A função social da posse - Por Mauricio Mota

31/01/2018

Antonio Hernandez Gil considerava a posse como a instituição jurídica dotada de essencialidade e entidade suficientes para constituir a estrutura expressiva da insuprimível necessidade dos bens integrados no “espaço vital alimentício” e no “espaço vital de radicação”. A posse é o instituto que melhor pode traduzir juridicamente a inserção das pessoas no mundo das coisas. Os dois indicados espaços são, por sua vez, exigências e dimensões da pessoa que, tendo projeção exterior, traz consigo situações possessórias absolutamente indispensáveis para a caracterização do indivíduo como ser vivente e convivente. A organização propriamente jurídica da sociedade requer a tutela normativa dessas situações. Nos processos de desenvolvimento das atividades humanas, que ocorrem por excelência através do mecanismo do trabalho, acontecem necessariamente situações possessórias. A radicação do ser humano não compreende só o estar ou habitar, mas também a atuação da pessoa que há de servir-se dos bens, compreendendo – precisamente como essencial – o serviço incorporado pelo trabalho[1].

Essa projeção natural da realização das necessidades do homem através das coisas é bem clara em Tomás de Aquino, que começa por indagar, na questão 66 da Secunda secundae da Suma Teológica, “se é natural ao homem possuir coisas externas”[2]. Frisa ele a natureza dupla das coisas externas. Em primeiro lugar, diz que o domínio principal sobre todas as coisas pertence a Deus, que, em sua providência, destinou ao homem o natural domínio dos bens externos dado; que este, por sua razão, é capaz de utilizá-los para sua utilidade, uma vez que os seres menos perfeitos existem para os mais perfeitos. Isso significa que o homem, colocado em uma posição superior na ordem ontológica, tem uma natural soberania das coisas externas, no que diz respeito a fazer a utilização das mesmas, que se destinam ao sustento do corpo do homem[3].

No que se refere à relação do homem com os bens exteriores, a este compete uma dupla atribuição. A primeira, o poder de gerir e dispor dos bens. Tem o homem o poder de adquirir bens e distribuí-los e, assim, é lícito este possuir alguma coisa como própria. Constitui-se em princípio fundamental à vida humana por três razões. Primeiro é que cada um é mais solícito em administrar o que lhe pertence, do que o comum a todos. Segundo, as coisas humanas são mais bem cuidadas quando cada um emprega o seu cuidado em administrar uma coisa determinada. Terceiro, porque, com cada um cuidando do que é seu de maneira mais satisfatória, reina a paz entre os homens, uma vez que as querelas surgem com mais frequência onde não há divisão das coisas possuídas[4].

Portanto, Aquino, seguindo Aristóteles, assegura, consoante a prudência, a legalidade e a necessidade da apropriação privada no âmbito da atual condição humana em termos de maior benefício para o bem comum e, ainda, na orientação dos bens para a ordem, eficiência, segurança e paz, não desconectada dos valores instrumentais da moderna liberdade. Assim, o estado de direito obriga à conclusão que o regime da apropriação privada provê, via de regra, o melhor meio para o florescimento da sociedade humana.

A segunda atribuição que compete ao homem em relação aos bens exteriores é quanto ao uso deles. Aqui, Tomás de Aquino reduz significativamente a extensão e o alcance do regime da apropriação privada: “sob esse aspecto, o homem não deve ter as coisas exteriores como próprias, mas como comuns, neste sentido que, de bom grado, cada um as partilhe com os necessitados”[5]. A ideia do Aquinate não é minar aquilo que foi dito anteriormente sobre a natureza da apropriação privada, mas sim redimensioná-lo em um quadro equilibrado, no qual os poderes de utilização estejam em consonância com o bem-estar da comunidade, do qual o homem é parte. O tratamento da apropriação não é completo sem a direção externa e inclinação pela qual o direito de uso das coisas está necessariamente obrigado - sua teleologia. Deste modo, a principal exigência da justiça, a de dar a cada um o que é seu, significa algo bem além de um libertário atomismo que ignora o bem comum: “os bens temporais outorgados por Deus ao homem são, certamente, de sua propriedade; o uso, ao revés, deve ser não somente seu, senão também de quantos possam sustentar-se com o supérfluo dos mesmos”[6].

Assim, Aquino acrescenta ao dictum aristotélico que é melhor ter a propriedade privada, mas fazer o uso dela comum. Os princípios da filantropia e assistência de bem-estar humanitária surgem para Aquino não como uma achega a uma teoria de governo, mas sim como uma característica da apropriação privada[7].  

Portanto, o outro lado da moeda da posse privada dos bens externos consistia na obrigação, também já reconhecida por Aristóteles, como a justificação primária da apropriação privada, de criar o espaço para o exercício das virtudes da caridade e da assistência aos desvalidos.

A legitimidade da posse, como conteúdo que é da propriedade, se funda a partir da distinção entre o “poder” (potestas) de gerir as coisas e delas dispor e o dever moral de utilizá-las (usus) em proveito de todos. Ao estabelecer que é permitido e mesmo necessário que o homem possua as próprias coisas, Tomás faz da propriedade um verdadeiro “poder”, um verdadeiro direito, de tal modo que o roubo será caracterizado como uma injustiça, pois atenta contra esse direito. O “uso” (usus) exprime a finalidade a perseguir e a maneira de realizar o exercício desse poder. É porque possui o verdadeiro poder e o verdadeiro direito de possuí-los que o homem deve utilizar os bens como “sendo comuns”, numa disposição virtuosa de “compartilhá-los com os necessitados”. “Poder” e “uso” formam uma espécie de dupla instância do mesmo direito-dever do qual o homem está investido, no plano ético e jurídico[8].

