entravaria o andamento dos processos, uma vez que exigira que o juiz realizasse um exame prévio da causa para que imaginasse todos os possíveis dispositivos legais em tese aplicáveis e os submetesse ao contraditório.

“A discussão em colegiado, com diversos juízes pensando a mesma causa, teria que ser paralisada a cada dispositivo legal aventado por um dos vogais, a fim de que fosse dada vista às partes. Grave seria o entrave à marcha dos processos, além de fértil o campo de nulidades”, concluiu a ministra.

Não parece, contudo, que esse entendimento seja o melhor. Analisando-se o art. 10 do CPC-15, não se percebe qualquer limitação das matérias que deverão ser submetidas ao contraditório, mesmo porque, embora lugar comum naquela Corte de Justiça a distinção entre questão de fato e questão de direito, não é tarefa das mais simples se efetuar, no caso concreto, essa distinção, tendo em vista que a applicatio, a interpretação do texto normativo da qual surgirá a norma jurídica, imprescinde da análise do caso concreto. Não há conceitos sem coisas.

Ainda que não se discuta a sempre controversa distinção entre questão de fato e questão de direito, que parece de há muito superada, desde a robusta tese de Castanheira Neves, entregue à comunidade jurídica em meados do século passado[2], a simples leitura do art. 10 do CPC-15 já dá fortes indicativos que o entendimento do STJ não se coaduna com o modelo adotado pelo novo diploma processual, tampouco alberga em sua inteireza à garantia do contraditório enquanto influência e não surpresa.

Art. 10.  O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.

A parte final do dispositivo legal preceitua que nem mesmo as matérias que devem ser conhecidas de ofício pelo magistrado poderão ser utilizadas como fundamento da decisão sem que antes elas sejam submetidas ao diálogo com as partes demandantes. Embora seja possível ao magistrado conhecer de ofício fatos novos relevantes para a causa (art. 493 do CPC-15), a grande maioria das matérias de ordem pública se constituem em questões de direito processual ou material, o que, por si só, infirma o posicionamento da quarta turma do STJ.

Mais que isso! Fazendo-se uma interpretação sistemática do CPC-15, notadamente em seu art. 357, que cuida do saneamento e da organização do processo, tem-se que o magistrado, na decisão de saneamento, deve delimitar as questões de direito relevantes para a decisão de mérito (inciso IV), sendo certo que essa decisão passa pelo crivo do contraditório e é proferida comparticipativamente, conforme dicção do § 1º do mesmo dispositivo.

Não se está afirmando, é bom que se diga, que o magistrado não pode identificar de ofício uma matéria de ordem pública, tampouco que ele depende das partes para delas fazer uso na fundamentação de sua decisão. Embora o modelo comparticipativo de processo esteja atrelado a um policentrísmo processual, na busca mesmo de uma comunidade de trabalho, ao decidir o Estado Juiz assume uma posição assimétrica, pois exerce um poder que apenas a ele é atribuído constitucionalmente.

Entretanto, uma coisa é se afirmar, até com certa tranquilidade, que o magistrado pode/deve identificar uma matéria de ordem pública de ofício; outra, muito diferente, é afirmar que dela se pode fazer uso na fundamentação da decisão judicial sem que antes se tenha consultado às partes acerca daquela matéria de direito, em atenção à garantia do contraditório enquanto influência na construção da decisão judicial, evitando-se, com o assim agir, decisões surpresa que solapam a dimensão de autogoverno[3] do princípio da dignidade da pessoa humana.

A leitura moral[4] das cláusulas do devido processo legal e do contraditório, que de certa forma é imposta pelo art. 1º, do novo diploma processual, além da previsão expressa da garantia do contraditório para legitimar a decisão judicial (arts. 7º, 9º, 10, 489, § 1º do CPC-15), parece se aproximar da necessidade de autogoverno como legitimador da coerção oficial.

O modelo comparticipativo de processo[5] não dispensa a compreensão do Direito como integridade. A interpretação do processo conforme os valores e as normas fundamentais (art. 1º) pressupõe uma análise da legitimidade constitucional da tomada de decisões, o que traz consigo a exigência de que o Estado garanta, às pessoas sob seu domínio, igual consideração e respeito. Impõe-se que a decisão jurídica deva ser elaborada respondendo aos argumentos dos interessados no seu resultado, garantindo-se – e não apenas oportunizando – a participação no processo de resolução das questões que venham a lhes atingir.

Afasta-se, com essa leitura moral do processo, o protagonismo judicial, criando-se uma visão policêntrica de processo. Traz-se a reboque o abandono do princípio do livre convencimento, pois decisões tomadas por princípios não admitem qualquer motivação, mas apenas aquela que busque na integridade a legitimidade da coerção estatal. Cria-se a necessidade de ler a fundamentação da decisão judicial como realmente deve ser entendida, como uma garantia constitucional fixadora de limites ao poder de coerção coletiva.

Esse é o paradigma atual do processo civil, que busca na cláusula do devido processo legal a garantia de que os direitos fundamentais serão respeitados na tomada de decisão. O modelo comparticipativo de processo e os deveres a ele inerentes, se bem atendidos, garantem a correta influência das partes na construção da decisão judicial, evitando-se que se profiram decisões solipsistas, sem qualquer atenção ao necessário processo civil dialógico.