Nessa explicação compatibilística do apossamento, o interesse privado individual da apropriação e o maior interesse público da sociedade ocupam uma harmônica coexistência teórica. A summa divisio entre o privado e o público aparece como uma falsa dicotomia, situada exteriormente à orientação da virtude, que assegura a prevenção do colapso em um atomístico egoísmo.

Os bens que alguns têm em superabundância são devidos assim, por direito natural, para o sustento dos pobres, como esclarece Aldo Francisco Migot: 

Os bens que o homem tem são legítimos desde que tenham a finalidade de lhe garantir o um espaço vital digno e suficiente para a vida pessoal e social. Se os bens, por direito natural, pertencem a todos, cada indivíduo tem direito à sua parte, sem o que não se cumpriria a destinação universal, ao menos se se considerar que possuir e desfrutar tudo em comum não é prescrição de direito natural, nem é possível na prática.

Tudo o que ultrapassa a necessidade do espaço vital e tudo aquilo que não é bem administrado ou que, por qualquer razão, pela extensão ou pelo mau uso, prejudicar a outrem, deve ser submetido aos critérios da comunidade, isto é, do bem comum. Salientando que o comum e o que é direito de todos, segundo Tomás, é sempre prioritário[9]

Assim sendo, evidentemente, grande parte do argumento tomista de compatibilidade depende da manutenção de um curso aristotélico de moderação, definido dentro de uma ordem de valor, no qual o ganho de propriedade nunca é permitido, se suficiente para tornar-se um fim em si mesmo, mantendo-se a finalidade da vida virtuosa sempre claramente em vista. Provavelmente, consoante Tomás de Aquino, a capacidade de qualquer Estado para implementar em suas leis as regras morais que conduzam à excelência irá mudar amplamente segundo “a grande variedade de assuntos humanos”. Mas desde que os direitos humanos sejam enquadrados tendo em vista toda a multidão de seres humanos, “a maioria dos quais não está em virtude perfeita”, as leis atingirão os seus objetivos e a apropriação será regulada conforme a natureza das coisas.  

Para Tomás de Aquino, o sistema de apropriação privada subordinado a um regime de uso comum constitui a base da ordem política, assim como em Aristóteles. Nesse contexto, o princípio da apropriação privada enquanto princípio moral reclama a sua articulação com outro princípio de ordem moral, qual seja, o que institui o dever dos membros da comunidade política concorrerem individualmente para o uso comum das coisas[10].

Tomás de Aquino, ao tratar, na questão 32 da Secunda secundae, do dever de privação em benefício de outrem esclarece que: 1) é dever de justiça pôr os bens supérfluos em comum com aqueles que se encontrem em extrema necessidade; 2) é dever de justiça suportar que quaisquer bens próprios sejam usados por alguém em situação de extrema necessidade e que 3) é apenas ato superrogatório pôr em comum, ativa ou passivamente, o supérfluo em relação àqueles que estão em situação de necessidade, embora não extrema[11].

Há que se atentar também, em Tomás de Aquino, para a singularidade do objeto, a terra. A terra é um recurso que se pode explorar com exclusividade, mas não é propriamente uma mercadoria. Ela tem conotações sociais, culturais e ideológicas que a tornam singular[12]. Deste modo, não há possibilidade de se falar em uma posse da terra que leve a uma completa despersonalização e autonomização como mercadoria.

Mesmo no Ocidente, na antiga Atenas, a posse da terra e a cidadania estavam indissoluvelmente ligadas, pois apenas os cidadãos podiam possuir terras e apenas os donos de terras podiam ser cidadãos: não-cidadãos podiam se dedicar às finanças e ao comércio, arrendar terras e minas, mas não podiam possuir imóveis[13].

Seguindo a linha de raciocínio, a noção de função social da posse pode ser inferida dos textos do Aquinate. Segundo Tomás de Aquino, os bens são originariamente destinados a todos em comum. Assim, concorrem a estes o proprietário reivindicante e os possuidores utilizadores. Sobre a propriedade é reconhecida, como qualidade intrínseca, uma função social, fundada e justificada precisamente pelo princípio da destinação universal dos bens. O homem realiza-se através da sua inteligência e da sua liberdade e, ao fazê-lo, assume como objeto e instrumento as coisas do mundo, delas se apropriando. Neste seu agir, está o fundamento do direito à iniciativa e à propriedade individual. Mediante o seu trabalho, o homem empenha-se não só para proveito próprio, mas também para dos outros. O homem trabalha para acorrer às necessidades da sua família, da comunidade de que faz parte, e, em última instância, da humanidade inteira. Além disso, colabora para o trabalho dos outros, numa cadeia de solidariedade que se alarga progressivamente.

A posse dos meios de produção, tanto no campo industrial como agrícola, é justa e legítima, se serve para um trabalho útil. Pelo contrário, torna-se ilegítima, quando não é valorizada ou serve para impedir o trabalho dos outros, para obter um ganho que não provém da expansão global do trabalho humano e da riqueza social, mas antes da sua repressão, da ilícita exploração, da especulação, e da ruptura da solidariedade no mundo do trabalho. Semelhante propriedade não tem qualquer justificação, e não pode receber tutela jurídica.

Portanto, o direito de propriedade não é um absoluto formal, mas só se justifica se a ele é dado um uso social e na medida dessa justificação, mormente naquela classe de bens que não se destina primordialmente ao mercado, como é o caso da terra.

Para Karl Marx, igualmente, a apropriação é uma dimensão puramente humana. O sentir humano, a apreensão do mundo (ver, ouvir, cheirar, sentir, saborear, pensar, observar, perceber, querer, atuar, amar) se dá de maneira coletiva, compartilhada. O homem se apropria de seu ser global de forma global, como homem total. A apropriação, assim, revela a manifestação de nossa ‘efetividade humana’, ou seja, de nosso comportamento humano frente aos objetos e ao mundo[14].

O direito de propriedade é, em substância, a sua utilização, ou seja, a posse com o qual este é exercitado. O título gera o ius possidendi e não exercido, porque não foi transmitida a posse ou não havia posse para transmitir, ou tendo sido transmitida, não ocorreu a utilização da coisa pelo novo titular, sua posse será apenas civil, com base na espiritualização da posse que o direito civil admite. Enquanto permanecer a coisa sem utilização de terceiros, o título jurídico permitirá que o titular coloque em prática o direito à posse, transformando-o efetivamente em posse, possibilitando o cumprimento da função social da propriedade, antes descuidada. Essa posse artificial, meramente civil (normalmente posse do proprietário), em confronto com a posse real, efetiva (quando essa última for qualificada pela função social) deve ceder a esta[15]. A tessitura da função social, tanto na propriedade quanto na posse, está na atividade exercida pelo titular da relação sobre a coisa à sua disposição. A função social não transige, não compactua com a inércia do titular. Há que desenvolver uma conduta que atende ao mesmo tempo à destinação econômica e à destinação social do bem[16].

A função social da posse, porém, está em um plano distinto, pois a função social é mais evidente na posse e muito menos na propriedade, que mesmo sem o uso pode se manter como tal. O fundamento da função social da propriedade é eliminar da propriedade privada o que há de eliminável, ou seja, tem limitações fixadas no interesse público, com a finalidade de instituir um conceito dinâmico de propriedade. O fundamento da função social da posse, por sua vez, revela uma expressão natural da necessidade: 

A função social da posse como princípio constitucional positivado, além de atender à unidade e completude do ordenamento jurídico, é exigência da funcionalização das situações patrimoniais, especificamente para atender as exigências de moradia, de aproveitamento do solo, bem como aos programas de erradicação da pobreza, elevando o conceito da dignidade da pessoa humana a um plano substancial e não meramente formal. É forma ainda de melhor se efetivar os preceitos infraconstitucionais relativos ao tema possessório, já que a funcionalidade pelo uso e aproveitamento da coisa juridiciza a posse como direito autônomo e independente da propriedade, retirando-a daquele estado de simples defesa contra o esbulho, para se impor perante todos[17]

Portanto, a função social do instituto da posse é estabelecida pela necessidade social, pela necessidade da terra para o trabalho, para a moradia, ou seja, para as necessidades básicas que pressupõem a dignidade do ser humano.

Neste sentido, a função social da posse não significa uma limitação ao direito de posse, mas a exteriorização do conteúdo imanente da posse. Isso nos permite uma visão mais ampla do instituto, de sua utilidade social e de sua autonomia, em alguns aspectos, diante de outros institutos jurídicos, como por exemplo, o direito de propriedade.

A função social da posse recebeu consagração legislativa em diversos diplomas no ordenamento jurídico brasileiro. A Lei nº. 601, de 18 de setembro de 1850 (Lei de Terras) consagrou a posse como meio de aquisição da propriedade, através de um instituto genuinamente nacional – o da legitimação de posse. Determinou, assim, o artigo 5º daquela lei: 

Art. 5º. Serão legitimadas as posses mansas e pacíficas adquiridas por ocupação primária, ou havidas de primeiro ocupante, que se acharem cultivadas ou com princípio de culturas, e moradia habitual do respectivo posseiro, ou de quem o represente, guardadas as regras seguintes...

Art. 6º - Não se haverá por princípio de cultura para a revalidação de sesmarias ou outras concessões do Governo, nem para a legitimação de qualquer posse, os simples roçados, derribadas ou queimadas de matos ou campos, levantamentos de ranchos e outros atos de semelhante natureza, não sendo acompanhados da cultura efetiva e morada habitual exigidas no artigo antecedente. 