A dialeticidade processual não está ligada à determinada questão fática, mas, sobretudo, à necessária responsabilidade na tomada de decisão, legitimando a intervenção estatal na esfera jurídica do jurisdicionado, que depende, como dito, que ele participe da construção da decisão judicial e que esta decisão seja legitimada pelo contraditório. Se é certo que a decisão judicial só é legítima se devidamente fundamentada, a legitimação da fundamentação está atrelada ao contraditório, ou seja, é a atenção ao diálogo travado no processo que tornará possível o exercício legítimo do poder de coerção estatal (autogoverno).

Nem mesmo a afirmação de que a submissão de questões de direito às partes traria um entrave à marcha processual pode ser aceita. Além de se constituir num argumento utilitarista, carece, a olhos vistos, de comprovação empírica, sendo certo que oportunizar às partes a manifestação sobre questões de direito não ofende ao princípio da razoável duração do processo, mesmo porque essa razoável duração deve levar em consideração às garantias processuais constitucionais, principalmente, o contraditório enquanto influência e não surpresa, não se constituindo num entrave à marcha processual, mas em algo que lhe outorga legitimidade.

Infelizmente não é novo esse entendimento exarado pelo STJ. Ainda antes do início da vigência do CPC-15 a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados – ENFAM divulgou alguns enunciados sobre o novo diploma processual que demonstravam a compreensão daquele grupo de magistrados acerca do real alcance da garantia do contraditório consagrada no art. 10 do CPC-15:

1) Entende-se por “fundamento” referido no art. 10 do CPC/2015 o substrato fático que orienta o pedido, e não o enquadramento jurídico atribuído pelas partes.

6) Não constitui julgamento surpresa o lastreado em fundamentos jurídicos, ainda que diversos dos apresentados pelas partes, desde que embasados em provas submetidas ao contraditório.

Em sentido diametralmente oposto, tem-se o Enunciado 282 do Fórum Permanente de Processualistas Civil – FPPC:

282. (arts. 319, III e 343) Para julgar com base em enquadramento normativo diverso daquele invocado pelas partes, ao juiz cabe observar o dever de consulta, previsto no art. 10. (Grupo: Petição inicial, resposta do réu e saneamento)

Sem descuidar que enunciados são respostas antes das perguntas, análises desprovidas de facticidade, o que é temerário para o direito como um todo, tem-se que o enunciado 282 do FPPC parece estar mais consentâneo com o modelo comparticipativo de processo e com a garantia do contraditório. Como se pretendeu demonstrar ao longo do texto, além de ser muito difícil a distinção entre questão de fato e questão de direito, em atenção à dimensão de autogoverno, o magistrado deve se deixar influenciar pelos argumentos das partes e não pode decidir desvencilhado desses argumentos, mesmo que eles digam respeito ao enquadramento normativo realizado pelas partes.

O diálogo é necessário, ainda que seja para rechaçar os argumentos, sejam eles fáticos ou jurídicos deduzidos pelas partes, mesmo porque se entende por dever de consulta, “o dever de o órgão judicial consultar as partes antes de decidir sobre qualquer questão, possibilitando antes que essas o influenciem a respeito do rumo a ser imprimido à causa”.[6] Qualquer questão não se limita à matéria fática, como parece intuitivo da leitura mesma do art. 10 do CPC-15.

É compreensível que mudanças tragam aparentes entraves, mas o novo dever ser visto com olhos renovados. É tempo de constrangimentos epistemológicos[7], de se fazer cumprir não apenas o novo diploma processual, mas que entremos realmente no novo paradigma do Estado Constitucional, onde a decisão judicial não pode ser tomada como um ato de escolha, mas sim como um ato de responsabilidade política do magistrado, que tem o dever de dialogar com as partes e com elas colaborar, construído comparticipativamente à decisão, legitimando, assim, a interferência estatal na esfera jurídica do particular.


Notas e Referências:

[1] Esta notícia refere-se ao processo: REsp 1280825

[2] Questão de facto – questão de direito ou o problema metodológico da juridicidade (ensaio de uma reposição crítica). Coimbra: Almedina, 1967.

[3] DWORKIN, Ronald. Is democracy possible here? Principles for a new political debate. Princeton University Press, 2006, p. 9-17.

[4] Leitura moral é uma estratégia de interpretação proposta por Dworkin para a compreensão das cláusulas constitucionais que estabeleçam direitos e que tenham linguagem abstrata. O intérprete deve compreendê-las como princípios morais abrangentes, como limitadoras do poder de coerção coletiva.

[5] THEODORO JÚNIOR, Humberto et al. Novo CPC: fundamentos e sistematização. Rio de Janeiro: Forense, 2015, passim, em especial o capítulo 2.

[6] MITIDIERO, Daniel. Colaboração no Processo Civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos. 2ª ed. São Paulo: RT, 2011, p. 85.

[7] Em feliz expressão cunhada por Lenio Streck.


 

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