O Decreto nº 1318, de 30 de Janeiro de 1854, que manda executar a lei nº 601, de 18 de setembro de 1850, dispunha que estão sujeitas à revalidação as sesmarias, ou outras concessões do Governo Geral, ou Provincial que, estando ainda no domínio dos primeiros sesmeiros, ou concessionários, se acharem cultivadas, ou com princípio de cultura, e constituam morada habitual do respectivo sesmeiro, ou concessionário, ou de quem o represente, e que não tiverem sido medidas, e demarcadas: 

Art. 27 Estão sujeitas à revalidação as sesmarias, ou outras concessões do Governo Geral, ou Provincial que, estando ainda no domínio dos primeiros sesmeiros, ou concessionários, se acharem cultivadas, ou com princípio de cultura, e morada habitual do respectivo sesmeiro, ou concessionário, ou de quem o represente, e que não tiverem sido medidas, e demarcadas. 

Art. 41 Se dentro dos limites da sesmaria, ou concessão, encontrarem posses com cultura efetiva, e morada habitual, em circunstâncias de serem legitimadas, examinarão se essas posses têm em seu favor alguma das exceções constantes da segunda parte do § 2º do art. 5º da Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850; e verificada alguma das ditas exceções, em favor das posses, deverão elas ser medidas, a fim de que os respectivos posseiros obtenham a sua legitimação, medindo-se neste caso para o sesmeiro, ou concessionário o terreno, que restar da sesmaria, ou concessão, se o sesmeiro não preferir o rateio, de que trata o § 3º do art.5º da Lei. 

Art. 44 Se a medição requerida for de posses não situadas dentro de sesmarias, ou outras concessões, porém em terrenos, que se achassem devolutos, e tiverem sido adquiridos por ocupação primária, ou havidas sem título legítimo do primeiro ocupante, devem ser legitimadas, estando cultivadas, ou com princípio de cultura, e morada habitual do respectivo posseiro, ou de quem o represente, o Juiz Comissário fará estimar por árbitros os limites da posse, ou seja, em terras de cultura, ou em campos de criação; e verificados esses limites, e calculada pelo Agrimensor a área neles contida, fará medir para o posseiro o terreno devoluto, que houver contíguo; contanto que não prejudique a terceiro, e que em nenhum caso a extensão total da posse exceda a uma sesmaria para cultura, ou criação igual às últimas concedidas na mesma Comarca, ou na mais vizinha. 

Em 1891, o Estado do Pará, considerando que, convém facilitar aos posseiros de boa-fé título de propriedade das terras que ocupam, embora não tivessem sido cumpridas as disposições da lei n°. 601, de 18 de setembro de 1850, e que mais vale para a garantia do futuro entregar o solo aos que a ele se têm fixado, aplicando à indústria agrícola, criadora ou extrativa a força de seus braços, cem vezes superior à do dinheiro, do que conservá-lo como tesouro estéril, criou através do Decreto Estadual nº 410, de 08 de outubro de 1891, o título de posse com cultura efetiva e morada habitual, legitimando essas posses: 

Art. 5° - Serão legitimadas:

§ 1° - As posses mansas e pacíficas com cultura efetiva e morada habitual, havidas por ocupação primária e registradas segundo o Regulamento que baixou com o Decreto nº 1318, de 30 de janeiro de 1854, que se acharem em poder do primeiro ocupante ou de seus herdeiros.

§ 2° - As posses igualmente registradas, cultivadas e habitadas, que tenham sido traspassadas pelo primeiro ocupante ou por seus sucessores a título de compra, doação, permuta ou dissolução de sociedade, sobre os quais tenham sido cobrados os respectivos impostos.

(..)

§ 5° - As posses de terras com cultura efetiva e morada habitual, que tenham sido estabelecidas, sem protesto ou oposição, antes de 15 de novembro de 1889, mantidas sem interrupção depois dessa data.

§ 6° - As posses que se acharem em sesmarias ou outras concessões do Governo, revalidáveis por este Decreto, se tiverem sido declaradas - boas - por sentença passada em julgado entre os sesmeiros ou concessionários e os posseiros, ou se tiverem sido estabelecidas e mantidas sem oposição dos sesmeiros ou concessionários durante cinco anos.

Art. 6° - Considera-se cultura efetiva, para os efeitos deste Decreto não só a plantação de árvores frutíferas, roças e os mais trabalhos de lavoura como também a conservação e cultivo de vegetais aproveitados pela indústria extrativa.

§ Único - A pastagem de gado em campos próprios para criação é equiparada, para a revalidação ou legitimação, à cultura efetiva, uma vez que nos ditos campos existam currais e arranchamentos.

Art. 7° - Para que possa efetuar-se a revalidação ou a legitimação das terras, deverão os seus possuidores, dentro do prazo marcado no Regulamento que baixar para a execução deste Decreto, promover a respectiva medição e demarcação.

(..)

Art. 16 - O Governo fará organizar em prazo improrrogável o registro das terras possuídas, estejam ou não medidas e demarcadas, sobre declarações feitas pelos respectivos ocupantes e heréus confinantes, ou à vista dos competentes títulos de propriedade, de conformidade com o Regulamento que baixar para a execução deste Decreto. 

A função social da posse também se apresenta como requisito para fins de utilização das terras devolutas da União por particulares, consoante o art. 5º do Decreto-lei nº. 9760/46:

Art. 5º São devolutas, na faixa da fronteira, nos Territórios Federais e no Distrito Federal, as terras que, não sendo próprios nem aplicadas a algum uso público federal, estadual territorial ou municipal, não se incorporaram ao domínio privado:

(..)       

e) por se acharem em posse contínua e incontestada com justo título e boa-fé, por têrmo superior a 20 (vinte) anos; 

f) por se acharem em posse pacífica e ininterrupta, por 30 (trinta) anos, independentemente de justo título e boa-fé; 

Parágrafo único. A posse a que a União condiciona a sua liberalidade não pode constituir latifúndio e depende do efetivo aproveitamento e morada do possuidor ou do seu preposto, integralmente satisfeitas por êstes, no caso de posse de terras situadas na faixa da fronteira, as condições especiais impostas na lei. 

Através do Estatuto da Terra, Lei nº. 4504 de 30 de novembro de 1964, o Instituto Brasileiro de Reforma Agrária ficou legitimado a promover a discriminação das terras devolutas federais, com autoridade para reconhecer as posses legítimas manifestadas através de cultura efetiva e morada habitual, de modo a reconhecer os posseiros como legítimos possuidores de terras devolutas federais para fins de emissão futura dos títulos de domínio, bem como para reunir no patrimônio público as terras devolutas federais ilegalmente ocupadas e as que se encontrarem desocupadas: 

Art. 11. O Instituto Brasileiro de Reforma Agrária fica investido de poderes de representação da União, para promover a discriminação das terras devolutas federais, restabelecida a instância administrativa disciplinada pelo Decreto-Lei n. 9.760, de 5 de setembro de 1946, e com autoridade para reconhecer as posses legítimas manifestadas através de cultura efetiva e morada habitual, bem como para incorporar ao patrimônio público as terras devolutas federais ilegalmente ocupadas e as que se encontrarem desocupadas. 

O art. 29, da Lei nº. 6383, de 07 de dezembro de 2008, reconhecendo a posse com função social, legitimou a posse de terras devolutas federais de área contínua até 100 (cem) hectares do ocupante de terras públicas, que as tenha tornado produtivas com o seu trabalho e o de sua família, desde que este não seja proprietário de imóvel rural e comprove a morada permanente e cultura efetiva, pelo prazo mínimo de 1 (um) ano: 

Art. 29 - O ocupante de terras públicas, que as tenha tornado produtivas com o seu trabalho e o de sua família, fará jus à legitimação da posse de área contínua até 100 (cem) hectares, desde que preencha os seguintes requisitos:

I - não seja proprietário de imóvel rural;

II - comprove a morada permanente e cultura efetiva, pelo prazo mínimo de 1 (um) ano.

§ 1º - A legitimação da posse de que trata o presente artigo consistirá no fornecimento de uma Licença de Ocupação, pelo prazo mínimo de mais 4 (quatro) anos, findo o qual o ocupante terá a preferência para aquisição do lote, pelo valor histórico da terra nua, satisfeitos os requisitos de morada permanente e cultura efetiva e comprovada a sua capacidade para desenvolver a área ocupada.

§ 2º - Aos portadores de Licenças de Ocupação, concedidas na forma da legislação anterior, será assegurada a preferência para aquisição de área até 100 (cem) hectares, nas condições do parágrafo anterior, e, o que exceder esse limite, pelo valor atual da terra nua.

§ 3º - A Licença de Ocupação será intransferível inter vivos e inegociável, não podendo ser objeto de penhora e arresto. 

Assim, pela lei nº. 6.383/76, a legitimação da posse não é promovida de vez; havendo a concessão de uma licença de ocupação, que só será obtida se atendidos pelo possuidor os seguintes requisitos prévios: a) serem as terras devolutas; b) constituírem área de até 100 (cem) hectares; c) comprovação, por parte do possuidor, de morada permanente e cultura efetiva, pelo lapso temporal não inferior a 1 (um) ano; d) não ser este  proprietário de imóvel rural; e) e estar exercendo a exploração de atividade agrária com seu trabalho e o de sua família direta e pessoalmente. A licença de ocupação será concedida se observados estes requisitos prévios. Esta licença de ocupação consiste num documento que demonstra a titulação da posse, permitindo o acesso ao crédito rural e a preferência para aquisição definitiva do imóvel pelo preço histórico da terra nua. É dada pelo prazo mínimo de 4 anos. Dessa maneira, a legitimação de posse não constitui uma liberalidade do Poder Público, mas sim uma obrigação que advém de um ato de reconhecimento de legitimidade àquele que trabalha a terra. Tratar-se-ia de formalização de um domínio, se concorrerem os requisitos prescritos pela lei.

Na mesma lei, em redação dada pela lei nº. 11481/07, foi o Poder Executivo autorizado, por intermédio da Secretaria do Patrimônio da União, vinculada ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, a executar ações de identificação, demarcação, cadastramento, registro e fiscalização dos bens imóveis da União, bem como a regularização das ocupações nesses imóveis, inclusive de assentamentos informais de baixa renda, podendo, para tanto, firmar convênios com os Estados, Distrito Federal e Municípios, em cujos territórios se localizem. Para tanto, nas áreas urbanas, em imóveis possuídos por população carente ou de baixa renda para sua moradia, onde não for possível individualizar as posses, poderá ser feita a demarcação da área a ser regularizada, cadastrando-se o assentamento, para posterior outorga de título de forma individual ou coletiva.

A função social da posse urbana, consubstanciada na moradia, foi reconhecida pela Medida Provisória nº. 2220/01, que outorgou para aquele que, até 30 de junho de 2001, possuiu como seu, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, até duzentos e cinquenta metros quadrados de imóvel público situado em área urbana, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, tem o direito à concessão de uso especial para fins de moradia em relação ao bem objeto da posse: 

Art. 1º. Aquele que, até 30 de junho de 2001, possuiu como seu, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, até duzentos e cinqüenta metros quadrados de imóvel público situado em área urbana, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, tem o direito à concessão de uso especial para fins de moradia em relação ao bem objeto da posse, desde que não seja proprietário ou concessionário, a qualquer título, de outro imóvel urbano ou rural. 

§ 1º A concessão de uso especial para fins de moradia será conferida de forma gratuita ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil. 

§ 2º O direito de que trata este artigo não será reconhecido ao mesmo concessionário mais de uma vez. 

§ 3º Para os efeitos deste artigo, o herdeiro legítimo continua, de pleno direito, na posse de seu antecessor, desde que já resida no imóvel por ocasião da abertura da sucessão. 

A função social da posse encontra no direito à moradia, constante do rol dos direitos sociais previstos pelo art. 6º da Constituição, a sua teleologia.

No que concerne às pessoas sem-teto a moradia é direito dotado de jusfundamentalidade, integrando-se ao conceito de mínimo existencial e tornando obrigatória a prestação positiva do Estado[18]. A Constituição Federal, em seu art. 5º, XXII, garante o direito de propriedade, e, no mesmo artigo 5º, no inciso XXIII, dispõe que esta deve atender à sua função social. Além disso, está previsto no arts. 1º e 6º da mesma Carta, que a República Federativa do Brasil tem como fundamentos, dentre outros, a cidadania e a dignidade da pessoa humana, assegurados, dentre outros, pelo direito social à moradia e a pela assistência aos desamparados. Assim, incumbe ao Poder Público a garantia do direito à moradia, que se dá, dentre outros meios, pela função social da posse[19].  

No Código Civil, a função social da posse, está estabelecida na denominada posse qualificada ou, como refere Miguel Reale, posse-trabalho[20], que fundamenta a usucapião de imóvel rural, art.1.239 (qualificada pelo trabalho e habitação), e de imóvel urbano, art. 1.240 (qualificada pela habitação), e pela exceção material do art. 1.228, parágrafos 4º e 5º (qualificada pela realização de obras e serviços por considerável número de pessoas, em conjunto ou separadamente, considerados pelo juiz como de interesse social e econômico relevante).  Essa posse-trabalho é assim descrita por Miguel Reale: 

A propriedade não é apenas uma disposição individual e singular de um indivíduo, mas é, ao contrário, algo que implica sempre a correlação de duas pessoas entre si, em função da necessidade social em geral, e é a razão pela qual, no projeto do Código Civil, aparece um novo conceito de posse.

Se os senhores estudarem todos os Códigos, todos eles sem exceção, o alemão, o italiano, o francês, os senhores encontrarão apenas uma noção de posse: posse é a projeção do domínio, posse é o direito de detenção da coisa em razão do domínio que se possui, da legitimidade do domínio, e disso não há dúvida nenhuma, o núcleo da posse, a ideia de posse, é direito, é uma detenção da coisa.

Porém, é mister olhar as coisas com um pouco mais de atenção. Quando se toma posse de um terreno abandonado há muito tempo, e na maior da boa-fé nele se constrói uma casa para a morada da família, ou para a alimentação de seus filhos, para criar a sua horta, para ter o seu alimento, nós dizemos que há uma nova forma de posse, a posse pro labore, a posse trabalho.

E, entendendo assim, nós introduzimos no projeto do código o conceito de posse trabalho, com repercussão fundamental em vários aspectos e momentos. Assim, por exemplo, com a usucapião, os que já começaram a estudar Direito desde o primeiro ano sabem, a usucapião é a aquisição da coisa pela sua utilização mansa e pacífica durante um certo tempo. Pois bem, em razão dessa diferença da posse trabalho, o projeto reduz pela metade o tempo necessário para que se dê usucapião.

Uma coisa é ocupar a terra com o meu dinheiro, com a minha capacidade dominadora, e então obedeço ao tempo de 20 anos. Mas se eu fiz, ao contrário, no exercício de uma posse de trabalho, a usucapião se opera pela metade do tempo. Estão vendo, portanto, que este código está cheio de inspiração ética[21]

Concluindo, podemos definir a posse como um instituto autônomo, que não se vincula necessariamente ao direito de propriedade. A posse é uma relação que decorre da necessidade humana de apropriação econômica das coisas, e recebe tutela desde que esta apropriação corresponda a um ideal coletivo, consoante os costumes e a opinião pública.

Sendo a posse, no Código Civil, uma relação de apropriação econômica, para o estabelecimento dessa relação não é suficiente, como imaginava Ihering, se ater às aparências de fato, tais como a exploração da coisa. É preciso remontar ao instante de tomada da posse e verificar em que circunstâncias e em que condições jurídicas ela teve lugar, tornando-se imperioso que em um dado momento aquele que se pretende possuidor tenha afirmado sua senhoria sobre a coisa. Assim, é a causa possessionis que decide a questão de se saber se há posse ou detenção.

O exame da causa possessionis é fundamental para a determinação da posse, necessitando-se de averiguar se os fatos que constituem uma relação durável e interessada com a coisa, qual seja, se está presente a circunstância do possuidor se servir e explorar a coisa em seu interesse, para si, de se colocar em senhorio dela.

A função social da posse foi acolhida no Código Civil brasileiro e está estabelecida na denominada posse qualificada ou, como refere Miguel Reale, posse-trabalho, que fundamenta tanto a usucapião de imóvel rural, prevista no art.1.239 (qualificada pelo trabalho e habitação), como a de imóvel urbano, disciplinada no art. 1.240 (qualificada pela habitação), assim como a exceção material do art. 1.228, parágrafos 4º e 5º (qualificada pela realização de obras e serviços por considerável número de pessoas, em conjunto ou separadamente, considerados pelo juiz como de interesse social e econômico relevante).

 

Notas e Referências: 

[1] HERNANDEZ GIL, Antonio. La función social de la posesíon. Madri: Alianza Editorial, 1969, p. 155-156.

[2] AQUINO, TOMÁS DE. Suma Teológica. II. II. v. 6. São Paulo: Edições Loyola, 2005, q. 66, 1.

[3] AQUINO, TOMÁS DE. Suma Teológica. II. II. v. 6. op. cit. p. 156.

[4] AQUINO, TOMÁS DE. Suma Teológica. II. II. v. 6. op. cit. p. 158.

[5] AQUINO, TOMÁS DE. Suma Teológica. II. II. v. 6. op. cit. p. 158.

[6] AQUINO, TOMÁS DE. Suma Teológica. II. II. v. 5. São Paulo: Edições Loyola, 2005, q. 32, 5.

[7] Como bem se expressa, com fundamento no Aquinate, Leão XIII, em 1891, em sua Encíclica Rerum Novarum: “E não se apele para a providência do Estado, porque o Estado é posterior ao homem, e antes que ele pudesse formar-se, já o homem tinha recebido da natureza o direito de viver e proteger a sua existência. Não se oponha também à legitimidade da propriedade particular o facto de que Deus concedeu a terra a todo o género humano para a gozar, porque Deus não a concedeu aos homens para que a dominassem confusamente todos juntos. Tal não é o sentido dessa verdade. Ela significa, unicamente, que Deus não assinou uma parte a nenhum homem em particular, mas quis deixar a limitação das propriedades à indústria humana e às instituições dos povos. Aliás, posto que dividida em propriedades particulares, a terra não deixa de servir à utilidade comum de todos, atendendo a que não há ninguém entre os mortais que não se alimente do produto dos campos. Quem os não tem, supre-os pelo trabalho, de maneira que se pode afirmar, com toda a verdade, que o trabalho é o meio universal de prover às necessidades da vida, quer ele se exerça num terreno próprio, quer em alguma parte lucrativa, cuja remuneração, sai apenas dos produtos múltiplos da terra, com os quais ela se comuta. De tudo isto resulta, mais uma vez, que a propriedade particular é plenamente conforme à natureza. A terra, sem dúvida, fornece ao homem com abundância as coisas necessárias para a conservação da sua vida e ainda para o seu aperfeiçoamento, mas não poderia fornecê-las sem a cultura e sem os cuidados do homem. Ora, que faz o homem, consumindo os recursos do seu espírito e as forças do seu corpo em procurar esses bens da natureza? Aplica, para assim dizer, a si mesmo a porção da natureza corpórea que cultiva e deixa nela como que um certo cunho da sua pessoa, a ponto que, com toda a justiça, esse bem será possuído de futuro como seu, e não será lícito a ninguém violar o seu direito de qualquer forma que seja”. 

[8] AQUINO, TOMÁS DE. Suma Teológica. II. II. v. 6. op. cit. p. 158, nota d.

[9] MIGOT, Aldo Francisco. A propriedade: natureza e conflito em Tomás de Aquino. Caxias do Sul: EDUCS, 2003, p. 89.

[10] BRITO, Miguel Nogueira de. A justificação da propriedade privada numa democracia constitucional. Coimbra: Almedina, 2007, p. 173.

[11] BRITO, Miguel Nogueira de. op. cit., p. 176-177.

[12] Como se vê em Fustel de Coulanges: “Como o caráter de propriedade privada está manifesto em tudo isso! Os mortos são deuses que pertencem apenas a uma família, e que apenas ela tem o direito de invocar. Esses mortos tomaram posse do solo, vivem sob esse pequeno outeiro, e ninguém, que não pertença à família, pode pensar em unir-se a eles. Ninguém, aliás, tem o direito de privá-los da terra que ocupam; um túmulo, entre os antigos, jamais pode ser mudado ou destruído; as leis mais severas o proíbem. Eis, portanto, uma parte da terra que, em nome da religião, torna-se objeto de propriedade perpétua para cada família. A família apropriou-se da terra enterrando nela os mortos, e ali se fixa para sempre. O membro mais novo dessa família pode dizer legitimamente: Esta terra é minha. — E ela lhe pertence de tal modo, que lhe é inseparável, não tendo nem mesmo o direito de desfazer-se dela. O solo onde repousam seus mortos é inalienável e imprescritível. A lei romana exige que, se uma família vende o campo onde está o túmulo, continua no entanto proprietária desse túmulo, e conserva eternamente o direito de atravessar o campo para nele cumprir as cerimônias do culto” COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. São Paulo: Martins Fontes, 1987, cap. VI – O direito de propriedade.

[13] PIPES, Richard. Propriedade e liberdade. São Paulo: Record, 2001, p. 129.

[14] MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Coleção Os pensadores), p. 11.

[15] TORRES, Marcos Alcino de Azevedo. A propriedade e a posse: um confronto em torno da função social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 373.

[16] TORRES, Marcos Alcino de Azevedo. op. cit., p. 308.

[17] ALBUQUERQUE, Ana Rita Vieira. Da função social da posse e sua consequência frente à situação proprietária. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 40.  

[18] TORRES, Ricardo Lobo. Direito ao mínimo existencial. Rio de Janeiro : Renovar, 2009, p. 268.

[19] RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Agravo de Instrumento nº 70016038887. 19ª Câmara Cível. Relator: Desembargador José Francisco Pellegrini. Acórdão de 10 de outubro de 2006. “Reintegração de posse. Liminar. Bem público. Garantias constitucionais.  Inviável a concessão da liminar de reintegração de posse, diante de questões de maior relevância, de cunho constitucional, como a dignidade da pessoa humana, o direito à moradia, entre outros. Ausência de comprovação na urgência do pedido liminar. As circunstâncias emolduradas no presente caso não autorizam a concessão da reintegração, em caráter liminar.

Muito embora não se desconheça o fato de que o bem público é insuscetível de aquisição de domínio pela posse, não se pode deixar de se examinar a questão em razão da função social da propriedade.

Depreende-se que o demandado, ora recorrente, ocupa área municipal, juntamente com sua esposa e dois filhos menores. Ora, não há dúvida de que se trata de pessoa pobre, sem lugar para morar e que, em razão de a área ora em litígio estar desocupada, ali estabeleceu a sua moradia.

Por outro lado, a alegação do município de que se trata de área recreativa, é despida de qualquer prova. Pelo contrário, denota-se, pelas fotografias juntadas, de que no local estão localizadas várias casas, o que indica que não há urgência no pedido.

Se é certo que a Constituição Federal, em seu art. 5º XXII, garante o direito de propriedade, no mesmo artigo 5º, no inciso XXIII, dispõe que esta deve atender sua função social. Mais. Está previsto no art. 1º da mesma Carta, que a República Federativa do Brasil tem como fundamentos, dentre outros, a cidadania e a dignidade da pessoa humana. E, em seu art. 6º, garante como direito social a moradia e a assistência aos desamparados.

Aqui, portanto, deve se ter em conta de que o Estado, em qualquer nível, não pode se omitir diante da fragilidade e da necessidade da parte demandada, devendo, de alguma forma, contribuir para a solução da questão.

Assim sendo, mesmo diante de eventual precariedade da posse, não se pode deixar de observar, questões de cunho constitucional, como a dignidade da pessoa humana, o direito à moradia, entre outros.  Deste modo, não há como se admitir, ao menos em sede de cognição sumária, a concessão liminar da demanda reintegratória”.

[20] Ver a exposição de motivos ao novo Código: Exposição de motivos do supervisor da Comissão revisora e elaboradora do Código Civil. BRASIL. Código Civil. Brasília: Centro de Documentação e Informação, 2002, p. 30-78.

[21] REALE, Miguel. O Projeto do Código Civil. In: V Semana Jurídica. Faculdades Adamantinenses Integradas. Adamantina: Omnia, 2001. p. 58-59.

ALBUQUERQUE, Ana Rita Vieira. Da função social da posse e sua consequência frente à situação proprietária. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 40. 

AQUINO, TOMÁS DE. Suma Teológica. II. II. v. 6. São Paulo: Edições Loyola, 2005.

BRASIL. Código Civil. Brasília: Centro de Documentação e Informação, 2002.

BRITO, Miguel Nogueira de. A justificação da propriedade privada numa democracia constitucional. Coimbra: Almedina, 2007.

COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. São Paulo: Martins Fontes, 1987.

HERNANDEZ GIL, Antonio. La función social de la posesíon. Madri: Alianza Editorial, 1969.

MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

MIGOT, Aldo Francisco. A propriedade: natureza e conflito em Tomás de Aquino. Caxias do Sul: EDUCS, 2003, p. 89.

PIPES, Richard. Propriedade e liberdade. São Paulo: Record, 2001.

REALE, Miguel. O projeto do Código Civil. In: V Semana Jurídica. Faculdades Adamantinenses Integradas. Adamantina: Omnia, 2001.

RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Agravo de Instrumento nº. 70016038887. 19ª Câmara Cível. Relator: Desembargador José Francisco Pellegrini. Acórdão de 10 de outubro de 2006.

TORRES, Marcos Alcino de Azevedo. A propriedade e a posse: um confronto em torno da função social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

TORRES, Ricardo Lobo. Direito ao mínimo existencial. Rio de Janeiro: Renovar, 2009.

 

Imagem Ilustrativa do Post: acampamento-defensores-democrcia-curitiba-Foto -Lula-Marques- Agência-PT-3 // Foto de: Partido dos Trabalhadores // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/partidodostrabalhadores/34173965030

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura